GUSTAVO - CINQUENTA E TRÊS

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O silêncio dentro do apartamento era denso, quase palpável. Eu e Daniella nos encarávamos, ambos à beira de um precipício que nenhum de nós sabia como evitar. Ela estava impaciente, exigindo respostas que eu temia dar. Havia esperado tempo demais, e agora, sabendo que eu detinha a verdade, não recuaria sem ouvir tudo.

— Onde está Aurora? — A voz dela vacilou, mas o olhar era firme, implacável.

Eu respirei fundo. O que estava prestes a dizer iria despedaçá-la de maneiras que ela nem imaginava. Daniella não estava ali apenas por Aurora. Ela trazia consigo anos de desconfiança, mágoa e rancor. Para ela, eu e Analiz tínhamos um caso, e o divórcio fora consequência disso. Mas a verdade era muito, muito pior.

— Daniella... — comecei, escolhendo com cuidado cada palavra.

— Não comece com rodeios, Gustavo! — Ela interrompeu, o tom cortante e afiado. Seus olhos estavam cheios daquela raiva latente, uma chama que nunca se apagou. — Eu sei o que você tem com aquela mulher! Você acha que sou burra? Acha que não percebi o jeito que você olha para ela? Eu sei que vocês têm um caso! — Ela se levantou abruptamente, o corpo inteiro tremendo com a força das emoções. — Foi por isso que pediu o divórcio, não foi? Foi por ela!

Eu permaneci em silêncio enquanto ela desabafava. Ela estava errada, mas a dor que sentia era real. Quando finalmente se calou, eu suspirei, cansado de lutar contra fantasmas que ela criara.

— Não foi por ela — disse, com firmeza. — O divórcio não teve nada a ver com Analiz. Nossos problemas começaram muito antes dela entrar em nossas vidas, e você sabe disso. O que você não sabe, Daniella, é que há algo muito maior por trás de tudo isso.

Ela hesitou, a confusão substituindo momentaneamente a fúria, mas o olhar de desconfiança ainda estava lá.

— Então me diga. O que poderia ser pior do que a traição? — desafiou, cruzando os braços, como se quisesse se proteger da verdade.

Dei um passo à frente, sentindo o peso do que estava prestes a dizer. O ar entre nós parecia carregado de eletricidade, e eu sabia que, depois disso, nada mais seria o mesmo.

— Analiz... — comecei, minha voz quase um sussurro. — Analiz é Aurora.

Ela piscou, como se tentasse processar o que eu acabara de dizer.

— O quê? — Ela balbuciou, os olhos se estreitando de incredulidade. — O que você está dizendo?

— Analiz — repeti, com firmeza. — Ela é nossa filha, Daniella. Ela é Aurora.

O choque estampou-se no rosto dela. A cor sumiu de sua pele, e por um instante, ela pareceu cambalear, segurando-se na beirada do sofá como se o chão tivesse desaparecido sob seus pés.

— Isso... isso é mentira — ela murmurou, os lábios tremendo. — Não pode ser... ela não pode ser a minha filha.

Eu balancei a cabeça, sem suavizar o golpe. A verdade era implacável.

— Há algum tempo, Guilherme foi o primeiro a suspeitar. Ele viu a medalha de São Bento no pescoço de Analiz. A mesma que dei a Aurora no dia em que ela nasceu. Você se lembra, não é? Mandei fazer uma medalha única, de ouro, para cada uma das nossas filhas. Quando Guilherme viu, soube que não era coincidência. Fizemos um teste de DNA para tirar qualquer dúvida... e o resultado foi positivo. Analiz é nossa filha, Daniella. Ela é Aurora, a filha que perdemos há 21 anos.

Ela arregalou os olhos, tentando juntar as peças.

— A... medalha? — A voz dela era fraca, como se a realidade estivesse se despedaçando ao seu redor. — Não... não pode ser...

— É a mesma medalha, Daniella — continuei, controlando minha própria dor ao contar essa história. — A mesma que ela usava quando desapareceu. Guilherme foi o primeiro a notar. Fizemos o teste e... não há dúvidas. Analiz é Aurora.

Daniella deu um passo para trás, suas mãos tremendo. O choque que vi em seus olhos logo se transformou em algo muito mais sombrio. Eu sabia o que vinha a seguir.

— Não... — ela murmurou, sua voz subindo com a indignação. — Não! Ela não pode ser Aurora! Ela não pode ser a minha filha! — As lágrimas começaram a brotar de seus olhos, descendo por seu rosto em rios silenciosos. — Eu... eu disse que ela devia morrer, Gustavo! — A culpa transbordava agora, suas palavras ecoando no silêncio da sala. — Quando ela precisou de sangue, eu disse que ela devia morrer! E ela... era a nossa filha o tempo todo? A nossa filha?

Ela desabou no sofá, as lágrimas fluindo descontroladamente, seus ombros tremendo sob o peso de suas próprias palavras. Fiquei ali, parado, observando o colapso de uma mulher que, apesar de tudo, tinha sido a mãe das minhas filhas.

— Eu... eu a odeio tanto... — ela sussurrou, seus olhos agora vidrados, encarando um ponto qualquer no chão. — Sempre a odiei. Achei que ela estava te roubando de mim. E agora você me diz que... que ela é nossa filha?

Eu a observei em silêncio, sentindo o peso da dor que cada uma de suas palavras carregava. Daniella tinha feito coisas terríveis a Analiz, e agora, confrontada com a verdade, parecia não saber como lidar com o fardo que ela mesma havia criado.

— Eu não sabia como te contar — admiti, minha voz baixa, quebrada pelo cansaço emocional. — Quando te pedi para doar sangue a ela, eu... queria te contar. Eu queria te dizer a verdade naquele momento.

— E por que não disse? — Ela levantou a voz, sua expressão um misto de dor e fúria. — Por que não me contou naquele momento?

— Eu quis — admiti, sinceramente. — Mas quando vi você negando, falando tão mal de Analiz... eu simplesmente não consegui. Eu queria ver algum traço da mulher de quem me apaixonei, a mulher doce e generosa que eu conheci. Mas naquele momento, você estava tão cheia de ódio...

Daniella ficou em silêncio, minhas palavras atingindo-a com a força de um soco.

— Eu também fiquei devastado ao descobrir, mas... — continuei, com um pequeno sorriso nostálgico — quando a verdade veio à tona, algo em mim também ficou aliviado. Porque eu conheci nossa filha, Daniella. Conheci Analiz. E ela é incrível. A Aurora que perdemos cresceu e se tornou uma mulher forte, maravilhosa. Você nunca teve a chance de conhecê-la, mas eu tive. E acredite... ela é tudo o que poderíamos ter sonhado.

Daniella se encolheu no sofá, abraçando os próprios joelhos, como se tentasse se proteger da verdade que agora a esmagava. O silêncio que se seguiu foi pesado, doloroso, cheio de tudo o que nunca dissemos.

Depois de anos de ódio, desconfianças e culpa, Daniella finalmente sabia a verdade. Mas, de alguma forma, essa verdade parecia muito pior do que qualquer traição que ela poderia ter imaginado.

Eu a observei por um instante, antes de dar um último olhar à mulher que, apesar de tudo, havia sido uma parte importante da minha vida. Então, virei-me e saí da sala, deixando-a sozinha para enfrentar as consequências da verdade.

Essa revelação mudaria tudo. Para sempre.

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⏰ Última atualização: 2 days ago ⏰

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