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Nicole

31 de Janeiro de 2024
Vila Catirí, Bangu
Zona Oeste, Rio de Janeiro.

Acordei como todos os dias da minha vida... sem a menor vontade de existir.

E mesmo que eu quisesse me dar ao luxo de pular a janela do meu quarto e sair sem rumo por aí, hoje era meu aniversário de vinte e quatro anos e eu sabia que a minha mãe estava esperando para pelo menos me parabenizar.

Não que fosse fazer alguma diferença na minha vida receber as felicitações da minha mãe, mas em meio ao todo caos que nós vivíamos, era uma tradição almoçarmos todos juntos nos nossos aniversários.

A ideia de ter que sentar ao lado e precisar ingerir algum alimento na presença do meu padrasto fazia com que o meu estomago revirasse por inteiro.

Todos os dias, a pelo menos quinze anos, eu desejava que aquele homem morresse e apodrece em baixo da terra. Desejava que ele queimasse nas chamas do inferno e não tivesse nem mesmo a possibilidade de tentar uma reencarnação. O mundo definitivamente não merecia aquele lixo.

Nem o mundo e nem a minha mãe.

Mas ela nunca viu o mesmo mostro que eu via. E no fim das contas, para ele, para as amigas da minha mãe e até mesmo para ela, eu era a filha rebelde que queria me livrar do padrasto.

O filho da puta nunca me enganou. Mesmo sendo uma criança, eu senti repulsa, nojo e raiva desde o primeiro dia que meus olhos se encontraram com os dele, e eu só tinha nove anos.

Ele nunca foi bom. Nem pra mim, nem pra minha mãe. Nossa vida era boa antes da chegada dele. Só eu e ela, vivendo com dificuldade, mas nos dávamos bem.

Quando o Murilo chegou, minha mãe achou que as coisas iam melhorar. Ela jurou que teríamos a vida perfeita ao lado daquele homem, porque ele era de boa família, era um policial, e segundo ela, sempre teve uma vontade imensa de ter filhos.

Graças a Deus, isso nunca se concretizou, ou então seria mais uma criança sofrendo nas mãos daquele crápula.

O meu genitor foi comprar cigarro quando eu nasci e nunca mais voltou, e eu tinha tanta inveja, porque eu mesma desejava fazer a mesma coisa que ele, desde que minha mãe resolveu se casar de novo. Mas eu não podia... porque tinha certeza que se eu deixasse ela sozinha naquele inferno, não demoraria muito tempo pra precisar lhe levar flores em um cemitério.

Meu celular despertou, anunciando ser meio dia. Eu precisei de mais alguns minutos encarando o teto do meu quarto antes de criar coragem de me levantar e ir até o banheiro, me ajeitando para o grande evento do dia.

Como esperado, ao entrar na sala eu encontrei o cara deitado no sofá, com seus pés encima do sofá e olhos vidrados na televisão. Ele notou a minha presença e nem se deu ao trabalho de virar o pescoço pra olhar.

Agradeci inconscientemente por isso.

Minha mãe desencostou a barriga do fogão e veio me abraçar com um sorriso lindo no rosto. Foi o melhor momento daquele dia.

Maria: Filha, feliz aniversário! Eu quero lembrar o quanto te amo e o quanto você é especial nas nossas vidas - reprimi a vontade de fazer careta ao escutar o "nossas vidas". Então ela desfez o nosso abraço, mas não tirou as mãos dos meus ombros - Estávamos te esperando pra comer.

Murilo: Demorou - ele ficou de pé, mas eu nem me mexi - Fica na rua até tarde todos os dias e acorda essa hora, por isso não arruma emprego nenhum e vive nas minhas costas.

Tentei respirar, mas a sensação de ouvir a voz daquele imundo era tão sufocante, que meus pulmões não conseguiam puxar o ar.

Queria perguntar de onde ele achava que sustentava eu e a minha mãe, porque ela era a única pessoa na casa que trabalhava. O Murilo vivia de uma pensão mequetrefe depois que foi exonerado do cargo da polícia por ter recebido uma denúncia de agressão contra mulher.

O que ele não sabia, e nunca saberia, é que quem fez aquela denúncia fui eu.

Aconteceu quando eu tinha quinze anos. Eu nunca tinha visto ele bater na minha mãe, mas tinha umas reações tóxicas. Alguns apertões, puxões e gritos. No dia que tudo aconteceu, ela precisou fazer hora extra no trabalho, ele bebeu demais, os dois discutiram e ele bateu nela. Bateu mesmo, pra valer. Mesmo que eu tivesse tentado impedir, não adiantou de nada, foi só mais um alvo pra ele descontar a raiva.

Então eu menti que ia pra escola no dia seguinte, e fui até a delegacia para fazer a denúncia.

Foi uma briga gigantesca na época. Fizeram exames, e mesmo que minha mãe negasse tudo e defendesse o filho da puta, ficou constatado que houve agressão. Minha mãe ficou separada por uma semana. Saber que ela preferiu ficar com ele mesmo depois de ele nos agredir foi uma das maiores decepções da minha vida: No fim das contas, o Murilo perdeu o cargo da polícia, pagou a porcaria da fiança, e agora vivia de uma pensão que a mamãe rica dele mandava.

Mas ele sempre torrava tudo com cerveja no bar, e com as putas que eu sabia que ele pagava pra comer. Por isso nós morávamos em uma casa comum. Não era grande, não tinha luxo... era tudo que minha mãe podia pagar com seu salário.

Eu não tinha um emprego fixo. Fazia uns bicos vez ou outra, geralmente em eventos como garçonete e entregava a grana toda pra minha mãe, pra tentar ajudar com os gastos ao menos, mas já fazia umas semanas que não aparecia nada.

Maria: Vem, vamos comer - ela me soltou, e andou até a mesa, tentando cortar o clima terrível na sala - Fiz um bolo de sobremesa pra você assoprar as velas.

Virei meu pescoço pra encarar o verme que passou ao meu lado, sentou na ponta da mesa e entregou o prato para que minha mãe pudesse servi-lo.

Torci o nariz com a cena. Não conseguiria ficar naquela casa por mais segundo.

Nicole: Combinei com a Thayla que vamos almoçar juntas - senti o olhar desapontado da minha mãe em mim, mas não a encarei. Eu tirei o isqueiro do bolso e acendi a vela encima do bolo, assoprando logo em seguida - Tenho certeza que está uma delícia.

Murilo: Senta nessa porra dessa mesa e come, Nicole!

Respirei fundo, mas não me intimidei. Virei de costas e saí em direção a porta da frente. Mesmo assim consegui ouvir minha mãe tentando acalma-lo.

Maria: Deixa ela ir. Ela já tinha me avisado, eu que esqueci - mentiu.

Eu não tinha combinado de almoçar com a Thayla coisa nenhuma. Eu só não queria mais ficar naquele inferno, e a cada segundo que passava, começava a considerar a ideia de morar na rua, porque qualquer coisa parecia ser melhor do que continuar embaixo do mesmo teto que aquele homem.

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