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Flora

Tinha dançado com todos!

Dos homens mais jovens aos senhores idosos, com as crianças e as mulheres, comido tudo que cabia em meu estômago e experimentado todo tipo de bebida alcoólica pela primeira vez. Nunca me diverti tanto em toda minha vida; parecia ter me encontrado no meio dessas pessoas tão humildes e gentis.

– Padre, o senhor fugiu de mim a noite inteira, pode vir dançar comigo, não seja chato.

– Venha aqui, menina flor, descanse comigo.

O padre Lucas me fez sentar perto dele ao redor de algumas senhoras que conversavam sobre a colheita e outros assuntos da colônia.

– A escola precisa de cadeiras novas, a menina Catalina está sem jeito em dar aula para crianças tendo que dispensar algumas. O senhor poderia conversar com o patrão; às vezes, ele escuta a voz de um padre.

– O que mais a colônia precisa?

Não sei se a quantidade de bebida me fez corajosa a ponto de querer saber mais sobre as pessoas ou perceber que realmente precisam de ajuda.

– São tantas coisas, menina. As casas estão antigas, precisando de reforma urgente; a capela está pequena demais, não cabe quase ninguém. Ainda bem que nossos rapazes são educados e cedem os lugares para que nós mulheres possamos sentar, como também as crianças.

Prestei atenção em cada reclamação, percebendo como Magalhães vive alheio às necessidades do seu próprio povo. Enquanto na cidade Magalhães todos vivem bem, aqui na fazenda, os principais responsáveis pela riqueza de sua família são tratados como inferiores.

– Sei que é nova, menina, mas aqui nós somos abandonados. Nem mesmo no casamento do patrão podíamos ir. Acho que ele tem nojo das nossas mãos calejadas que deixaram ele e sua família ricos; aquela irmã sem vergonha dele foi castigo bem dado por Deus.

Juan é um homem horrível, não estava errada. Padre Lucas segura minha mão como se pedisse para não falar nada, apenas ouvir.

– Mirela era boa, foi ficando ruim por conta dos machos daquela família. Entregaram a garota para um Rossio; todo mundo sabia da fama horrível que o velho Rossio tinha, abusava das meninas e deixava em qualquer lugar como se fossem objetos imprestáveis. A desgraça da família Magalhães é culpa deles mesmo; tomara que essa moça da Acácia seja uma desgraçada com ele. Juan Magalhães merece.

Zacarias chegou repreendendo a mulher com o olhar. Ele dançou comigo várias vezes durante a noite, me respeitando e sendo um cavaleiro.

– Mãe, aqui está cheio dos homens de confiança do patrão, pare de conversar demais.

– Não me importo com eles, filho, é verdade e pronto.

Sei que a senhora, como eu, está no efeito da bebida, mas admirei a coragem dela de falar o que pensa. Muitas pessoas não teriam a mesma atitude; a bebida deu o impulso, claro.

– Já está na hora de irmos, mãe.

– Não, ainda é cedo, estou conversando com minha futura nora.

Ela apontou o copo na minha direção, rindo. Zacarias ficou sem jeito, e eu apenas sorri com a afirmação dela. Eu seria indisponível para qualquer homem. Se conseguir a anulação, tenho certeza que Juan vai tornar tudo difícil para mim. Terei que me mudar de país para recomeçar.

– Foi bom conhecê-la, Flor, vejo você por aí.

– Até mais, Zacarias!

Apesar dos protestos, a mãe seguiu o filho, o repreendendo por levá-la embora. Com o passar dos minutos, as outras senhoras também foram para suas casas.

– Eu acho que vou embora também; o senhor vai ficar aqui?

– Sim, na casa de Guadalupe e Novais. Filha, é perigoso andar por essas plantações sozinha. Por que não fica? Amanhã cedo, levo você para a casa principal.

