46. Sentir.

2.8K 198 52
                                    

As retinas não captavam nada. Não gravavam nada, não miravam nada. Ela, que tanto usava sua visão para focar no objeto através da lente, não enxergava um palmo à sua frente. Tudo era escuridão. Insensível.

Seu corpo encontrava-se deitado sobre a cama de Hospital. Com as mãos espalmadas nas laterais das coxas, um fino lençol cobria-lhe até a altura do quadril. Os ferimentos, antes visíveis, eram mantidos sob curativos. Vários deles. A pele do rosto encontrava-se um tanto quanto pálida. Seu peito subia e descia devagar. Ela dormia.

Lia, por sua vez, sendo cuidada em um outro quarto, sequer movera suas pálpebras. Seu corpo fraco, frágil, pequenino, sendo amparado por um bocado de mãos, não externava reação alguma. Era apenas uma matéria. Pálida. Inerte. Presa no meio, àquele meio. Estagnada entre a Vida e a Morte.

Victoria dormia. Se sabia que haveria um despertar.
Lia. Lia trazia em sua inconsciência, em sua imobilidade, em seu silêncio ensurdecedor aos que a amam, incerteza.

Estava a vaguear pelo vale mais sombrio. Não eram audíveis os sons; nem viva as cores. Tudo era frio. Vazio. Sem vida. Como ela, aparentemente.

Uma lutaria em vida fluida.
A outra lutaria pela vida.

Estavam em lados diferentes agora.

- Essa cama dura não é a minha. Não mesmo. - A voz arroqueada circulou pelo ambiente. As pálpebras, com muito custo, acomodavam-se a claridade do quarto. Horas haviam se passado, estava a começar entardecer. - Mãe? - Questionou ao manear a cabeça para a sua esquerda.

- Victoria Vilarin, sua intenção é matar-me do coração? - A mais velha aproximou-se da cama, tomando uma das mãos da filha, acariciando-na. - Como se sente?

- Quer uma resposta curta, mediana ou...

- Como se sente, filha? Pare de tentar me enrolar e diga. - Sobrepôs.

Ela suspirou. Sua mente correu com velocidade pelos ocorridos, acelerando quando colidia com cada agressão sofrida; sua boca secou ao pensar na jovem. Em como encontrou seu corpo magro e ferido. Seu peito apertou-se, os olhos marejaram. Em uma fuga temporária, desviou os olhos da mulher de idade, cujo porte ainda soava mais "jovial" do que nunca. A cor branca dos cabelos bem hidratados e curtos lhe ofertava anos a menos, era algo de se admirar. Sua pele seguia bem cuidada. Nos braços, tatuagens eram vistosas. Nada mudou em sua vida. Ela ainda era a mesma. Com algumas mudanças visíveis aos olhos. Mas a mesma. Madalena. Mãe e mulher admirável. Mentir para ela seria impossível. Seus orbes eram avaliativos e obervadores, captariam falhas nos dizeres com rapidez. Seria melhor expor teu sentir de uma vez. A ferida estava em evidência; não seria mais dolorido do que arrancar um curativo recente.

- Quebrada, mãe... - Começou - Sinto tudo quebrar aqui dentro. Passei anos da minha vida amando alguém que me traía, tive a maternidade, algo que estava cravado na alma, no desejo humano de uma mulher com lado maternal latente, arrancado com violência de mim. Agora, quando tudo caminhava bem, meu tapete é puxado, revelando sujeiras imundas que foram colocadas ali. Eu vi, com meus próprios olhos, minha amiga ser golpeada por um cara covarde. Eu vi, com meus próprios olhos, Lia largada sobre a poça do seu próprio sangue. Ela passou pelo que passei anos atrás, foi atacada de forma ainda mais brutal. Como vou olhar para ela sem sentir culpa, mãe? Como?

- Não pode culpar a si mesma. Não tome a culpa pelo erro do outro. Pela maldade do outro...

- Não entende? Eu deveria ter me contido mais. Ter barrado a entrada dela em minha vida. Eu não sei como a menina está, mãe. Se ela está bem. Se está sofrendo ou sentindo dor. E, mesmo que saiba, jamais poderei arrancar de sua lembrança as coisas horríveis que aconteceram. Então, sim. Vou me culpar pelo erro do outro. E, pelo meu erro. Se não fosse por minha história, ela estaria vivendo sua vida normalmente. - Seus olhos se ergueram, encontrando os de sua mãe. - Me destrói saber que fui a causa de algo assim na vida de uma jovem.

Nosso Prazer [BDSM]Onde histórias criam vida. Descubra agora