Aquele Idiota 2 - 22_ Clara e Marcos

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Clara

Lembranças são uma armadilha. Elas vêm como fragmentos de vidro, cortando devagar enquanto tentam me lembrar de onde tudo começou.

Eu tinha 14 anos quando entrei pela primeira vez naquele consultório, com a porta de madeira pesada e o cheiro forte de lavanda. Marcos estava sentado, o sorriso cordial estampado no rosto. Sua presença, aparentemente acolhedora, era a última coisa que esperava encontrar.

— Você pode falar sobre o que quiser, Clara. — A voz dele era um convite, suave, como se fosse uma mão estendida no meio de uma tempestade.

Nos primeiros meses, ele se mostrava atencioso. Fazia perguntas, ouvia pacientemente cada palavra minha, cada medo e insegurança. Eu me abria, porque ele parecia ser a única pessoa que enxergava algo em mim que ninguém mais via. Mas, depois de um tempo, ele começou a mudar o tom.

— Sabe, Clara… acho que você nunca vai encontrar alguém que entenda você do jeito que eu entendo. — Seus olhos se estreitaram, e a voz tinha uma doçura perigosa, como se houvesse algo escondido nas entrelinhas.

Eu não compreendia naquela época, mas estava me tornando dependente dele. Ele sabia onde mexer, que palavras usar para me prender. E, pouco a pouco, começou a fazer perguntas sobre minha vida pessoal que, em retrospectiva, pareciam invasivas demais.

Um dia, ele interrompeu uma sessão no meio de uma conversa sobre meus traumas, inclinando-se mais para perto.

— Sabe, Clara… as pessoas lá fora não são confiáveis. Elas vão te machucar, te manipular. Eu sou o único que pode te proteger, e você precisa entender isso. — Ele me encarava com uma intensidade perturbadora, e eu acreditava em cada palavra.

O comportamento de Marcos se tornou ainda mais estranho. Ele começava a tocar meu ombro, um toque que deveria ser um gesto de apoio, mas ele sempre o acariciava de um jeito estranho e sempre durava tempo demais. A sensação era incômoda, mas eu não queria acreditar que havia algo de errado.

— Você está linda hoje, sabia? — ele disse uma vez, sem desviar o olhar. — Está crescendo, se tornando uma mulher.

Senti o estômago revirar, mas forcei um sorriso, achando que estava sendo apenas paranoica. Ele era meu terapeuta. Um profissional, certo?

Até que, um dia, ele tocou meu rosto, deslizando os dedos devagar até meu queixo, como se quisesse garantir que eu olhasse diretamente para ele.

— Sabe que pode confiar em mim, não sabe? Eu sou a única pessoa que você tem. Se contar algo para os outros, ninguém vai entender… podem até te julgar. — A voz dele estava baixa, e aquelas palavras enterraram um medo profundo em mim.

Eu queria fugir, mas ele sempre me lembrava de como eu precisava dele, de como era incompreendida. Eu me sentia presa, com medo de que ele estivesse certo — de que ninguém mais enxergava algo bom em mim, ninguém a não ser ele. E assim, a armadilha estava feita.

Essas memórias voltam para mim como sombras. Eu cresci com esse peso, com essa sensação de traição, nojo e desprezo. Mas mesmo que ele abusou de mim inúmeras vezes, eu o amei. A Sienna também amou o pai mesmo ele fazendo com ela também.

E agora vejo Ayla, que escapou do Marcos e está feliz, enquanto eu fui jogada na escuridão.

Ayla talvez ache que me conhece, mas ela não sabe nada. E, se eu puder desestabilizar tudo o que ela construiu, vou fazer. Porque o que ela têm é a liberdade que me foi roubada — e eu a quero de volta.

Lembro como hoje quando Marcos decidiu sugerir um "exercício" incomum.

— Quero que feche os olhos, Clara. Confie em mim, ok? Respire fundo e deixe-se levar. — Ele falou devagar, segurando sua mão com firmeza, seus dedos apertando os dela.

Eu obedeci, a respiração tremendo enquanto os meus olhos se fechavam. Marcos começou a deslizar os dedos pelo meu braço, num toque que, para qualquer outra pessoa, soaria estranho. Ele falava com uma voz suave, que tentava tranqüilizar, embora houvesse algo sombrio ali.

— Sinta o toque, Clara. Este é o tipo de apoio que só alguém que se importa com você pode dar. Não precisa se sentir culpada, ok?

Eu me encolhi por dentro, mas, dominada pela manipulação de Marcos, achei que devia aceitar. Sentia-me quebrada, insegura, e ele havia cultivado a dependência em mim a ponto de quase anular seu instinto de repulsa. Os toques dele foram para todos os lugares do meu corpo... seios... até parar no meio das minhas pernas. E pra mim tava sendo normal. Era normal.

Houve um dia em que, após uma sessão particularmente difícil, Marcos me segurou com força, puxando-a para um abraço que durou muito além do confortável. Ele começou a deslizar a mão pelas minhas costas, cada vez mais baixo, pela minha bunda, enquanto sussurrava coisas em meu ouvido.

— Você é especial, Clara. Muito especial. Ninguém entende isso, só eu. — Ele dizia, com os dedos me pressionando com força. — E eu vou te proteger, sempre.

Eu sentia o estômago revirar, mas estava presa naquele abraço, sem saber como sair, sem saber como escapar do que ele havia se tornado pra mim.

Essas sessões continuaram por meses. Marcos alternava entre manipulação emocional e toques que passavam do limite, tudo disfarçado sob a promessa de que "isso era o que ela precisava". E eu vulnerável e sem apoio, começei a acreditar que era normal. Que isso fazia parte do tratamento. Quando ele começou a enfiar aquele pau em mim...

Agora, eu estava em meu quarto, as mãos trêmulas enquanto essas lembranças invadiam sua mente. Eu apertava os punhos, o rosto vermelho de raiva e vergonha. A cada lembrança, a angústia crescia, junto com o ódio profundo que nutrio por Marcos… mas também pelo amor por ele. Ele... eu acho que sou maluca. Ele me falava coisas tão lindas.

Ver Ayla tão feliz e protegida, como se nada do que ela havia passado pudesse alcançá-la, era insuportável. Porque, eu sabia mais do que ninguém, que o horror de Marcos não tinha fim.
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Continua...

Aquele IdiotaOnde histórias criam vida. Descubra agora