Capítulo 1

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Ela ouviu um corvo grasnar acima de sua cabeça, como se quisesse chamar sua atenção. Mas ela o ignorou completamente.

Outro corvo pousou no beco, a observando atentamente. Ela também o ignorou.

Algo familiar se movimentou as suas costas, que foi ignorada assim como os corvos.

– Que espetáculo Penelape. – Uma voz feminina vinha das sombras do beco, seguida pelas suas palmas lentas e teatrais. – Achei mesmo que dessa vez ele iria escapar.

Penelape reprimiu a vontade de revirar os olhos para ela. Já estava com bastante dificuldade para se manter em pé e respirando. A última coisa que queria era ter que lidar com mais problemas.

Ela se virou, a mulher saiu das sombras, os lábios curvados em divertimento. A mulher usava um sobretudo preto, uma camisa branca desabotoada até a altura dos seios. Seu cabelo preto curto na altura das orelhas como as asas de um... bem, corvo. Seus olhos cinzentos estreitos nas pontas, eram tão claros que às vezes pareciam uma vastidão de brancos, opacos.

– Cale a boca, Mavie... – Penelape arfou de dor. – O que... faz aqui? Estava... me espionando?

– Tipo isso – Mavie deu de ombros, enfiou a mão em um dos bolsos e tirou de lá uma embalagem de pirulito, desembrulhou e o enfiou na boca. – Estava procurando alguém e acabei vendo você correndo igual louca pelas ruas. Então, decidi seguir seus passos caso ele escapasse. – Ela apontou em direção ao cadáver do Roni e franziu o cenho.

– Dificilmente eles escapam.

– Não sei como você ainda consegue. Toda essa questão de possessão e depois vem essa bagunça... – Mavie apontou o pirulito para as manchas no rosto de Penelape – ...de sangue.

Penelape tentou rir, mas isso só provocou uma nova onda de dor em seu corpo.

– Se eu... não te conhecesse tão bem, poderia... jurar que está com nojo... de sangue.

– O que? Não... – ela disse rápido demais. Penelape teve vontade de rir alto, mas suas costelas estavam doendo muito, e ela acabou cambaleando para a frente. Mavie a pegou antes que caísse. – Você precisa cuidar disso antes que piore.

– Eu estou... bem – Penelape se desvencilhou dos braços da outra – Nada que algumas injeções de restauração não... funcionem. O que realmente... quero saber... é o que você faz aqui?

– Então – Mavie coçou a nuca, fazendo uma cara como se tivesse chupado algo azedo. Aquilo só indicava que as próximas palavras dela não seriam nenhum pouco agradáveis para Penelape – Vovó solicita sua presença.

Penelape bufou, não havia gostado nada daquela resposta.

– Toda vez a mesma coisa. – Ela tornou a andar com dificuldade, dando as costas para Mavie, saindo do beco.

– Espera, aonde está indo? – Mavie deu uma corridinha para alcançá-la, seus corvos alçando vôo a acompanhando de longe, vigilantes.

– Pegar o metrô.

– A essa hora? Está muito ferida para isso, e além do mais. O metrô fede – ela enrugou o nariz, mas não fez nenhuma menção de abandonar Penelape por conta própria. – Sabe, a gente poderia, sei lá. Talvez solicitar um Ae... – apontou para algumas naves que sobrevoaram muito acima de suas cabeças, elas eram parecidas com os poucos carros que percorriam as ruas de QuantumBurg.

Penelape estremeceu só de pensar em entrar naquelas latas voadoras de metal, e continuou indo para a sua opção mais segura, o metrô.

As duas andaram pelas ruas da cidade. Em um determinado momento, Mavie passou um braço por Penelape, sustentando seu peso. Os corvos sobrevoaram os picos dos arranha-céus se misturando à noite, como se estivessem buscando por algo.

Não importava o horário, as ruas de QuantumBurg eram sempre movimentadas e barulhentas, principalmente naquela parte em que estavam.

As propagandas holográficas dos mais variados tamanhos, espalhadas por todos os lados, brilhavam sobre as pessoas. Salpicando suas roupas de tons de azul, roxo e rosa. Mavie tomava o cuidado para manter Penelape o mais próxima das sombras, para o caso de alguém olhar duas vezes.

Elas passaram por um holograma pixelado no meio da calçada. A imagem de uma mulher anunciava o novo MEG 2.0, uma inteligência artificial atualizada onde você poderia levá-la para qualquer lugar dentro do seu bolso.

– Já comprou a nova atualização da sua MEG? – Mavie inclinou a cabeça em direção ao anúncio.

– Só preciso... dela... em dois lugares... e já tenho as... extensões para isso.

Elas pararam perto da faixa de pedestre, esperando que mudasse de vermelho para verde permitindo a passagem. Um garoto passeando com um cachorro minúsculo parou ao lado delas. Ele virou o rosto para Penelape, a encarando duas vezes e arfando quando percebeu as manchas vermelhas em seu rosto.

– Não se preocupe... é Ketchup – ironizou, sentindo o corpo de Mavie vibrar no seu.

Ela inclinou a cabeça para observá-la, Mavie era apenas uns dez centímetros mais alta que ela, mas o simples movimento de precisar mover o pescoço, fez seu rosto retorcer em uma careta de dor.

Mavie estava com os lábios curvados em um sorriso divertido, o pirulito preso entre os dentes.

– Afinal Mavis, que porra é essa na sua... boca?

– Um pirulito – disse simplesmente, tentando dar de ombros. Mas um de seus braços sustentava Penelape. – Não são coisas de outro mundo, Poppy. Em qualquer conveniência consegue achar...

– Engraçadinha... Eu sei o que é um pirulito, só não entendo o porquê está chupando um.

– Bem, eu gostaria de estar chupando outra coisa. – Malícia brilhou em seus olhos, fazendo as sobrancelhas de Penelape arquear. – Mas infelizmente ela nem sabe que eu existo...

– Pobre Demônio. – A sombra de um sorriso pairando sobre os lábios de Penelape.

A faixa mudou para verde, e Mavie arrastou Penelape para casa. 


Em algum lugar entre os arranha-céus uma criatura de olhos vermelhos uivou, e uma garota de cabelos azuis olhou em direção a janela assustada.

Uma raposa de olhos brilhantes como o fogo era enjaulada ao lado de uma garota que foi enganada.

O sangue escorria dos lábios sorridentes de um Demônio de olhos vermelhos.

Nos desertos a quilômetros de distância, ouro rose brilhava com a crueldade de viciados em jogatina.

Nas sombras da prisão ele aguardava. O que? Não sabemos ao certo.

Uma menina tão velha, quanto a criação do mundo, olhava a todos com seus olhos de corvos.

Observando.

Sempre observando.

Demônio de NéonOnde histórias criam vida. Descubra agora