As lembranças do enterro ainda são um borrão na minha memória, mas lembro da mão dele na minha o tempo todo, do cheiro do seu perfume acompanhando meus passos. Lembro também do trajeto de volta ao hospital, de ir a minha antiga casa para buscar algumas pertences e depois ao abrigo com a assistente social, Luiza, seguindo a caminhonete com o carro dela. Ela foi um doce conosco, achou que éramos namorados.
Eu tremia, desesperada. Chorava também. Quanto mais perto estávamos, pior ficava.
- Madah, tenta ficar calma. Vai ser só por alguns meses, depois você vai ficar livre. - O Filipe tentou me tranquilizar.
- Esse é o meu medo. Daqui 8 meses, o que eu vou fazer? Agora eu acho que consigo suportar... - Eu concluí em meio as lágrimas.
- Nós vamos pensar em alguma coisa juntos. Temos algum tempo. Eu vou te ajudar, tá bem? - Eu fiz que sim com a cabeça. Eu não conseguia falar. Ele me deu água, lenços e mais lenços de papel. Eu fiquei segurando a mão dele com tanta força. Tanta força.
A Luiza bateu no vidro. Indicando que havia chegado a hora de entrar. Depois se virou de costas, arrastando uma das minhas pesadas malas.
- Acho que chegou a minha hora! - Eu falei e deu um sorriso forçado.
- Me dá seu celular. - Ele encostou na minha mão, tentando pegar o aparelho. - Pra eu anotar meu número. Pode me ligar, quando quiser. Quantas vezes quiser. - Eu só concordei. Ele anotou seu número e ligou pra si mesmo, pra que ele tivesse meu contato também.
Eu fiquei hipnotizada acompanhando seus movimentos. Ele era centrado e preciso em cada palavra, em cada gesto. Já eu impulsiva, quase irresponsável. Me aproximei pra me despedir e em um erro no cálculo dos dois beijinhos socialmente aceitáveis para dois amigos, nossas bocas se roçaram. Ele se afastou rápido, sem graça, mas não disse nada. Já eu me aproximei e o beijei. Foi só um selinho, mas molhado e eu pude sentir o quando sua boca era macia.
- Desculpa! Eu não... - Tentei corrigir minha impulsividade. Me afastei, mas fiquei olhando fixamente para ele.
- Não precisa pedir, eu gostei. - E me devolveu o beijo, mordendo de leve meu lábio inferior. Depois sorriu.
- O que foi? - Eu perguntei um tanto confusa e irritada. Achei que ele estivesse zombando de mim. A colegial idiota, chorona que tinha acabado de ficar sozinha no mundo.
- Tu precisa ir! - Ele sorriu de novo da minha expressão, mostrando a Luiza do lado de fora do carro. Eu levei um susto e sorri sem graça. Ele desceu do carro, tirou as malas, me abraçou e me deu um beijinho doce nos cabelos.
Meus movimentos eram muito lentos, mas em certo momento eu precisei arrastar minha pesada mala pra dentro da casa.
No lar de acolhimento eu passei a dividir quarto com outras três gurias adolescentes. Todas entre 15 e 17 anos. Logo que cheguei elas fizeram mil perguntas, não entendiam como eu tinha ido parar ali se eu tinha coisas boas, o celular do momento e uma família amorosa.
Até eu demorei a entender que meus pais, de certa forma, viviam uma vida confortável, mas
instável. Minha mãe viveu para cuidar de mim e fazia alguns doces para vender fora. Meu pai era funcionário de uma boa empresa e ganhava quatro mil reais, mas morávamos de aluguel e tínhamos um carro bom, mas financiado. O carro deu perda total no acidente, estava com várias parcelas atrasadas com anotação para busca e apreensão, o banco quitou a dívida por morte. Não tínhamos seguro. O dinheiro em conta foi usado para quitar um ano de aluguéis atrasados. Não era suficiente para o colégio, mas a direção me manteve matriculada e me deu uma bolsa no último ano, para que eu pelo menos me formasse no ensino médio.
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TEMPO, TEMPO, TEMPO
RomanceAté quando vale a pena lutar por um amor? O quanto vale a pena deixar os sonhos de lado por um casamento? Por um homem? O quanto se pode errar e voltar atrás? O quanto o amor é capaz de perdoar? O quanto os erros nos fazem perfeitos? O quanto os e...