53 - Entrelinhas.

1.6K 124 35
                                    

Os pés arrastavam-se pelo piso lustroso; seu olfato captava o eflúvio de cada alma viva que passava por perto, quase mandando-a pelos ares. Tamanha era sua desatenção, que sequer lembrava-se do que estava a fazer naquele local cheio de gente.

Seguindo roboticamente por um dos vários corredores, olhava as diversas gostosuras que "enfeitavam" as prateleiras; biscoitos, chocolotates e tantas outras besteiras lhe faziam torcer a cara.

- Ora, seu desgosto por doces mudou, Victoria? - Àquela voz suave lhe atingiu, fazendo-a cessar os curtos e cansados passos. Virou-se, ficando cara-a-cara com uma das únicas pessoas que gostaria de manter a máxima distância. Com a pequena cesta sendo fortemente segurada pela mão direita, estreitou os olhos, suspirando pesadamente numa incredulidade visível.

- Se achas no direito de trocar algum diálogo comigo depois do que fez? - Indagou, emanando amargor em seus dizeres. - Quero que desfaça-me dessa tua mente fértil e esqueça cada mero detalhe que gravou aí. Tome algumas doses generosas de senso e me evite com fervor, Lola.

- Olha... - Tentou aproximar-se, mirando uma palma impedindo-a de chegar tão perto que, num ato sem sentido, podeira torná-las uma única matéria. - Sei que está com raiva. Sei que a ira parece ser a única reação cabível para caso de ocorrer a aproximação de pessoas específicas; mas, deveria fazer uma separação justa. Não eram todos que queriam tua carne, tua infelicidade e teu fim. Eu, errante, estou reconhecendo minha estupidez. Perder a amizade que fomentamos por anos... - tomou a mão da fotógrafa para si, segurando-a com firmeza ao lado esquerdo do peito. - será algo que não aceitarei.

Expressando dureza na face, Vilarin deixou sua feição fechar-se completamente; a mão, que outrora fora arrebata por tal atrevimento descabido, repuxou-se veloz.

- Escute aqui... - O timbre já não era o mesmo de anos atrás; seu olhar transpassava àquela que julgou ser alguém digno de mera confiança e lealdade um dia. - A troca que tivemos no passado, lhe informo desde já, nunca ocorrerá novamente. Conseguiu quebrar algo valioso demais para mim... - Suspirou audivelmente. - Pare de agir como se pudesse consertar isso.

- Podemos reconstruir algumas coisas, não acha? - As cordas vocais tremularam, era evidente certo nervosismo por parte da moça. Afinal, qual era sua intenção? Qual seria seu desfecho para essa cena deveras teatral para um contexto cotidiano? - Nossa conexão era única e...

- Não tem um 'e', Lola. - Victoria sobrepôs irritadiça. - Vá para o inferno com suas boas memórias e sentimentalismo barato; se o afeto reside em ti, guarde no fundo do teu ser, me nego a partilhar disso com você. Nada mais importa agora.

Entreabiu-se a boca da presença invasiva, tornando a fechar-se por falta do que pronunciar. Somente conseguia acompanhar os gestos de uma Vilarin atordoada enquanto colocava guloseimas em sua cesta. A mesma rejeitava sua aura; era quase palpável tua indiferença. Tentara tocar o ombro da mulher, seu pulso recuou no meio do caminho; esmoreceu. Seria arriscado tocar em alguém que já estava ferida o suficiente. Qualquer contato, causaria um dano maior. Contentou-se em assisti-lá evaporar rapidamente, numa fuga compreensível.

[...]

A respiração pesava. O peito descia e subia rapidamente; Vilarin estava saturada, farta de ouvir coisas das quais desacreditada furiosamente. Enquanto fazia o trajeto para chegar a residência, sua mente trabalhava em rebobinar o que sua audição ouvira minutos atrás. Não teria um momento de paz? Estaria sempre cercada daqueles que um dia presumiu e sentiu serem teu ponto de descarrego?

Parando em frente a porta, empunhou as sacolas ajeitadamente, arrumando os fios desgrenhados que passavam por olhos, boca e nariz; respirou uma, duas, três vezes, para então pegar a chave e adentrar ao recinto.

- Foi aqui que pediram doces? - Disse em voz alta, colocando a chave na mesa central. Murmúrios animados vinham da sala de jantar, andou até lá. - Pontual, hum? - Olhou em direção ao relógio. Seguindo à Madalena que sorriu docemente.

