Capítulo 30

76 11 35
                                    

 O aguaceiro despencava sem piedade, encharcando a cidade de QuantumBurg. A água caía pelas beiradas das ruas elevadas, formando mini cachoeiras nos pequenos edifícios abaixo.

Penelape corria pelas ruas até as cidades baixas, suas botas pisando nas poças encharcando suas meias. As gotas de chuva batendo em seu capuz levantado do casaco impermeável. Daxton a tiracolo e o fantasma da mulher a acompanhava.

Assim que o Corvo mostrou onde Mavie estava, Penelape correu para pegar suas luvas, e saiu pelo apartamento de Daxton sem olhar para trás. O desespero invadindo cada canto dela, cegando seus olhos. Penelape só queria chegar até Mavie.

Uma parte de si se culpava por ter dado um gelo em sua amiga demônio. Se algo terrível tivesse acontecido com ela, Penelape não se perdoaria.

Ela virou a esquerda em uma bifurcação, e entrou nas ruas das cidades baixas. Ali sempre chovia esgoto, mas com a intensidade da chuva, o fedor era sufocante. Porém isso não foi o que chamou sua atenção. A falta de movimentação, assim como da outra vez, não havia ninguém perambulando pelas ruas, exatamente como Daxton havia dito. Apenas o som da chuva, e as botas dos dois batendo no asfalto.

Ao longe, rosnados e gemidos alcançaram Penelape, fazendo-a correr mais rápido seguindo o barulho. A sua direita, um clarão de chamas azuis invadiram sua visão periférica. Daxton havia tirado as luvas, a chama azul bruxuleava com as gotas de chuva. O cheiro de fumaça e esgoto preencheu suas narinas, fazendo seus olhos lacrimejar. Eles viraram entre duas construções, e o som da batalha a atingiu, fazendo com que quase tropeçasse ao parar.

Cães do Inferno invadiam a rua por todos os lados, eram muitos. Penelape nunca havia presenciado tantos antes. Corvos sobrevoavam ao redor, bicando, arranhando, arrancando parte das bestas. Alguns cães pingavam líquido preto de suas feridas. O cheiro de sangue podre se misturou ao do esgoto fazendo com que seu estômago revisasse. Ela não conseguia ver Mavie, mas sabia que sua amiga estava no centro de tudo.

– Daxton! – Sua voz saiu firme e ofegante entre os lábios. Seu coração batia tão alto que poderia ser ouvido por cima dos rosnados. Estava com medo por Mavie. Por ela mesma. Mas engoliu esse sentimento – Distrai o máximo de cães que conseguir, vou tentar abrir caminho até Mavie.

– É muito perigoso. – Pânico percorreu seus olhos azuis.

– É por isso que você não irá deixar nenhum deles me ferir. – Um sorriso travesso puxou seus lábios, e ela tornou a correr para Mavie.

Para os Cães do Inferno.

Uma serpente de fogo azul envolveu uma das bestas distraindo-a, cheiro de pelo queimado invadiu os sentidos de Penelape. A besta rosnou, virando para atacar. Antes que desse chance, Daxton abriu uma parte na lateral do cão e Penelape levantou as mãos encostando as palmas enluvadas na pelagem, o pulverizando à sua frente.

Eles repetiram esse processo várias vezes, mas parecia que cada vez que um Cão do Inferno virava pó, outros dois apareciam para cercá-los. Eles estavam em desvantagem numérica. Na verdade em desvantagem no geral, pois Penelape não tinha nenhuma noção de luta corporal. Ela sabia apenas levantar os braços e tocar em partes onde Daxton deixava a mostra nas pelagens. Em último caso ela era boa em fugir, corria por muitos quilômetros sem cansar e era rápida, muito rápida.

 Talvez ela só precisasse distrair uma boa quantidade de cães, e levá-los para longe, assim os restantes Mavie poderia dar conta deles.

– Daxton! – Berrou a plenos pulmões por cima do barulho da batalha – Tive uma ideia, mas você tem que me prometer que vai fazer de tudo para ajudar Mavie.

