Capítulo 21

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Olá amores! Gostaria de dizer que a partir de hoje os capítulos serão maiores. É porque isso? Porque acho que vocês merecem isso. Agora eu também mereço comentários. Gosto de conversar gente, falem comigo.
◇◇◇◇

Anne's POV

Não sabia em que momento eu havia deixado de sonhar e finalmente entrei na zona confusa e nebulosa que antecede a consciência. Meus olhos mantiveram-se fechados. Estava me permitindo sentir a realidade outra vez, talvez um pouco mudada pelo sonho recente que ainda lampejava dentro de minha cabeça. 
– Eu te amo - Ele disse, e então um milhão de borboletas começaram a voar dentro do meu estômago. Fiquei muito quieta, saboreando a sensação do bater de asas, querendo mais do que tudo acreditar na veracidade daquelas palavras. A alegria começava a me preencher totalmente, mas então tudo ficou estranho de repente, porque em seus olhos eu pude ver um traço de confusão e dúvida. 
Engoli o sorriso enquanto o encarava, minha cabeça pesando agora algumas toneladas. Ele me encarava de volta, parecendo querer manter-se estável e sustentar suas palavras, mas seus olhos cor de ocre simplesmente não eram convincentes. 
– Você tem certeza? 
Ouvi uma voz formular em alto e bom som a pergunta que me machucava, e me surpreendi ao constatar que aquela era minha própria voz, emitida sem que eu sequer movesse os lábios. Mesmo assim, esperei por sua resposta. Por um momento. Por alguns segundos. Por muitos segundos.
Ele não respondeu, e ao invés disso, continuou me encarando com olhos incertos. 
Senti uma dor aguda ao constatar que agora, além da dúvida, havia um inconfundível traço de pena naquele dourado perfeito. Nós dois ficamos em silêncio. Ele sem saber como dizer a verdade - que havia se enganado, que não era amor o que ele sentia - e eu tentando lidar com a dor insuportável no peito por ter a rápida e quase inexistente esperança arrancada de mim em um piscar de olhos. 
A dor era muito forte. Insuportável. 
Então, eu acordei. 
Agora, de olhos fechados, eu inspirava profundamente, sentindo a angústia dilacerante deixando minha alma aos poucos. Tinha sido apenas um pesadelo, e embora isso não quisesse necessariamente dizer que aquilo era apenas minha imaginação, eu podia me sentir um pouco mais viva. 
De repente, fui atingida em cheio pela dúvida sobre quando exatamente meu sonho e minha realidade se separavam. Eu estava acordada, mas desde quando estivera sonhando com Bruno? Há poucos minutos? Desde que havia deixado meu apartamento? Desde a noite em que havia voltado para a rua? Talvez ele tivesse surgido apenas em meus sonhos, e então nosso reencontro não fora real. Talvez agora eu tivesse que voltar para minha antiga vida, na qual dia após dia eu reunia forças simplesmente para continuar vivendo um pouco mais.
Com um pouco mais de medo do que eu queria admitir, abri lentamente os olhos, aos poucos me acostumando com a pouca claridade do lugar e com a disposição dos objetos e móveis à minha volta. Era o mesmo quarto presente no sonho que eu havia tido com Bruno, onde ele havia me achado, eu havia resolvido confessar a ele meus sentimentos, nós dormimos juntos, ele me levou para morar em sua casa e, finalmente, havia se declarado também.
Então, talvez, tudo tenha mesmo acontecido. 
Minha mão pesava livremente ao lado direito do meu corpo, o que me fazia pensar que talvez eu estivesse no limite da cama, a centímetros de cair dela. Olhei para baixo e constatei que estava certa. 
Virei-me devagar para o lado oposto e dei de cara com Bruno, ainda inconsciente, tão próximo a mim que apenas minha metade da cama era ocupada por nós dois, sua cabeça em meu próprio travesseiro, o dele completamente esquecido no enorme espaço desocupado do colchão. Nossos narizes não se tocavam por uma distância mínima. 
Ele dormia tranquilamente, seu exercício de expiração e inspiração era perfeito, profundo e hipnótico. Sua expressão era serena, um de seus braços relaxado em cima da minha barriga. Encarei-o por algum tempo, não querendo pensar no que já estava pensando.
Eu estava convicta de que meu sonho não havia sido incoerente. Não que eu não quisesse criar esperanças, apenas estava convencida de que sua declaração da noite anterior não podia ser levada a sério.
