GUSTAVO - CINQUENTA E DOIS

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Um mês depois...

- Você está bem?

Refleti sobre a pergunta que tenho ouvido repetidamente nos últimos dias. Cada vez que alguém me fazia essa pergunta, eu me via forçado a encarar a realidade que, embora desconfortável, não poderia mais ser ignorada.

Apesar da melhora, não estava completamente fora de perigo. A estabilidade do meu quadro era frágil, e todos ao meu redor sabiam disso, inclusive eu. Ainda corria riscos. "Alguns riscos" seria eufemismo, e a verdade é que todos os riscos ainda estavam ali, me rondando. Mas, por causa do dia de amanhã, Guilherme resolveu me dar uma alta temporária.

Amanhã seria o casamento de Analiz. Inicialmente marcado para o próximo mês, foi adiado quando eu adoeci. Sabíamos que o adiamento tinha sido feito pensando em mim. Agora, com essa aparente estabilidade, ainda que Guilherme tentasse esconder que havia conversado com Analiz sobre adiantar a cerimônia, eu sabia que isso só aconteceu por causa da minha saúde incerta. Ela queria que eu estivesse presente. Ela queria que eu visse esse momento.

Não era difícil entender o motivo. Analiz sempre foi a filha que esteve ao meu lado nos momentos mais difíceis, e agora eu teria a chance de estar ao lado dela no momento mais importante da sua vida. Ao menos era isso o que eu queria acreditar. Lá no fundo, eu sabia que poderia ser a última vez que compartilharia algo assim com ela. Não era uma ideia que me agradava, e pensar nisso me causava uma sensação profunda de desconforto. Mas se fosse para partir depois disso, morreria feliz por saber que minha filha finalmente encontrou a felicidade.

- Gustavo? Você me ouviu? - A voz de Guilherme trouxe-me de volta ao presente, com um tom de preocupação cada vez mais evidente.

- Sim, eu ouvi - suspirei, com cansaço. - Mas, sinceramente, você não deveria ter me dado essa alta se fosse para ficar tão preocupado o tempo todo.

Senti o olhar de Guilherme pesar sobre mim. Ele sabia que eu estava ciente da gravidade do meu estado, e que, apesar de sua formação médica, havia pouco que ele pudesse fazer para mudar essa realidade. Ele não queria me dar falsas esperanças, e também não queria ser frio.

- Estou bem, Guilherme - disse com mais firmeza, tentando encerrar a conversa antes que ela se tornasse mais difícil do que já era.

- Gustavo, você sabe que isso não é só sobre hoje - começou ele, hesitante. - Essa alta é arriscada. Seu corpo ainda está se recuperando, e...

- Eu sei, Guilherme. Sei de tudo isso - interrompi, virando o rosto para a janela. - Mas é o casamento da minha filha. Ela adiou esse dia por minha causa. O mínimo que posso fazer é estar lá por ela, nem que seja a última coisa que eu faça.

Guilherme suspirou profundamente, seus ombros caindo um pouco com o peso do que estávamos enfrentando.

- Só estou preocupado com você. E com Analiz, também. Ela já passou por muita coisa, Gustavo.

- E vai passar por mais ainda - completei, minha voz mais baixa. - Mas amanhã... amanhã tem que ser um dia feliz para ela.

O restante do trajeto foi silencioso. Parecia que ambos estávamos presos em nossos próprios pensamentos, e isso me servia de alívio. Preferia o silêncio ao peso das palavras que poderiam ser ditas.

Quando chegamos ao prédio, nem percebi de imediato. Guilherme estacionou e saiu do carro. Enquanto ele pegava minha bengala no porta-malas, fiquei um momento ali, sentado, refletindo sobre o que estava por vir. Não apenas o casamento de Analiz, mas tudo o que ainda poderia acontecer comigo.

Finalmente, desci do carro com a ajuda de Guilherme. O infarto tinha me deixado sequelas, e a mais difícil de todas era a fraqueza constante que se espalhava pelo meu corpo. Cada passo era uma batalha. Dependia da bengala para me mover, ou, em dias piores, de uma cadeira de rodas. Ainda estava me adaptando a essa nova realidade.

