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Sabiam para onde iam, e questões fronteiriças e hierárquicas não eram importantes naquele momento. Após a longa descida, chegaram a uma cachoeira de águas escaldantes, se aproximando de seu destino. Nada ficou mais nítido, nem o ambiente menos pesaroso ou menos perigoso. Seguiram o curso d'água que desembocava num solo incandescente e repleto de fissuras que liberavam calor e uma leda claridade. Ali havia um pouco mais de visibilidade, não que precisassem. Porque não faziam uso dos sentidos que é comum aos humanos. Se encontravam porque o mal atrai o mal.

O que ambos estranharam é que, já nas imediações do Inferno, de onde estavam conseguiam ver à distância o impenetrável muro de Ormarezor, eles sentiram e reconheceram a presença e por isso pousaram já em posição de reverência. Após breve espera, fortes tremores sacudiram a caverna, onde longínquas paredes desabaram causando estardalhaço. As fissuras escaldantes entraram em atividade, explodindo lava e gases para todos os lados. E o que era ruim ficou pior, mais hostil e desolador. Foi em meio aos escombros e ao tumulto, que as duas sombras ouviram:

— Que têm a dizer?

— Não há boas notícias, meu senhor.

— Prossiga... deixe-me julgar — disse Nigaeet curioso com tudo aquilo.

— Houve uma intensa batalha nos céus da Terra. A primeira linha de ataque liderada por Cartoniadûn, deve ter causado estrago, mas não o suficiente.

— Como assim "não o suficiente"?

— Primeiro porque ele e o seu grupo simplesmente foram erradicados. Segundo porque eu não acredito que ele abandonaria o campo de batalha.

O demônio absorvia as informações, mas não quis proferir qualquer julgamento:

— Prossiga, Dájilas.

— Certo. Depois disso o rastro dos humanos foi perdido, mas parece que remanescentes foram reencontrados após um período, oferecendo combate e desbaratando os planos de um assistido de Breastnarth.

— E não oferecemos resistência a esse grupo? — questionou, Nigaeet.

— Quero acreditar que sim, meu senhor...

— Acreditar? É algo incerto?

— Sim. Não existe confirmação, mas Breastnarth, também não recuaria diante do perigo, mesmo que custasse o seu fim.

"Breastnarth estava à frente de um importante projeto. A paga pelos seus serviços era alta. Também acredito que não desistiria." — pensou Nigaeet perguntando: — E os que ele comandava? Alguma informação?

— Senhor, mais de 90% do contingente enviado para aquela cidade gelada foi erradicado. Foram tantas baixar que foi até difícil reaver o controle sobre os humanos.

"Não por ser estranho, mas existe alguma força extremamente poderosa que faz frente à nossa." — Calculou, mas disse diferente: — Realmente, não são boas as notícias.

— Não são... — Afirmaram ambos.

Os dois ainda mantinham a posição de reverência quando Nigaeet puxou a capa e se revelou diante deles. As características da peça era a ocultação das características de seu detentor. Para Nigaeet aquilo vinha a calhar, já que ele gostava de agir nos bastidores e não na linha de frente.

— Por questão de garantia... — Nigaeet, em silêncio, sacou seus punhais. — ... melhor que esse assunto seja esquecido aqui... — fez uma pausa enquanto girou as armas. — ... junto com vocês. — E os degolou.

Como primeiro secretário, Nigaeet era ótimo suporte e ponto de coordenação, pois era astuto e muito observador, além de habilidoso em combate, coisa que fora experimentada nas vezes em que foi obrigado a travar batalhas, tanto para conseguir o cargo, como para se manter nele. Além dessas características, os pensamentos do secretário eram muito alinhados aos de seu senhor. Prova disso era que estava naquele local distante e sozinho, mantendo especial atenção nos acontecimentos relacionados aos militares, simplesmente por se preocupar. Divisava em seu raciocínio, que os humanos ainda possuíam mecanismos capazes de mudar os acontecimentos da Guerra do Vietnam, gerando um desfecho negativo para o reino infernal. Por isso agia discretamente e quantos menos soubessem melhor.