Não que ele tivesse mentido. Eu pude ver de perto a intenção em cada palavra que ele havia pronunciado. Mas não havia como deixar de pensar que, ao invés de mentindo, ele estivesse apenas confuso.
Para minha própria sanidade mental, eu tinha que colocar alguns pontos em ordem: Bruno NÃO me amava. Embora ele parecesse ter sido sincero, cedo ou tarde sua razão voltaria e ele enxergaria que se enganou. Ele NÃO sentia por mim o que eu sentia por ele. No máximo, algum interesse carnal misturado com um sentimento de culpa um pouco deturpado e com certos exageros. NÃO fazia sentido ele se apaixonar por mim. 
Bruno poderia ter as mulheres que quisesse, em qualquer momento. Talvez todas elas ao mesmo tempo. 
Quando ele finalmente se desse conta desses fatos, eu acabaria na merda outra vez, tendo apenas um “sinto muito” para me consolar.
Seu sono tranquilo foi interrompido por um suspiro profundo. Seu braço abandonou minha barriga e ele se virou de lado, agora ocupando todo o espaço vazio do seu lado da cama. Continuei encarando-o, tentando imaginar como eu deveria agir, o que exatamente eu deveria fazer. Não pude chegar a conclusão alguma, porque enquanto meu lado racional - e sensato - dizia para que eu saísse de lá o quanto antes e retomasse minha vida antiga, a única coisa que me dava alguma garantia sobre alguma coisa, meu lado completamente apaixonado e ingênuo me mantinha ali, dizendo que de alguma forma as coisas se resolveriam sem que eu tivesse que deixá-lo outra vez. 
Mas como essa situação poderia se resolver? As coisas acabariam mal, assim como a primeira vez em que nossas vidas se encontraram. 
E assim como na primeira vez, eu me via atada, não me restando mais nada a não ser esperar até que tudo ruísse outra vez.
Me levantei com cuidado, não querendo que Bruno sentisse alguma mudança e acordasse. 
Eu não queria ter que lidar com a misteriosa relação que surgiria entre nós a partir daquele dia. Não queria ter que ver em seus olhos a dúvida que eu sabia que, cedo ou tarde, surgiria. Não queria ter que encará-lo outra vez e sentir medo de perder o que, na verdade, eu nunca tive. 
Recolhi do chão a calcinha e o casaco que estiveram no meu corpo pelo menos por alguns minutos na noite anterior. Dando uma última olhada para verificar se ele ainda estava dormindo, saí e fechei a porta atrás de mim. 
Rumei para o quarto onde estavam meus pertences, ainda empacotados. Procurei por um short confortável e uma calcinha limpa, descartando a que trazia na mão na mochila com as roupas sujas. Peguei também minha escova de dentes e caminhei para o banheiro daquele quarto, feliz por não ter que usar o do quarto onde Bruno dormia e correndo o risco de acordá-lo. 
Tomei um banho demorado, sentindo o aroma agradável do sabonete e dos shampoos caros que estavam ali. Escovei os dentes e me penteei, tentando ignorar meus hematomas hoje mais visíveis. Ainda assim, sabia que aquela vez tinha sido mais sutil que a anterior, porque eu sentia menos dores e não via nenhuma nova marca pelo corpo. Todas as que estavam lá haviam sido feitas por Bruno na noite do nosso reencontro. 
Saí do banheiro muito atenta a qualquer barulho que pudesse identificar que eu não era a única pessoa acordada naquela casa. Não escutando nada, segui para a cozinha.
Não queria parecer mal educada ou abusada de alguma forma, mas o fato era que eu estava absurdamente faminta. Durante muito tempo, minha alimentação foi prejudicada pelo meu estado vegetativo, mas eram as últimas horas praticamente em jejum que faziam com que meu estômago estivesse quase se auto-digerindo. 
Tentando não mexer em muita coisa, apenas me servi de um copo de leite e fiz um sanduíche que consistia em pão, manteiga e peito de peru. Ao terminar meu café da manhã, notei que nem metade da minha fome havia sido saciada, mas pelo menos eu não desmaiaria por falta de sais minerais no corpo.
Lavei a louça usada e voltei ao quarto de hóspedes, por fim planejando o que eu faria, pelo menos por hora. Depositei todas as malas e bolsas em cima da cama e as abri, revelando todo o tipo de coisas que trouxera comigo.
Comecei com a mala maior, tirando de lá algumas roupas dobradas e separando uma a uma em duas pilhas: As roupas que eu continuaria usando, e as que não usaria mais. Não que eu soubesse o que aconteceria comigo a partir daquele momento, mas me deixei aproveitar a opção de talvez não precisar mais usar algumas daquelas peças, as quais muitas vezes tive que vestir para o “trabalho”.