– Como assim? – Ele rosnou. Seu rosto estava retorcido, se era pelo esforço de manter os Cães longe deles, ou pela dor em suas mãos queimando cada vez mais, ela não sabia dizer.

Logo ele não aguentaria usar sua magia, seria queimado vivo por ela.

– Vou fazer com que uma boa parte venha atrás de mim...

– Mas nem fodendo!

Ela abriu a boca para responder, mas um cão virou em sua direção atraído pela gritaria. Ele pulou, levantou uma das patas, a garra afiada apontada diretamente para seu rosto. Penelape deu um pulo para o lado, mas foi lenta demais. Uma ardência subiu pela lateral de seu braço, fazendo lágrimas embaçar as laterais de sua visão. Antes que a besta atacasse de novo, Penelape levantou o braço a transformando em pó.

– Precisa confiar em mim, porra! – Rugiu para ele, a dor e a raiva sufocando sua garganta. – Faça dois paredões de fogo até aquele beco – Apontou para direita entre dois arranha-céus – Deixe que uma grande quantidade de cães me sigam.

Daxton balançou a cabeça, não deixaria que ela fizesse aquilo. Ele levantou uma parede de chamas azuis, os envolvendo, criando uma proteção rápida contra os cães.

 Penelape sentiu seu corpo ficar quente ali dentro. As chamas bruxuleando com a chuva, iluminando os dois. Ela olhou para as mãos de Daxton, o fogo saindo de suas palmas. O uso de sua magia havia queimado seus pulsos, deixando a pele vermelha, cheia de bolhas. Devia estar doendo como um inferno.

Ela se aproximou dele, inclinando o queixo para encarar seus olhos brilhando em desespero. Teriam apenas mais alguns instantes antes dos cães ultrapassarem a barreira.

– Dax...

– Não, Poppy. É suicidio.

– Confia em mim. Eu vou voltar, prometo.

– Não. Você não vai fazer isso. Vamos achar outra forma...

Ela deu mais um passo em sua direção, enfiou as mãos por dentro de seu casaco, agarrando a cintura dele, e o calou com um beijou.

Penelape esmagou seus lábios nos de Daxton, em um beijo rápido, carregado de promessas silenciosas e traição.

– Desculpa Dax – culpa transbordou entre seus lábios.

Antes que pudesse entender o que estava acontecendo. Penelape agarrou uma de suas pistolas no coldre em suas costelas. Deu dois passos para longe de Daxton, levantou a arma segurando firmemente com as duas mãos, apontando para ele.

Tentou fazer com que não tremesse de nervoso. Nunca havia precisado empunhar uma arma na vida. Em seu trabalho só era obrigatório o uso caso fosse sair em campo, mas Penelape preferia trabalhar nos laboratórios, dentro das salas seguras de necropsia.

Pelo menos ela sabia que havia uma trava de segurança na lateral da arma.

 O paredão de chamas se desfez, ela moveu a mira para longe de Daxton, respirou fundo tentando acalmar seus batimentos cardíacos. Suas mãos estavam molhadas com a água da chuva, suor e esgoto. Ela empurrou a trava, e apertou o gatilho atirando em nenhum alvo em específico.

O barulho ressoou em seus ouvidos. Alguns cães rosnaram em sua direção, atraídos pelo som da arma disparada.

– Daxton, agora! – Ordenou a plenos pulmões, e saiu correndo em direção ao beco.

Por um momento, Penelape sentiu seu coração se apertar, pois as chamas não a cercaram como ordenado. Mas então, o calor acariciou suas costas, invadindo sua visão periférica. Algumas mechas de cabelo molhadas, que haviam escapado do capuz, se agitaram com a lufada que o fogo de Daxton produziu.

Ela correu entre as chamas azuis que brilhavam com uma intensidade furiosa. Deu uma olhada por cima do ombro notando que muitos cães estavam sendo atraídos pela comoção, a seguindo. Como havia imaginado.

Antes de entrar no beco, seus olhos capturaram um Daxton furioso, impotente. O rugido que escapou de seus lábios a acompanhou até muito depois que já havia entrado no beco com os cães.

Demônio de NéonOnde histórias criam vida. Descubra agora