Foi na forma de um raio negro que Nigaeet entrou no Inferno e atravessou todos os seus níveis, e se materializou dentro da sala na Fortaleza da Solidão. Aguardou-o até que viu o seu senhor sair por de trás do trono. E quão belo ele era. Além dos traços e feições, cores e postura, havia um ar de majestade que o deixava naturalmente envolvente e, quem o visse, logo desejava reverenciá-lo e serví-lo. Pousava sobre ele astúcia, sagacidade e inteligência, de forma transbordante e natural. O seu olhar era sereno e reconfortante, transmitindo conhecimento e sabedoria das coisas. Sua voz era macia e sedosa, além de convincente. Difícil ouví-lo e não concordar com suas idéias. Difícil ir contra elas. O rosto possuía altivez, além de um ar, velado, de revolução e revolta. A longa cabeleira escorria sobre a armadura, que resplandecia brilho e beleza, forjada em ouro e detalhada em prata, bronze e pedras preciosas.

— Lúcifer... Meu senhor! — Enquanto Nigaeet contava toda a história a que teve acesso, seu mestre brincava com uma pedra incandescente. E foi após longo tempo em silêncio que o secretário indagou ao seu superior: — O que planeja fazer?

Lúcifer estalou os dedos e outros seis espectros se juntaram à Nigaeet, eram eles: Cren-Dee-Ny, Gantazre, Dur-Deblan, Zuzzdör, Kasdree-Dûn e Drowur-Dan. Os sete foram convocados como auxiliares temporários do Anjo de Luz. Eram astutos e equilibrados, além de se portarem bem em batalhas. Foram chamados também porque tiveram um bom desempenho na Batalha Pelo Paraíso onde, junto com o Acusador e seus Marechais lutaram, bravamente, até serem derrotados e capturados na Antessala do Trono.

Então o senhor do mal evocou:

— Isgüiz!

A pequena entidade, que era capaz de captar sons e presenças, se fracionou em centenas de partes, e se lançou, formando um amplo cordão de recepção nas imediações daqueles grotões.

"Nunca se sabe quando se é espionado." — E Lúcifer pronunciou: — Cada um de vocês formem siga para os continentes. Procurem, investiguem, por algo que não deseja ser encontrado...

Os espectros mantinham total atenção às instruções:

— Hajam com discrição para que suas ações não revelem suas intenções. Vão!

Rápidos e sagazes partiram para seus respectivos continentes: americano, africano, asiático, antártico, europeu e Oceania.

O último se preparava para sair quando a voz lhe disse:

— Nigaeet... você fica!

Sem questionar ele deu meia volta:

— Eis-me aqui! — E se aproximou do trono.

— Informações do Vietnam?

— Violência que gera violência. Mortes e mais mortes. Há apenas desespero e dor, seja na noite ou no alvorecer. — Olhou o seu comandante que continuava com a brasa, soltando-a ao chão e esta retornava à sua mão como se fosse um iô-iô. Parecia entretido fazendo aquilo. — Tudo como o planejado, mas...

— Mas? — Lúcifer se interessou pela pausa.

— Parece que os americanos estão decididos a encerrar a guerra.

— Ótimo!

— O quê? — O secretário se assustou.

— Preciso que estes tratados e acordos sejam assinados a qualquer preço. Além disso faça o levantamento de nosso contingente naquele ponto. Deixe-os agrupados e preparados para uma retirada de 70% das forças.

— Mas... meu senhor!

Lúcifer não se deu o trabalho sequer de olha para ele.

— Não se preocupe. Desocupe a "casa". Permita que a limpem e a coloquem em ordem. — Lúcifer ponderou por um instante até que, com uma voz doentia, ordenou: — Prepare o eleito para a região.

Nigaeet estava confuso, mas convicto de que seu senhor não permitiria que tudo se acabasse se não tivesse algo bem maior previamente estabelecido. Foi num piscar de olhos que o secretário se dirigiu para o local designado, dando início aos preparativos.

Enquanto isso, em sua sala na fortaleza, Lúcifer racionalizava:

"E que ele seja extremamente sanguinário".


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Guynive - O Começo do FimOnde histórias criam vida. Descubra agora