Bruno havia me dito que eu moraria ali, com ele. O problema era que eu esperava pelo dia em que ele fosse se arrepender e resolvesse se dar conta de que, na verdade, aquela não havia sido uma boa ideia Por isso, aquelas roupas que agora formavam uma pilha de vestes vulgares e inapropriadas, incluindo lingeries, não seriam exatamente descartadas. Apenas ficariam guardas no fundo de alguma bolsa.
Outra vez, me lembrei da noite anterior. Suas palavras pareciam tão sinceras, suas declarações aparentavam ser tão verdadeiras, que meu coração se encheu de uma discreta alegria novamente. Mas eu estava cética quanto àquilo, mesmo que desacreditar em suas palavras me machucasse, então além de esperar, eu começava a nutrir uma quase certeza de que um dia ele voltaria a ver que eu nunca havia deixado de ser apenas uma garota de programa.
Eu havia acabado minha tarefa. Não foi difícil separar tudo que um dia eu odiei das minhas roupas casuais, e no fundo eu sentia um discreto mas inegável alívio em deixar o que não me servia mais no canto mais escuro e esquecido do quarto de hóspedes. O pedido de Bruno para que eu não usasse mais nada daquilo foi apenas o gatilho para que eu mesma tivesse a atitude de tentar esquecer de tudo que fez parte da parte mais nojenta da minha vida. 
Não havia como não ver aquelas coisas como um tipo de uniforme, então era óbvio que nós dois concordávamos com a escolha de deixar no passado tudo que pertencia a ele.
Agora, sem saber o que fazer, eu fitava o teto do quarto sem interesse, deitada de costas na cama, enquanto tentava pôr meus pensamentos em ordem. Me perguntei até quando ficaríamos em silêncio um com o outro, evitando olhares e toques, como se isso pudesse cancelar a carga de sensações que viajava entre nós. Até quando ficaríamos em cômodos diferentes para evitar a presença um do outro, até quando aquele relacionamento - fosse ele o que fosse, eu não saberia dizer - se sustentaria sem nenhum conforto entre as partes. 
Eu devia ir embora… Essa situação não vai ficar melhor… Tudo está muito estranho entre nós, talvez isso nunca mude… 
– Licença… 
Olhei de imediato para a porta ao meu lado, que agora estava aberta revelando um pouco do corredor por trás do corpo largo de Bruno.
Fitei-o, meu coração repentinamente saltando de nervosismo, esperando pelo que ele tinha a dizer. 
– Eu preparei o café da manhã pra gente. 
Ah. Isso. 
– Eu já comi… - Tive que confessar, sem saber se o fitava nos olhos ou desviava o olhar - Acordei com muita fome, então procurei algo pra comer. Desculpe por fazer isso sem o seu consentimento… 
– Não peça desculpas. - Ele falou, de forma fria - Você é livre pra fazer o que quiser nessa casa. 
– A casa é sua, eu não tinha o direito de mex… 
– A casa é sua também! Você pode mexer no que quiser! 
Ele parecia irritado com minhas desculpas, o que não fazia o menor sentido para mim. Mesmo assim, achei melhor não contrariá-lo, porque Bruno parecia estar a ponto de gritar para provar seu argumento. 
Era como se minhas palavras o tivessem incomodado, e eu sequer sabia o que estava fazendo de errado.
Fiquei em silêncio, esperando que ele falasse primeiro. 
– O que você comeu? 
– Um sanduíche. 
Ele suspirou, passando as mãos pelos cabelos e despenteando-os mais. Relaxei um pouco ao ver que ele agora estava mais calmo. 
– Você não comeu praticamente nada nas últimas horas. Eu queria que você provasse o que eu preparei. 
Continuei encarando-o, ainda hipnotizada pela mudança do tom da sua voz. Eu não sabia se ele era mesmo bipolar ou se apenas perdia a paciência em certo momento para, no momento seguinte, tentar parecer gentil.
– Por favor? - Ele falou, e eu poderia estar ficando louca, mas jurava que havia visto um “bico” de “por-favooooor” quase imperceptível. Então, pela primeira vez, e eu não sabia por que exatamente havia demorado tanto para notar isso, reparei que a boca dele era simplesmente linda. 
Linda. De morrer.
Eu ainda estou morrendo de fome. Bruno está fazendo manha para mim, me pedindo por favor que eu prove o que quer que ele tenha preparado.
Eu vou provar o que quer que ele tenha preparado. 