Com passos lentos, nos dirigimos ao elevador. Cumprimentei o porteiro, que vagamente me trouxe à memória o dia fatídico do infarto. As lembranças eram fragmentadas, mas ainda vívidas o suficiente para me fazer estremecer. No elevador, me escorei contra a parede, fechando os olhos brevemente enquanto sentia o cansaço tomando conta de mim.

Quando o elevador chegou ao meu andar, saímos em passos lentos e calculados. A dor e a fadiga eram constantes, mas eu sabia que precisava continuar. O corredor parecia mais longo do que o habitual, cada passo mais pesado. Mas o que realmente me abalou foi a visão que me aguardava ao chegar à porta do meu apartamento: Mirela saindo da casa de Felipe.

Ela não me viu de imediato, mas quando seus olhos me encontraram, seu rosto ficou vermelho. Não sabia se era de vergonha ou de outra coisa, mas a essa altura, já não acreditava que Mirela pudesse sentir vergonha de algo.

- Pai... - Ela murmurou, quase num sussurro.

Eu a ignorei, focando apenas em abrir a porta de casa. Não queria prolongar aquilo. Queria apenas descansar e me preparar para o dia seguinte.

- Pai, espera... - Ela tentou me tocar, mas eu rapidamente afastei meu braço do alcance dela.

- Não me toque - disse, com a voz carregada de frustração e cansaço.

Ela parou, estática, enquanto eu finalmente girava a maçaneta da porta e entrava no apartamento. Mas, para minha surpresa, Daniella estava lá, sentada no sofá, como se estivesse esperando por mim.

- Até que enfim - disse ela, levantando-se lentamente. - Temos uma conversa pendente.

- Seu Gustavo, eu tentei impedi-la, mas ela simplesmente entrou... - começou Sônia, a nova empregada que Guilherme havia contratado, tentando se justificar.

- Tudo bem, Sônia - respondi com mais calma do que sentia. - Não se preocupe.

- O que você está fazendo aqui, Daniella? - Guilherme interveio, visivelmente desconfortável.

- Eu e Gustavo temos uma conversa pendente - ela repetiu, sem desviar os olhos de mim. - E não vou sair daqui até ouvir tudo.

- Tudo o quê? - perguntei, exausto tanto física quanto emocionalmente.

Daniella hesitou, sua postura rígida amolecendo ligeiramente enquanto olhava de mim para Guilherme.

- Sobre Aurora - foi Guilherme quem respondeu, com um suspiro pesado. - Eu queria contar a você com calma, mas Ágatha e Daniella discutiram, e no meio da briga... Ágatha contou sobre Aurora.

- Aurora... - murmurei, sentindo o peso do nome que tentei proteger por tanto tempo. - Guilherme, deixe-me a sós com Daniella. Todos vocês.

- Gustavo, você não está bem para... - começou Guilherme, mas o interrompi.

- Por favor - pedi, com firmeza. - Deixe-me sozinho com ela.

Ele hesitou, mas acabou assentindo.

- Estarei lá fora, se precisar - disse, antes de sair com Sônia e Mirela.

A porta se fechou com um clique suave, e de repente, a sala pareceu pequena demais para nós dois. O silêncio entre mim e Daniella era quase palpável, como se todas as palavras não ditas ao longo dos anos tivessem se acumulado ali.

- Quero que me conte a verdade, Gustavo. Toda a verdade, sem rodeios. - Sua voz, embora firme, tinha uma nota de tristeza que eu não esperava ouvir.

Eu a olhei por um longo momento. Estava diante de uma mulher que, por mais complicada que fosse nossa história, merecia saber a verdade. Não por mim, mas por ela. Eu sabia que, a partir do momento em que falasse, não haveria mais volta.

- Está pronta para ouvir tudo, Daniella? - perguntei, minha voz saindo mais baixa do que eu pretendia. - Porque a partir do momento que souber... nada mais será como antes.

Ela respirou fundo, mas manteve os olhos fixos em mim.

- Eu preciso saber, Gustavo. Preciso saber sobre Aurora.

Sabia que esse momento chegaria. Sabia que, ao falar o nome da filha que ela nunca conheceu, algo mudaria para sempre.

Eu só não sabia se Daniella estava preparada para isso...

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