- Só faltava você, mama. - Isa pulou da cadeira, abraçando a cintura da mais velha, puxando sua mão livre para si, depositando beijinhos no dorso. - A vovó fez um tantão de comidas "deiciosas". Vamos encher a barriguinha? Você parece tão "maglinha", deve ser fome. - Alisou-lhe o ventre, causando risos, inclusive em Lu, que mantinha-se sentado, com as mãos cruzadas sobre a mesa, mirando o que parecia ser um "banquete".

- O que fez com minha filha, Madalena? Algumas horas de convívio e essa pequenina já está com tuas frases presas nas cordas vocais, é isso mesmo? - Indagou risonha.

- Sabes como é, na minha ausência, a mocinha será meus olhos aqui nesta casa. Tem que cuidar da mãe também, hahaha.

Victoria maneou a cabeça para os lados, segurando-se para não gargalhar; ter sua mãe como avó babona era algo novo.

- Bem, trouxe alguns docinhos. - Ergueu as sacolas, entregando-as para Madalena. - Se serão do agrado? Não faço a menor ideia, mas tentei. Não serei a pessoa que vai se acabar nisso.

- Ah, qual é? - Lu, que estava quieto, se pronunciou. - Nem um tasquinho, Tóia?

- Eu passo, rapaz-inho. - Respondeu, encurtando a distância. Isa vinha ao lado, agarrada em sua veste. - Prefiro uma salada de frutas bem generosa. - Acariciou o topo da cabeleira do garoto.

- Não seja sem graça, só um docinho, poxa. Um teco de nada. - Sorriu, espremendo os orbes adoravelmente. - Um doce de leite, a vovó fez. Caseiro, do jeito que gosta.

- Ô, garoto, não era para contar agora. - A matriarca deu-lhe uma cutucada divertida no ombro. - Estragou o barato da coisa.

- Opsi! - Gargalhou, tapando a boca com as mãos.

- Que união, turma. - Vilarin zombou, sentando-se no assento ao lado do menino, trazendo Isa consigo, pondo-a sentada em sua coxa esquerda. - Diante deste fato intrigante, digo que devemos comer antes que monstrinhos raivosos saiam de nossas barrigas. Depois decidimos qual doce é de quem e qual o mais gostoso.

[...]

- O que se passa? - Madalena se juntou a filha, sentando-se despojadamente no sofá. As crianças, após muita diversão, banho quentinho e estórias criadas pela fotógrafa, dormiam o "sono dos justos" dando um silêncio grandioso ao lar.

- Tenho a sensação de estar estagnada; estou estática assistindo o mundo girar, a vida acontecer. Absorta, lamúrias, confissões e mentiras mal contadas me enrolam como uma linha embaraçada de crochê. - Confinou, mexendo nervosamente os anéis que abraçavam os dedos. - Caí feito uma pata no que queriam. Como sairei disso? Não sei.

- Sabes que isso passará... Começou, afagando os cabelos da filha. - Se sucumbir, alimentará uma vitória forjada.

- Encontrei Lola... - Prosseguiu. - Ela disse coisas que sequer fazem sentido para mim; porém, minha cabeça se recusa a deixar isso de lado. - Olhou-a. Era notório tamanho incômodo. Visível a insatisfação. - É outro tormento agora.

- O que ela queria?

- Cortei o mal pela raiz; impedi que suas falas voassem para fora, revelando sentimentos que, provavelmente, seriam rebatidos com minha hostilidade. "Escutar para ver no que dá"... seria burrice.

- Não se prenda a isso. Já estás baqueada, fragilizada, é imprescindível que devas dar atenção àquilo que realmente importa.

- Estou tentando, juro. - Aconchegou-se nos braços mornos, repousando a tez no casaco quente de lã.

- Continue. Essa é sua luta; árdua e infeliz, carregada de dores avassaladoras. Mas, lembre-se: A força está dentro de ti. Exponha. No fim, verás que venceu. E o mérito será todo seu por ter sido capaz de aguentar e superar tudo de ruim que lhe acometeu. Lia ficará orgulhosa quando acordar. - Disse por fim.

- Será, mãe?

- Com toda certeza.!

Contínua...

Nosso Prazer [BDSM]Onde histórias criam vida. Descubra agora