Levantei-me devagar, no processo penteando com os dedos os cabelos ainda úmidos. Ele suspirou audivelmente, então sorriu, ainda me encarando, um sorriso tímido mas sincero. Era como se cada pequena coisa que ele me convencesse a fazer fosse uma vitória épica, digna de um troféu ou coisa assim. Então eu quase, quase retribuí o sorriso, mas me mantive séria ao lembrar que, embora ele parecesse querer nos convencer do contrário, não estava tudo bem. 
Minha seriedade não foi suficiente para abalar seu repentino bom humor, então pude notar que ele continuou me encarando e sorrindo enquanto abria caminho para que eu fosse na frente. 
Caminhamos até a cozinha, então me sentei na cadeira da mesa quadrada sem esperar por um convite. Ele não pareceu se importar, indo para trás do balcão e preparando os pratos.
Quando voltou, trazia em uma das mãos uma jarra com suco de laranja e na outra um prato com ovos mexidos, torradas, salsicha, queijo e, ao que tudo indicava, molho de ervas. 
O cheiro maravilhoso de toda aquela mistura fez com que eu sentisse o peso da fome em meu estômago mais uma vez, mas ainda assim tentei parecer indiferente. 
Ele se sentou à minha frente, e então me encarou. Isso fez com que um arrepio varresse meu corpo de cima a baixo, então imaginei o quão bom seria quando finalmente eu me acostumasse ao seu olhar e deixasse de ter esse tipo de reação.
– Onde está o seu prato? - Falei, querendo cortar o silêncio, talvez para despistar meu nervosismo. 
– Eu já comi. Enquanto estava preparando o seu café. - Ele falou, com muita naturalidade - Belisquei algumas coisas. 
Continuei encarando-o, querendo dizer que ele devia comer direito, porque estava muito mais magro do que costumava ser. Mesmo assim, continuei calada, tentando sustentar seu olhar. Imaginei que talvez ele estivesse esperando que eu me servisse de alguma coisa no prato à minha frente, mas eu definitivamente não queria que ele ficasse me assistindo enquanto eu devorava feito uma troglodita faminta tudo que ele havia preparado para mim.
– Eu preciso de uma opinião. Nunca cozinhei pra ninguém, então talvez você possa me dizer se eu faço isso direito…
Bruno era o tipo de pessoa que parecia saber fazer qualquer coisa direito, desde comida a números de acrobacia. Se isso não fosse o suficiente, contava também o fato de que o cheiro do café da manhã que ele havia preparado estava simplesmente divino. Além disso, como amante de uma boa culinária, eu tinha minhas convicções de que se ele havia se proposto a cozinhar, então era porque sabia. Por isso, eu sequer precisava de uma garfada nos ovos ou na salsicha para dizer que aquilo estava muito bom.
Mas, por algum motivo, aquilo parecia ser importante para ele. Então, mesmo não gostando de ter que fazer aquilo enquanto ele me assistia, levei à boca uma boa quantidade do que havia em meu prato, enquanto ele me encarava como quem espera o resultado de um exame de gravidez. Encarei-o de volta, mastigando com uma lentidão exagerada, e de certa forma me divertindo com sua preocupação e seu ar tenso. Eu nunca havia visto esse lado dependente e ironicamente inseguro de Bruno. 
– Uma delícia. - Enfim falei, decidindo que já era hora de parar de torturá-lo. 
Ele sorriu, um sorriso largo e absurdamente lindo, um sorriso de alívio e alegria. Fiquei um pouco distraída com a luz que aquele sorriso trouxe ao ambiente de repente, e eu mesma senti vontade de retribuí-lo. Mas outra vez, assim como antes, me forcei a continuar séria.
Uma garfada após a outra, fui terminando meu enorme café da manhã com Bruno à minha frente, analisando cada movimento meu com um meio-sorriso no rosto. Eu tentava ignorar sua presença ali, mas ele não deixava, sempre me servindo de mais suco quando meu copo esvaziava ou, quando só podia olhar, suspirava sem motivo. 
– Quer que eu faça mais? - Ele perguntou no momento em que coloquei o último pedaço de salsicha na boca. 
– Não. Estou satisfeita, obrigada. 
Ele continuou me encarando, sorrindo de uma forma muito discreta, e então me perguntei onde toda aquela postura fria dos dois dias anteriores estava. 
Bruno agora parecia quase inofensivo, alguém extremamente doce e bondoso que só fazia sorrir de uma forma tão singela para mim. E então, eu não estava entendendo mais nada. 
– Nós vamos sair hoje. Tudo bem? 