Sorri para ele, dizendo que não precisava. Ando me preocupando tão pouco com minha vida; se alguém fizer algo comigo, será um favor. Juan é um monstro insensível. Estou longe da minha família, não há muitos motivos para estar feliz ou viver. Vou até a mesa, pegando uma garrafa de aguardente e indo na direção da casa grande.

Por incrível que pareça, apesar de beber a metade da garrafa, cheguei na porta da casa principal sem ter sido perturbada por ninguém ou me perder. Subi as escadas com dificuldade, rindo do primeiro ao último degrau. Juan está na sala; ao me ver suada e com uma garrafa de bebida, vem em minha direção, possesso.

– ONDE VOCÊ ESTAVA? ESTÁ BÊBADA.

– ESTAVA FESTEJANDO COM OS MEUS NOVOS AMIGOS, E SIM, CHATOLINO, ESTOU BÊBADA.

Sua mão acertou meu rosto, fazendo-me cair. Com o impacto, a garrafa se quebrou, machucando minha mão com um dos cacos de vidro. Juan, ao perceber o sangue espalhado no chão, tentou se aproximar.

– Fique longe de mim; vou dormir no meu quarto. Não posso confiar em um homem como você. NÃO VENHA ATRÁS DE MIM!

Subi para o meu quarto, totalmente exausta além de bêbada. Preciso me livrar desse casamento o mais rápido possível; não aguento mais ficar perto desse homem. E descobrir como é insensível com os mais necessitados me deixou ainda mais determinada em acabar com tudo.

Juan

O final da noite foi um grande tormento, terminando em uma manhã complicada. Flora não dormiu no nosso quarto, acordou cedo, mas dessa vez meus homens não a deixaram sair. Agora ela está aqui na mesa tomando café, enquanto ajeita os óculos escuros que usa. Flora sequer ousou falar uma palavra.

É visível que está de ressaca. Vejo o curativo em sua mão. É impossível não ficar preocupado com ela. Se o seu temperamento fosse mais calmo, seria tão mais fácil lidar com ela. Percebo como minha presença a incomoda. Sei que quer o fim desse casamento. O problema é que eu não quero.

– Como está o ferimento?

– O que você acha, Juan? Pode, por favor, ficar em silêncio? Minha cabeça está explodindo, minha mão latejando por conta da dor, e tudo que não preciso é ouvir o som da sua voz.

Resolvi por ficar calado. Flora terminou o café, levantou e foi na direção da porta para sair. Um dos meus homens entrou na sua frente, como fez mais cedo, a impedindo.

– Onde está indo?

– Estou indo na colônia ou também estou proibida?

Não sei o que aconteceu ontem na colônia. Os moradores estão sendo interrogados pelos meus homens, mas parece que todos fizeram uma espécie de pacto de silêncio, como se não quisessem contar o que houve ontem.

– Lá não é o seu lugar. Seu lugar é aqui. Como uma dama da Organização, você deve se ocupar com a casa e com as orientações que as empregadas devem receber e não ficar se misturando com os meus trabalhadores.

– Entendi agora. Você quer alguém que pense somente em qual vai ser o cardápio do jantar ou quantos talheres de prata temos no armário? Tudo bem.

O conformismo dela não me convenceu, por isso peço para que meus homens vigiem a casa durante todo o dia. Não vou aceitar que Flora se comporte como uma qualquer.

– Vou para cidade Magalhães. Preciso ver minha mãe e resolver algumas questões do carregamento da colheita dessa última remessa. A casa está sob vigilância durante todo o dia. Não ouse sair. Autorizei que usem de violência para impedi-la.

Ela virou as costas, indo na direção da cozinha sem responder, como tem costume. Tenho que continuar firme. Logo, Flora estará grávida, não tendo tempo para pensar em bobagens ou me enfrentar. Só preciso ter paciência e perseverança. Logo, ela estará rendida a mim e ao nosso casamento.

A Confiança - A Organização - Livro 3Onde histórias criam vida. Descubra agora