Minha desgraça será o seu martírio.

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♥ Valentina Becker ♥

O quinto dia nesse casarão parece idêntico aos quatro anteriores.

Mesmo teto, mesmas sombras, mesma luz clara, mesmo aperto no peito de saudade e apreensão.

Apesar de não temer o risco de Marcelo Clark aparecer em meu quarto querendo papo, vivo com o terror de que ele tenha ido de fato atrás da mamãe.

Uma das vantagens dessa casa gigante é a biblioteca imensa no andar de baixo, onde eu passo a maior parte do tempo sob o olhar de Erik Ludwig lá fora, por trás das portas grandes de vidro, exposto ao frio como uma estátua.

Eu o olho pela centésima vez acima das páginas de "A Revolução dos Bichos", de Orwell, está de costas, contra a imensidão branca na frente da casa. Sua roupa preta volumosa o deixa ainda maior, mais largo.

Os ombros, aparentemente fortes, descem em linhas diagonais, um trapézio perfeito e aberto o bastante para ser simétrico em relação aos quadris estreitos e as pernas grossas nos coturnos militares pesados.

Os cabelos loiros raspados nas laterais voam ao vento e quando ele vira o rosto um pouco para esquadrinhar a paisagem é fácil ver a linha afiada de seu maxilar, coberto por uma barba igualmente clara.

Num único movimento ele se vira e dirige seu olhar duro para mim, como se soubesse que estava sendo observado.

Desvio de volta para o livro e sinto um pouco de vergonha por ter sido pega. Não bastasse Marcelo Clark ser um degenerado, tinha que ter posto um modelo de cueca para me sequestrar. Isso é ridículo! E ao mesmo tempo intrigante...

Erik não é como Dave – que parece se orgulhar da própria posição –, pelo contrário, ele se mostra irritado o tempo todo, tanto quanto eu. É fácil perceber que não quer estar aqui também.

 Então, porque ele fica? As palavras dele no carro, dizendo que não era inteligente agir contra Marcelo daquele jeito... Será que estava querendo me ajudar ou me deixar ainda mais irritada?
Só tem um jeito de saber. Fecho o livro num baque surdo e me levanto, apertando o casaco contra o corpo. Caminho na direção das portas para abri-las.

— Tudo em ordem, senhorita Becker? — pergunta me olhando de cima.

— É o que eu quero saber. — O rosto dele não muda enquanto continuo. — Sabe se aquela ameaça foi verdade? Sobre minha mãe.

— Não. Não recebi nenhuma notícia da sede desde que chegamos.

Solto a respiração, tensa e preocupada. Ficar longe do homem deveria estar sendo um alívio total, mas está longe disso.

No mesmo passo que saí, já voltava para dentro quando ouço a voz de Erik de novo.

— Ele encostou em você, Valentina? — As palavras dele soam tão frias quanto o ar. Olho para ele, quase insultada.

— Isso não é da sua conta.

— Eu te entreguei para ele, é da minha conta.

— Não aja como se estivesse preocupado, você é tão culpado quanto ele — Retruco, apertando ainda mais o casaco, mesmo que sentisse uma onda de calor tomar meu corpo.

— Não fale sobre o que não sabe.

— Acho que depois que um homem te sequestrar dentro de casa e te entrega a um criminoso de merda, é difícil não tirar conclusões óbvias!

Erik desvia os olhos por um momento, impaciente, se aproxima um passo, ficando ainda mais alto. Esforço-me para não recuar, se não o fiz quando Marcelo apontou uma arma para mim, não começaria agora.

— Eu não sabia quem você era, se soubesse não teria...

— Não use a ignorância para se declarar inocente — Rebato o argumento sem desviar os olhos dos dele. Encontro tudo ali, raiva, irritação, decepção, injúria. — Eu estava segura, livre daquele maldito! Mamãe se sacrificou para me manda para a Alemanha e você jogou o esforço dela no ralo! O inferno que eu terei que enfrentar é culpa sua!

Eu estou tomada pela adrenalina, e despejo tudo o que está engasgado, sem medo.

— Não te conheço bem, mas a forma com que me segurou sem machucar, mostra que é uma pessoa treinada e sabe muito bem o que faz. Você teve tempo de avaliar a situação e voltar atrás e não o fez, a minha desgraça será o seu martírio.

Com suas mãos enormes, ele agarra firme em meus braços e, por um segundo, pareço não pesar nada, meus pés não encostam no chão e quando Erik me pressiona à parede ao lado das portas, meus pés gelados encontram apenas o couro de suas botas para se apoiar.

— Eu não escolhi fazer isso com você, eu ajudei um homem que disse ter perdido a filha — diz ele, quase num sussurro com a respiração morna soprando no meu rosto.

— Marcelo Clark é um mentiroso. Se você vai me culpar por isso, faça em silêncio, eu já me culpo o bastante sozinho. Facilite as coisa para nós dois antes que ele mate você ou faça coisa pior!

Naqueles segundos eu acabo me arrependendo, Erik parece tão machucado quanto eu.

— Agora responda a minha pergunta — Exige. — Marcelo Clark encostou em você?

Penso naquele beijo forçado. No que acabou fazendo com meu corpo antes, durante e depois.
Nunca tinha tido minha boca invadida por outra daquele jeito, tudo o que eu me lembrava é do beijo e uma bagunça inexperiente de saliva minha misturada com a dele.

Eu sabia que não deveria sentir nada de bom com um toque contra a minha vontade, mas a curiosidade era neutra, apenas física.

Como agora com o cheiro de Erik entrando nos meus pulmões. Um cheiro gostoso e fresco de canela com desodorante.

— Ele me beijou — respondo.

— Mais alguma coisa?

— Não.

Demora pelo menos cinco segundos para finalmente me colocar no chão e se afastar.

— Eu vou fazer dezoito anos, não acho que vou conseguir protelar o que vai acontecer por muito tempo. — As palavras pesam com o significado.

— Pelo menos diga que tem alguma experiência...

— Eu não vou responder a isso.

Erik coloca as mãos sobre o guarda corpo de pedra, seus olhos estão baixos. Está perdido num passado que eu não conheço.

♣ ♥ ♠ ♦ Contínua no próximo capítulo ♣ ♥ ♠ ♦

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