Encarei-o por um momento, me perguntando mentalmente onde ele queria me levar. 
– Por quê? 
– Bom… Pensei em almoçar em algum lugar, e depois sairmos pra fazer umas compras. 
Não respondi, tentando entender que tipo de compras Bruno gostaria de fazer comigo. Como se entendesse minha dúvida, ele se apressou em explicar. 
– Você precisa de um novo guarda-roupas. 
Roupas. Era isso. Ele queria sair pra comprar roupas para mim. 
Talvez isso fosse normal na relação de um casal– e aqui eu me forcei a pensar dessa forma, apenas para concluir o pensamento - mas eu deixaria que ele fizesse isso, então? Deixaria que ele comprasse tudo para mim a partir de agora? Que ele me sustentasse?
– Eu não quero que você compre essas coisas pra mim. - Falei antes de me dar conta de que tinha formulado uma frase.
Vi seu sorriso discreto deixar seu rosto lentamente, transformando-se em uma expressão contrariada. 
– Por quê? 
– Por que não quero que você fique me sustentando. Isso faz com que eu me sinta mal. E inútil. 
Encarei agora o prato vazio, evitando seu olhar. Ele ficou algum tempo em silêncio, até falar outra vez. 
– Não estou te sustentando.
– E do que chama isso, então? Me fazer morar de favor aqui, comprar roupas pra mim, me levar pra almoçar e pagar todas as despesas que eu dou? 
Voltei a encará-lo, então vi em seus olhos aquela intensidade que só podia notar quando ele estava carregado de alguma emoção. Sua postura voltava a ser firme, mas não fria. Ele parecia, ao invés de irritado, apenas triste pelas minhas palavras. 
– Estou fazendo o que um homem faz quando gosta de uma mulher. Estou fazendo o que seu pai fazia com a sua mãe. Não estou sustentando você. Estou cuidando de você.
Pensei em alguma réplica inteligente, mas não obtive sucesso. Ele usou um exemplo impossível de refutar, porque era a mais absoluta verdade. 
Meu pai não sustentava minha mãe, jamais havia sido assim. Ele cuidava dela , ele a protegia, e estava claro que aquilo não era algo que ele tomava como obrigação, mas fazia simplesmente porque a amava. E se o que Bruno estava fazendo fosse, de alguma forma, remotamente comparável àquilo, não havia como reprimi-lo.
Talvez eu até devesse me sentir lisonjeada, feliz, protegida. Mas, de alguma forma, eu ainda me sentia mal. Provavelmente porque o que nós tínhamos não era um relacionamento dentro dos padrões, como o de meus pais. O que nós tínhamos era diferente, e o fato desse relacionamento sempre ter sido baseado em Bruno pagando para ter minha companhia talvez contribuísse para que eu me sentisse sendo comprada em cada pequeno detalhe. 
– Mesmo assim, - Comecei, um pouco sem graça, voltando a evitar seu olhar - eu preferiria pagar minhas cois… 
– Eu quero te dar de presente. 
Fechei os olhos, tentando manter nossa conversa em um nível tranquilo, sem gritos ou palavras rudes.
Minha concentração foi abalada pelo toque do celular de Bruno. 
Quando abri os olhos outra vez, ele já havia se levantado, falando na sala com alguém. Não pude ouvir o que ele dizia, apenas palavras avulsas, mas pela forma como falava, parecia ser com uma mulher.
Quando finalmente desligou e voltou à cozinha, encarei-o novamente.
– Você vai conhecer uma amiga minha. Ela está vindo pra cá daqui a pouco.
… 
Então, eu conheceria Duda. 
Pelo pouco que ouvira falar, ela parecia ser uma mulher boa. Essencialmente boa. Ao que me lembrava, havia sido ela que, na época de crise de Bruno, se dispôs a ajudá-lo. Por causa dela, ele havia saído de uma depressão profunda, e com a ajuda dela ele havia se reerguido. De certa forma, eu já gostava dela simplesmente por ajudá-lo e por se preocupar com ele. Ironicamente, era justamente por se preocupar com Bruno que Duda provavelmente já não gostava de mim. 
Ele havia contado tudo a ela, e tudo se resumia no fato de que eu era uma prostituta pela qual ele pagava algumas noites. Era óbvio que ela devia achá-lo um idiota por me colocar morando ali, e era igualmente óbvio que me julgaria assim que colocasse os olhos em mim. O pior disso tudo era que eu sequer poderia culpá-la.
