Anne's POV
Seu olhar era penetrante, e eu comecei e me sentir completamente exposta àquele olhar. Desviei os olhos, voltando a tentar ler o livro à minha frente.
– Ainda aquele livro?
– É. Avancei bastante hoje, já passei da metade. - Respondi.
– Você lê com um dicionário?
– Sim. - Pela milionésima vez, corei. Minha mania de corar na frente dele já estava ficando irritante. - Tem algumas palavras… Sabe, difíceis. Eu não entendo, aí eu procuro no dicionário, e então posso continuar lendo.
– Isso mostra uma grande força de vontade sua, sabia? A maioria das pessoas, quando leem algo que não entendem, simplesmente deixam pra lá. Preferem não entender o trecho de um livro a se mexerem e irem procurar o significado da palavra.
– Bom, eu entendo menos palavras do que a maioria das pessoas.
– Hm… Você… Não estudou?
– Ah, estudei sim. Eu era uma aluna mediana no colégio que estudava. Mas aí eu tive que sair. - Olhei para as mãos.
– Por quê?
Encarei-o novamente. Sua expressão me encorajava a continuar, e pela primeira vez eu pude ver alguém, além de Júlia, genuinamente interessado no que eu tinha a dizer.
– Bom, eu… Eu tinha dez anos quando meu pai morreu. Levou dois tiros em um assalto. Minha mãe era dona de casa, nunca trabalhou, e nos sustentávamos com dinheiro do meu pai. Ele era policial. Quando ele morreu minha mãe teve que procurar um emprego. Como ela não sabia fazer muita coisa, arranjou um emprego de garçonete. Pagava pouco e exigia muitas horas do dia dela. Então eu tive que sair da escola pra tomar conta da casa. Essas coisas.
– Eu lamento.
Pude ver que ele realmente lamentava.
– E sua mãe… - Ele continuou.
– Morreu há pouco mais de 3 anos. Drogas, álcool, depressão. Essas coisas. Tudo por causa de um infeliz que ela conheceu…
Suspirei. Falar dela e do meu pai doía. Eu podia sentir a dor com clareza naquele momento, porque era a primeira vez que realmente conversava sobre aquele assunto com alguém.
– Ela era linda, sabe? Minha mãe. Tinha olhos claros e muito vivos, antes de conhecer aquele filho da puta. E mesmo quando estava triste você podia ver que algo nela iluminava a sua vida. Era como se dentro dela existisse algum tipo de sol. E ela era diferente das outras pessoas. Ela era bonita, bonita por dentro e por fora.
– Deve haver uma ou duas coisas dela em você.
Encarei-o e, sem nem saber porquê, sorri. Ele retribuiu o sorriso.
– O sorriso dela era tão bonito quanto o seu?
– Era muito mais bonito. - Falei envergonhada. - Ela não devia ter morrido assim tão jovem. Ainda havia muitas pessoas pra ela iluminar.
Enxuguei uma lágrima que escorreu pelo meu rosto, me pegando de surpresa.
– Talvez esse seja o seu papel agora. - Bruno concluiu.
Dei um riso triste e abafado.
– Não acho que possa desempenhar esse papel. Não sou a metade da mulher que ela foi…
– Você me ilumina
Ele disse isso calmamente, e continuou me olhando como se tivesse acabado de me dar bom dia.
– Há algo em você. Eu notei isso no primeiro dia que te vi. Você é muito diferente de grande parte das mulheres, Ninha.
– Não sou. É impressão sua. Ninguém é diferente de ninguém.
– É sim. Todo mundo é diferente. Existem pessoas ordinárias e existem pessoas especiais. É uma pena que você não veja isso.
– No meu mundo existem apenas pessoas. Elas só se aproximam de você porque têm algum interesse. Ninguém está lá pura e simplesmente pra te ajudar. Você precisa dar algo em troca.
