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A transferência aconteceu como o previsto e, quatro dias após o fracasso daquela missão, os soldados desembarcaram nos Estados Unidos e sob um regime especial de licença. Um dia depois da chegada foram realizados os funerais e, logo após, o Comando Central da Base, através da Diretoria de Saúde, autorizou a entrada de parentes, viagens, acompanhamento psicológico e tantas outras medidas que minimizassem o trauma daqueles sobreviventes. Até mesmo as situações jurídicas, em alguns casos, foram suspensas ou extintas. Muitas dessas medidas funcionaram, outras não e, passados 20 dias desde o regresso, o Comando anunciou algo mais efetivo: um baile.

No dia marcado, dentro dos dormitórios reservados aos soldados, o burbúrio foi generalizado:

— Que maravilha! Que maravilha! — estava eufórico David.

— Porque tanta animação? É só um baile — bem mais contido estava Villas.

— Ah, fala sério! Você não viu o tanto de convidados, principalmente garotas?

— Ainda bem que permitiram que os familiares trouxessem convidados, se dependesse das garotas daqui, seria um fiasco total.

— Nem tanto Villas, tem umas até apresentáveis.

— Algumas sim, mas e as outras? Tem cada figura... — o comentário veio seguido de uma careta.

— A Penelope! A Penélope é uma gata. — elegeu, David.

— É, concordo! E algumas que andam com ela. Agora a Mary é horrível. E o que me diz da esquisitona da Guynive? Deus amado, tem que ter estômago pra encarar — analisou, Villas.

— Dizem que depois de alguns tragos não existe mulher feia.

— Olha David, nesses casos aí os drinques serão servidos em galões. — as gargalhadas ecoavam pelo dormitório.

— Ainda vai queimar a língua e namorar com uma delas — praguejou e depois pediu: — Agora deixa de coisa e me ajuda aqui com essa gravata.

— Monta e desmonta um rifle de olhos fechados e em tempo recorde, mas sofre pra colocar uma gravata? É David, estamos mal... — ambos gargalharam.

Não tão distante dali, no dormitório feminino, as inúmeras conversas também seguiam em alto e bom som:

— Não acredito Penelope, você pintou as unhas de vermelho?

— E recomendaria que a senhorita fizesse o mesmo.

— Ah, eu não tenho essa moral toda não — Doroth falou segurando o riso.

— Como não? Vez ou outra está com algum oficial. Se isso não for moral...

­— Mas a cor é muito chamativa.

— É mesmo? — Penélope lançava um olhar sarcástico.

— Sabe que tento ser discreta em público, mas em oculto... — as risadas foram contidas.

— Me poupe desses detalhes, ok?

— Ei Penelope, e a sua amiga ali? — disse outra soldado apontando para uma figura isolada.

E a loira foi até lá:

— Oi! tudo bem? — se dirigiu a Guynive que prensou os olhos ouvindo a "cordialidade" de sua companheira. — Está sem companhia para o baile? — a pergunta parecia inocente e carregada de preocupação, mas vinda de Penélope: — Não encontrou nada que te quisesse? Isso deve ser muito difícil! Monstrenga!

As mais próximas riram com os desaforos, mas logo abandonaram o assunto dando continuidade aos preparativos. Em menos de uma hora o evento teria início.

Guynive permaneceu sentada na cama, vestida em seu tradicional uniforme verde escuro, pensando e repensando nos acontecimentos anteriores. A situação não estava nada boa: não conseguia se misturar com as pessoas, talvez tivera graves falhas em sua missão e, não fosse tudo isso, a maioria de seus pensamentos se voltava para Ivan, exatamente como naquele instante.

Depois que voltaram para a América, durante os dias em que ele passou internado, Guynive sempre o visitou, mesmo que ele não a visse, já que ficava sempre na recepção do andar. Na verdade, se Guynive pudesse, permaneceria dentro do hospital até que Ivan tivesse total recuperação. Vez ou outra ela encontrava com Daisy, que também o visitava, mas com uma frequência menor. Numa dessas vezes, decidida a entrar e falar com ele, Guynive chegou na porta do quarto e ouviu parte da conversa:

— Quando receber alta, eu posso te ajudar. Pode se hospedar lá em casa — disse, Daisy, que segurava a mão de Ivan.

Foi a última visita que Guynive lhe fizera. Não sabia o exato motivo, mas a cena e as palavras a incomodaram demais.

A garota continuava perdida em seus pensamentos enquanto as pessoas saiam do dormitório, até que ela ficou só. Sem ser vista ou ouvida, seus olhos marejaram.

Do outro lado da base, inerte a tudo isso, os preparativos seguiam intensos:

"Será uma ótima noite! Ótima noite!" — dizia consigo.

Na sala, a televisão ligada em alto e bom som, ecoava a voz do narrador:

"— Pra todos vocês amigos de nossa emissora, espalhados por esse grande país, muito boa noite! Dentro de alguns instantes a grande final..."

Enquanto isso Ivan terminava seus afazeres:

— Conferindo: torradas, geléia de amora, mel, bolo de milho, requeijão, uvas, azeitonas, queijo e um copo de leite — sentiu um regozijo tão grande no coração que quase gritou de felicidade.

"— Olha a torcida da Espanha gritando: olé! olé! olé!..." — informou o narrador.

"— Mas a partida não é Holanda e Estados Unidos?" — perguntou o comentarista de arbitragem que o auxiliava.

Vestido de pijamão, Ivan depositou a bandeja sobre a mesinha ao lado da poltrona:

— Ajustando a visão...

Corrigiu o posicionamento do televisor, abaixou um pouco o volume, pois o jogo começara há poucos minutos:

"— Cézar Raposo, pode dar essa entrada? Não foi falta?" — perguntou o narrador após um lance mais forte.

"— A regra é clara..."

Então o telefone tocou:

— Alô!

— Ivan, tudo bem? Marquez falando.

— Sim, sim capitão. Tudo bem, mas pode melhorar — ele observava um lance do jogo.

— Que bom. Chegará que horas ao baile?

— Baile?

— Sei que é chato lhe pedir isso, mas precisamos da sua presença.

— Sim, senhor. Chegarei em alguns minutos.

— Então nos encontramos lá. Até breve.

Após o término da ligação, não pode conter um suspiro profundo, e a frase voltou à sua mente:

"... Toda refeição é um banquete. Todo pagamento é uma fortuna. Toda manobra é um desfile..." — e falou frente ao espelho enquanto terminava de raspar a barba: — ... Eu amo ser fuzileiro!

Em questão de minutosestava pronto e descendo as escadas para a garagem, abriu o portão e saiu com ocarro. O posto de combustível da base ficava a pouco mais de 500 metros da suacasa.


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Guynive - O Começo do FimOnde histórias criam vida. Descubra agora