Eu também julgaria qualquer prostituta caso ela estivesse se aproveitando de um momento de confusão do meu melhor amigo. Também a odiaria por continuar ao seu lado, porque afinal de contas ele merecia alguém melhor. Torceria para que ela simplesmente sumisse da vida dele, fazendo o grande favor de deixá-lo viver sua vida com quem ele merecesse. 
Mas eu não podia deixá-lo. Não agora, não quando precisava tanto dele.
Não ainda.
Por isso, teria que enfrentar aquela situação, teria que enfrentar a forma como Duda lidaria comigo. Eu era a intrusa ali, então nada mais normal do que ser julgada sob todos os aspectos. Isso não melhorava em nada meu nervosismo, então, pela terceira vez, eu lavava meu rosto no banheiro do quarto de hóspedes, encarando-me no espelho como quem busca por alguma força, algum ânimo. Mas a expectativa de lidar com uma melhor amiga furiosa não estava nos meus planos para aquele dia, e ser pega de surpresa também não era minha especialidade.
Enxuguei o rosto e notei que meus hematomas agora começavam a ficar esverdeados. Isso definitivamente não era algo agradável aos olhos, por isso tentei escondê-los com algumas mechas de meus cabelos. Não ocultava tudo, mas ao menos disfarçava um pouco a impressão de que eu havia sido espancada recentemente. Também por esse motivo, optei por vestir meu casaco de gola vermelho por cima da camiseta, além de jeans que cobrissem toda a extensão das minhas pernas e meias. 
Sem saber direito como proceder naquela situação, fechei a porta atrás de mim e me dirigi para a sala. Bruno disse que ela chegaria dentro de minutos, e que apenas queria que nós nos conhecêssemos. Me perguntei em silêncio se, em uma situação hipotética onde Duda partiria para cima de mim com insultos e verdades inconvenientes, Bruno me defenderia, se colocando contra uma pessoa que ele conhecia há muito mais tempo. Um pouco mais do que isso, algo de egoísta e mesquinho dentro de mim fez com que eu me perguntasse a quem ele escolheria, se tivesse que fazê-lo: A ela ou a mim.
De qualquer forma, constatar a triste resposta para essa pergunta fez com que eu pagasse o preço do meu egoísmo. 
Cheguei à sala e imediatamente notei que não poderia me dar ao luxo de qualquer tipo de preparação, porque já sentada, com um copo de água nas mãos, estava uma mulher loira, cabelos lisos e olhos incrivelmente azuis, uma brilhante aura angelical e excepcionalmente bonita. 
Ao seu lado, de pé, Bruno parecia não saber direito se caminhava ou ficava parado no mesmo lugar.
Ela me olhava com uma expressão indecifrável. Não era uma postura confortante ou amigável de nenhuma forma, mas tampouco era acusatória ou hostil. Ela simplesmente estava aceitando minha presença ali, por hora sem fazer pré-julgamentos. Seria bastante agradável se nosso encontro se resumisse a isso, mas infelizmente ela pareceu, depois de alguns segundos, se dar conta dos meus hematomas, então vi sua expressão de choque quase disfarçada sob um semblante bondoso. Isso não tirou, de forma alguma, sua beleza. 
– Muito prazer… - Minha recente mania em falar simplesmente para tentar diminuir o tempo de um silencioso mal-estar estava fugindo do meu controle, mas não me importei. 
Agora, eu estendia a mão para ela e esperava que ela a tomasse.
Duda se levantou com calma, estendendo a mão em resposta e segurando a minha, sacudindo com suavidade. O aperto não era forte, mas sim firme. A atitude de uma dama, de uma mulher definitivamente segura. 
– Olá. 
Eu não esperava que ela dissesse que sentia algum prazer em me ver. Duda não parecia ser o tipo de mulher falsa ou que mentia sem nenhum motivo aparente, então era exatamente esse tipo de resposta que eu esperava dela. 
O que eu não esperava era me sentir tão incrivelmente intimidada por ela, fosse por sua postura firme ou por sua beleza, que fazia com que minha auto-estima quisesse cometer suicídio. 
– Você é linda. 
O som de minha própria voz ecoava de novo, e pelo riso baixo que Bruno deu, havia ecoado fora da minha cabeça. Então eu havia dito aquilo em voz alta, sem nenhum motivo aparente, sem nenhuma explicação. Sequer se encaixava no momento, mas por alguma razão que só Deus saberia dizer, eu pronunciei aquelas palavras, e me perguntei se ela me acharia forçadamente simpática ou algum tipo de puxa-saco.