– Talvez o que elas peçam em troca não seja muito. Talvez seja só uma amizade.
– Bruno… - Falei, minha voz embargada com uma tristeza que não estava nos meus planos para aquela tarde - Ninguém nunca me pediu só amizade.
Ele ficou calado. Eu vi em sua expressão que ele não tinha nada que pudesse ser dito para me fazer sentir melhor. Mas isso não era novidade.
– Você odeia essa vida, não é? - Finalmente perguntou.
– Você não faz ideia.
Pela primeira vez ele desviou o olhar, fitando agora suas mãos molhadas.
– As outras garotas… Elas não ligam. Mas pra você é um castigo.
Permaneci em silêncio, fitando minhas próprias mãos.
– Você ganhou minha simpatia de graça, sabe? - Ele continuou - Eu acho você uma pessoa bacana, e conforme o tempo passa, me sinto gostando mais de você.
Olhei para ele um pouco eufórica.
– Eu não quero fazer parte disso, Anne. Não sabia que era assim.
– Eu… - Comecei, mas não sabia o que dizer.
– Não sei de todos os pecados que você cometeu na vida, mas posso ver que você é uma pessoa boa. E pessoas boas não merecem sofrer. Pelo menos eu gosto de pensar que eu não estou ajudando a tornar a vida delas mais miserável. - Ele me olhou novamente - Não vou fazer mais isso com você. Não vou mais te usar pra tapar os buracos da minha própria vida. Não é justo, e sinto muito ter feito isso até agora.
Sim, ele devia se desculpar. Sim, ele fazia parte da mediocridade da minha vida, e ajudava a torná-la mais miserável. Ele era um cliente, uma pessoa que me fazia lembrar a cada dia por que eu odiava a minha vida. Mas, ao mesmo tempo, ele era a pessoa que me fazia sentir, a cada dia que passava, um pouco menos infeliz. Uma pessoa que se destacava, que se diferenciava das outras simplesmente por ser do jeito que era, mas também porque se importava comigo. Se importava de verdade.
Senti meu coração derretendo aos poucos enquanto o fitava ali, molhado, parado à minha frente. Meus sentimentos pareciam lutar dentro de mim, travando uma briga que nem eu mesma poderia apartar. Uma mistura de raiva, desejo e loucura me confundiam, e eu não sabia ao certo o que dizer, mas sabia que precisava falar alguma coisa.
Ainda assim, podia sentir meu peito quase explodindo. Ele era pequeno para manter tantas coisas que lutavam entre si pela liderança lá dentro. Senti uma onda repentina de sinceridade se apoderando de mim, e antes que pudesse sair correndo deixando-o com meu silêncio, fechei os olhos e simplesmente falei:
– Você é a melhor coisa que aconteceu comigo durante todo esse tempo. Você é a única pessoa que se preocupa com o fato de eu estar machucada ou não. Você foi a única pessoa que me perguntou sobre a minha vida. Eu sinto muito te dizer isso, sinto muito não conseguir calar a boca agora, mas eu não quero que você vá embora. - Outra lágrima escorreu pelo meu rosto, mas não me importei
– Não se assuste comigo, eu só… Eu só gosto de ter você por perto. Eu me sinto segura. Eu sei que você não quer esse tipo de responsabilidade, e você não precisa ter. Mas só a sua presença já me passa isso. Você não precisa fazer muito mais do que estar por perto.
Ele me fitava um pouco assustado, mas agora não havia mais como voltar atrás. Bruno engoliu depois de algum tempo em silêncio. Passou as mãos nos cabelos sem saber muito o que fazer, e finalmente falou:
– É por perto que você me quer?
– Sim. - Respondi sem pestanejar.
Ele sorriu. Aquele sorriso torto.
– Então é por perto que eu vou estar.
Sorri de volta, secando meu rosto.
– Você fica muito mais bonita sorrindo.
– Vou tentar sorrir mais vezes então. - Falei em tom de brincadeira.
