Invasão inesperada.

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♥ Valentina Becker ♥

Ao menos teve a gentileza de me explicar sobre o que eu iria colocar no estômago. A composição é dura e simples, pois foi inventado para durar meses nas trincheiras da Segunda Guerra e, por suas palavras, acredito que Klaus estivera nelas.

Seu olhar é frio, como que sempre virado para um passado doloroso. O olhar de quem sabe que entrou num conflito que não é dele, e ainda por cima, do lado que não preferia estar.

Apesar da minha curiosidade, eu não sou louca a ponto de não saber que é grosseiro além da conta perguntar a um alemão se ele foi nazista.

Ele me recebeu em sua casa, então vou agradecer não enchendo paciência do velhinho cansado.

— Arranjei um emprego — Falei depois de engolir o pão com esforço, ele não ergueu os olhos para mim, apenas balançou a cabeça. — Na livraria de fräulein Kikuchi.

— Bom... Bom...

Eu não conseguiria um diálogo com ele tão cedo, apesar de já estarmos morando sob o mesmo teto por um pouco mais de um mês, mas ao menos poderia juntar dinheiro para me mudar logo para o meu próprio lugar e esperar por mamãe. Ela virá – um dia ela virá – e nós poderemos ficar juntas novamente.

Então qualquer lugar no mundo será meu lar e a memória de Marcelo Clark, e mesmo de meu pai, ficarão para trás.

— O senhor vai ficar bem? — Pergunto enrolando um cachecol vermelho-escuro no pescoço para então sair. As roupas mais folgadas não chamam a atenção, e o casaco rosa-claro se mistura bem com os das adolescentes que costumam pegar o ônibus para a escola.
É estranho sentir falta de estudar, mas acho que talvez só sinto falta de ter uma companhia com menos de noventa anos.

— Estou bem por aqui há mais de seis décadas, filha.
Junto as sobrancelhas percebendo como já estou habituada à reclusão dele e seus modos grosseiros de quem não tem mais tempo a perder.

Quem sabe quando as coisas se acalmarem, eu possa me matricular, e de qualquer forma posso usar os livros para estudar sozinha.

— Eu volto no fim da tarde — Aviso mesmo que ele não queira saber.
Munique é tão fria quanto Berna, as pessoas são tão reclusas quanto, e eu também não estou aqui para fazer amigos, ao menos não até a poeira baixar realmente.

Ainda assim me permito gostar da monotonia gelada da minha nova vida, tentando ver alguma beleza. Olho por cima do ombro, apenas um homem alto e loiro de cabelos longos como um viking caminha despreocupadamente do outro lado. Não olha para mim, o que me dá alguns segundos para admirá-lo. Munique possui mais atrações aleatórias do que Berna.

Chego à livraria da senhora Kikuchi e ela me recepciona com aquele sorrisinho enrugado de quem passou a vida inteira sendo mais gentil do que gostaria.

É pequena e tão cheio de itens que me lembra um pouco uma caverna de papel. Apesar de continuar com seus modos japoneses muito acentuados, o sotaque dela é mínimo, e é tão baixinha que quase se mistura com as estampas das milhares de lombadas e títulos expostos.

Com seu sorriso e educação, Kikuchi me guia pela loja para me preparar para longos meses de rotina tranquila.

***

Cinco dias passam tão rápido. Só percebo quando estou caminhando de volta para o pequeno apartamento de Klaus com a neve ameaçando piorar. Já escureceu e tudo o que eu posso fazer é tentar não escorregar enquanto aperto os passos e olho os flocos descerem contra a luz dos postes. Aperto o casaco contra o corpo e tenho uma sensação estranha, um arrepio que quase me faz vacilar na caminhada.

Olhei para trás por puro reflexo.

Nada. Ninguém. Isso é hora de começar a ficar paranóica. Valentina?
Chego à porta pesada de madeira velha do apartamento e saco a chave do bolso do casaco, só então percebo como meus dedos estão tremendo por baixo das luvas grossas.

Por que eu estou nervosa? Por que estou me sentindo em alerta como uma presa prestes a ser abatida? Olho novamente por cima do ombro e não vejo ninguém, apenas os carros sendo cobertos aos poucos pela neve.

Meu coração acelera sem motivo e deixo o molho de chaves cair...
— Merda! — xingo alto, e logo trato de pegar a chave certa e enfiá-la na fechadura. Lembro na hora que ela costuma emperrar, e sem me preocupar com o barulho, enfio o ombro na madeira fazendo a porta se soltar.

Num único movimento, entro, bato o trinco e tranco em velocidade recorde. O silêncio na casa é sepulcral e ouço apenas minha respiração ofegante. 

Klaus já deve estar dormindo e espero não o ter acordado com essa entrada desesperada. Tentando acalmar minha respiração, encosto a testa na madeira fria encarando meus pés.

Meus ombros estão muito tensos, eu quero simplesmente dormir e acordar em meu quarto em Berna. Queria que fosse apenas um sonho longo e ruim.

Pouco a pouco me acalmo, já estou dentro de casa com tudo trancado e, enfim, posso me mover e tirar o casaco. Caminho para a cozinha para pegar um copo d'água, ou mesmo esquentar um pouco de leite antes de me deitar. Afasto o casaco dos ombros.
Congelo quando olho para frente.

Sinto o sopro da vida deixar meu corpo por um momento ao ver uma figura alta estacada no centro do cômodo. Todo de preto, roupas táticas e uma balaclava assustadora cobre toda a sua cabeça, exceto pelos olhos. 

Está apenas ali, parado, olhando para mim, parecendo grande demais para uma cozinha tão pequena, com suas botas pesadas e roupa volumosa camuflada. Olho para o seu cinto, vejo uma pistola, estou paralisada ao vê-lo tirar do bolso traseiro o que parece um pano preto. Juntando as peças vejo que é um saco.

Minhas pernas simplesmente destravam e começo a correr sem saber para onde.

— Klaus! Klaus! — Grito esperando que ele acorde e pelo menos chame a polícia. Se não estiver morto... O pensamento me assombra.
Vou para a porta que acabei de trancar e sinto minhas unhas quebrarem dentro das luvas quando coloco a mão sobre a chave para tentar girá-la novamente. Sinto o peso das botas do invasor quase amassarem o piso vindo atrás de mim. Suas mãos agarram meus braços com firmeza, me tirando do chão como se eu pesasse menos que o ar. Grito a plenos pulmões, o que o faz desviar uma mão para minha boca, abafando minha voz.

— Por favor, não... Não! — Tento gritar, as lágrimas já molham meu rosto inteiro.
  
— Hält die Klappe! — "Cale a boca", diz a voz dele bem perto do meu ouvido, não ordenando, mas quase pedindo. Posso sentir sua respiração forte, hálito de canela. — Não se mexa.

Ele coloca algo na minha boca que me impediu de gritar, pelo cheiro, deduzo que é um dos panos de prato da cozinha. Ele me deita no chão sem esforço, como um delinquente numa batida policial.
O joelho pesado amassa minhas costelas enquanto eu me debato, meus braços foram juntados atrás do meu corpo e sinto um fio plástico unir meus pulsos.

Minhas lágrimas molham o chão, minha pele começa a arder. Não acredito que isso está acontecendo! Sei que vou morrer quando o saco preto bloqueia minha visão roubando todo o ar dos meus pulmões e algo pontiagudo penetra meu braço, entorpecendo meus sentidos em segundos.

♣ ♥ ♠ ♦ Contínua no próximo capítulo. ♣ ♥ ♠ ♦


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