Tudo nela parecia ser forte, e eu tive essa impressão principalmente pelo olhar que ela sustentava enquanto me encarava. Seus olhos eram firmes, mantinham uma ligação direta com os meus, e se eu fosse um pouco mais paranoica poderia dizer que Duda estava tentando me ler, desvendar minhas supostas mentiras e me analisar, certificando-se do quão boa ou ruim eu era para estar por perto de Bruno. 
– Obrigada. - Ela enfim falou, e como se tivessem terminado a “leitura”, seus olhos pareceram se suavizar um pouco, quase imperceptivelmente, mas se mantendo diretamente ligados aos meus. - Eu me chamo Eduarda. Você é Anne, não é? 
– Ninha. - Apressei-me em corrigi-la - Me chame de Ninha. 
– Ei! 
Bruno finalmente deu algum sinal de vida, interagindo conosco pela primeira vez. Duda e eu olhamos ao mesmo tempo para ele, tentando entender o motivo da exclamação. Ele parecia indignado comigo, me encarando com um olhar de “como-você-pôde?” 
– Pensei que só eu podia te chamar assim! 
Duda rolou os olhos quase que teatralmente.
– Não seja mimado. Ela se apresenta como quiser. 
– Ela se apresentou pra mim como Anne. Eu tive que pedir pra chamá-la de outra forma!
Encarei-o em silêncio, não sabendo como responder àquilo. Se meus olhos conseguissem transmitir a ele o que eu queria, Bruno se lembraria da ocasião em que nos conhecemos, entendendo que eu não poderia ter me apresentado de outra forma, e se calaria instantaneamente, evitando um constrangimento maior entre nós dois. Não sei se obtive sucesso, mas ele pareceu deixar o assunto momentaneamente de lado, enquanto ainda me encarava com uma expressão genuinamente ofendida no rosto. 
Será que ele realmente estava chateado comigo por causa disso?
– Ok. Discuta seus termos de exclusividade depois, porque dentro de uma hora eu tenho que estar de volta pra minha família. 
– Certo. - Ele falou, desviando seu olhar de mim para Duda - O que você sugere? 
– Como eu sei que você vai acabar pagando, mesmo que eu te ameace de morte, fica à sua escolha. 
– Perfeito. - Finalizou Bruno, já pegando suas chaves e colocando-as no bolso da calça, enquanto Duda colocava nos ombros a bolsa que trouxera consigo. Quando ele veio até mim, parando alguns centímetros à minha frente e falando baixo e pausadamente, como quem fala com um doente em estado terminal, por um momento voltei a lembrar da nossa atual dificuldade de comunicação. 
– Nós vamos almoçar. Preciso conversar com Duda sobre algumas coisas da empresa. Sei que faz pouco tempo desde seu café da manhã, mas vou pedir que você venha com a gente. 
Senti o toque suave de sua mão na minha, e instantaneamente fui atingida pela corrente elétrica que se estabeleceu entre nossas peles. Se não fosse a mulher agora parada à porta, esperando por nós dois, eu já estaria entregue a ele, assim, fácil desse jeito. Por isso, esse era mais um motivo pelo qual eu era grata à Duda.

A viagem até o restaurante foi silenciosa. Por um momento, cheguei a pensar que Bruno me perguntaria o que eu havia achado de minha nova conhecida, que nos seguia em seu carro logo atrás, mas ele não o fez. Assim, a curta viagem foi como as tradicionais viagens que nós costumávamos fazer: Sem qualquer tipo de comunicação, o que mais uma vez fez com que eu lembrasse da nossa atual situação, como “casal”. 
Um casal de conhecidos. De desconhecidos, talvez. Nada mais do que isso. 
Chegamos em um restaurante ao qual não dei muita atenção até que tivesse entrado. No momento em que atravessei a porta, me dei conta de que estava em um lugar provavelmente muito, muito caro, tanto pelo ambiente em si como pelas pessoas ali presentes. Me senti estúpida e completamente deslocada, lembrando que minhas roupas eram apropriadas para, no máximo, um passeio no shopping, e sentindo minha cabeça ferver aos poucos, enquanto me dirigia à mesa tentando me esconder atrás de Bruno.
Senti raiva de sua atitude, primeiro por sequer cogitar a possibilidade em me informar que iríamos a um lugar daquele tipo. Depois, por não me alertar sobre minha aparência. 
O fato de me sentir completamente fora de lugar era culpa unicamente dele, mas Bruno parecia não se importar.
Depois de muito tempo, escolhemos os pratos sugeridos pelo maitre e, a partir daí, ele e Duda passaram a conversar entre si, ambos se esquecendo completamente da minha presença. 