– Vou cobrar isso de você.
A chuva agora era uma fina cortina de gotas muito pequenas, tão leves que demoravam a cair. No céu, um sol tímido iluminava fragilmente as nuvens, e a combinação disso pintou um arco-íris tão grande que ocupava toda a parte visível do céu cinzento.
Bruno olhou para mim, apontando para o colorido acima de nós.
– Viu? - Falou calmamente - Quando o tempo bom e o tempo ruim se misturam em um só, o resultado é mais bonito do que se espera.
Alguns minutos depois o sol já havia se posto, deixando o ambiente gradativamente mais escuro. A chuva havia cessado e algumas pessoas já se arriscavam a passear no parque antes deserto. A conversa entre mim e Bruno tomou um rumo mais agradável, e então falamos de coisas mais banais. Infelizmente ele me perguntava coisas demais, e eu não tinha a oportunidade de saber um pouco da vida dele também.
– É melhor ir embora antes que pegue uma pneumonia. - Falei - Suas roupas estão molhadas a tarde inteira.
– É verdade. - Ele respondeu, e eu olhei para a camisa ainda colada em seu corpo por causa da água, torneando cada músculo definido ali. Obviamente ele não reparou nesse detalhe, mas eu vinha reparando a tarde inteira.
– Você vai ficar? - Perguntou.
De repente notei que se ele estava indo embora, então eu não tinha mais nada para fazer ali. Minha leitura já tinha sido esquecida havia muito tempo, os livros já estavam fechados e guardados dentro da bolsa.
– Não, vou também. Já está escurecendo de qualquer forma.
– Então vamos. Eu te acompanho até o ponto de ônibus.
O caminho até lá foi silencioso. Felizmente não foi um silêncio desagradável, mas sim aquele tipo de silêncio que acontece quando duas pessoas sabem que não precisam preencher aquele espaço com palavras idiotas e conversas descartáveis. Era um silêncio natural, onde a presença do outro era a única coisa a ser compartilhada e apreciada.
O ônibus chegou e eu me vi triste pela despedida. Mas era preciso, então entrei no ônibus de uma vez, olhando para trás e acenando timidamente para ele que retribuiu, ainda me olhando enquanto o veículo acelerava.
A viagem pareceu rápida demais para meus devaneios, e quando cheguei à Casa de Rayana queria apenas ficar sozinha. Neguei o jantar quando me chamaram para descer à cozinha porque, de fato, não sentia fome. Entreguei o dinheiro ainda em cima do móvel para Rayana e me tranquei no meu quarto.
Tomei um bom banho e me deitei na cama. A partir daí nada fiz senão pensar.
Não sei a que horas o sono veio, e também não sei quanto tempo fiquei divagando sozinha no escuro do quarto. A chuva voltou a bater com força no telhado e meus pensamentos teimavam em voar para aquela tarde de sábado, o que deveria ter sido só mais uma tarde de sábado qualquer.
E embora eu não estivesse ciente de muita coisa, embora eu não soubesse o que exatamente me deixava tão perdida ultimamente, eu tinha um palpite. Um palpite que me deixava eufórica e, ao mesmo tempo, em pânico.
Lembro do último pensamento que tive antes de mergulhar na inconsciência outra vez.
Se era um pedido ou uma oração, eu não saberia dizer. Mas de qualquer forma meus sentimentos aos poucos começavam a tomar uma forma definida, e eu tentava desesperadamente não ver as coisas como elas pareciam ser. Como elas seriam, a partir daquele momento:
Por favor, POR FAVOR, que eu não esteja me apaixonando por Bruno.
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De repente, Amor.
Romance"Bruno é um jovem homem de negócios, embora não saiba nem do que se tratam os contratos que assina. Anne é uma prostituta de luxo, que apesar de se sentir extremamente mal por isso, não encontra uma saída para mudar de vida. Como havia de ser, os do...