Ao invés de me incomodar, esse fato serviu para que eu ficasse um pouco mais à vontade, completamente sozinha em meu espaço enquanto, calada, observava o uso correto dos muitos talheres por parte de meus acompanhantes, tentando imediatamente repetir as ações de forma certa e memorizá-las para uma próxima ocasião.
Duda falou sobre novos contratos, empregados da empresa, reuniões, festas de praxe e algo relacionado a arranjos de viagem. 
Bruno parecia entretido, respondendo com vivacidade a qualquer comentário, enquanto eu me mantinha calada e ignorante a qualquer assunto que eles discutiam. Algumas vezes, pude ver pela minha visão periférica que Bruno olhava para mim, mas depois voltava-se para Duda, apenas como se quisesse checar se eu ainda estava viva. 
Por aquele momento, me permiti simplesmente viver o pouco do que estava acontecendo. Então éramos só nós três, eu, Bruno e sua melhor amiga, sentados em uma mesa enquanto eles conversavam sobre trabalho, e simplesmente me deixei levar pela simplicidade da situação.
Como um espectador, eu assistia à minha própria vida, ao menos naquele momento, sem complicações ou pendências, e por mais que essa paz me enganasse sobre o que realmente eu tinha que enfrentar, era bom estar daquela forma.
E então, a presença de Bruno ao meu lado, sua postura firme e protetora, seu calor e sua voz me faziam bem. Era como se eu tivesse que estar ali, como se não houvesse outro lugar no mundo em que eu devesse estar. Mesmo que tudo fosse muito mais complicado do que isso. 
Por isso, me permiti prestar atenção apenas nele, mesmo sem realmente escutar suas palavras, mesmo sem tocá-lo, mesmo sem olhar para ele.
Sua presença agia sobre mim, sem a menor necessidade de interação. 
– Vamos? 
Com o susto, meu corpo pulou discretamente no assento, agora encarando Bruno como se ele tivesse acabado de aparecer ali. 
– Você já pagou? - Perguntei, confusa. 
– Acabei de pagar. Você não viu? - Ele respondeu me olhando preocupado, como se eu estivesse verde. 
– Estava distraída. - Murmurei, e dando uma rápida olhada em Duda, me aproximei dele para falar em seu ouvido. Como o ambiente era excessivamente silencioso, talvez por causa da maldita educação de toda aquela gente rica em quase não falar, eu duvidava que minhas palavras tivessem saído em um volume audível apenas para Bruno - Pode me dizer quanto foi?
Ele se afastou de mim, outra vez com expressão de quem acabara de ser agredido verbalmente. Seu rosto, antes suave, agora se contorcia em uma careta de raiva. Por fim, falou em um tom extremamente rude. 
– É falta de educação perguntar isso. 
Senti meu rosto ferver imediatamente pelas suas palavras, então tive a certeza de que eu agora parecia uma pimenta. Extremamente envergonhada, dei mais uma vez uma rápida olhada em Duda, que nos encarava com uma curiosidade genuína. 
– Desculpe. - comecei, encarando-o outra vez - Não queria soar grosseira, só queria saber quanto eu te devo. 
– Nada. - Ele respondeu, ficando de pé, Duda imitando seu ato - Não me deve nada. 
Como se quisesse compensar sua atitude um pouco ofensiva, Bruno estendeu sua mão para que eu a pegasse, me ajudando a levantar. Olhei para seu gesto por algum tempo, pensando na sua simplicidade e, ao mesmo tempo, no tamanho de seu significado. 
– Podemos conversar sobre isso depois? - Falei, agora encarando seus olhos dourados. 
Ele não se mexeu, sua mão ainda estendida para que eu a tomasse. De alguma forma, entendi que aquilo não era um “não”, então aceitei sua ajuda, segurando firme sua palma. Mais uma vez, a pequena corrente elétrica percorreu minha pele no lugar onde estava encostada a pele dele, e então me permiti aproveitar e me acostumar com aquela sensação. 
Quando Duda deixou a mesa, antes de nós dois, senti os dedos dele se fecharem e apertarem minha mão com força, não me machucando, mas sim passando algum tipo de mensagem como “não, não quero soltar”. E então esse pequeno gesto fez com que meu coração começasse a bater freneticamente, como se eu fosse uma pré-adolescente descobrindo que seu amor platônico na verdade era correspondido. 
Só voltei a notar outra vez o mundo à nossa volta quando Duda se manifestou. Já estávamos na rua, na outra calçada, e eu não me lembrava de como fomos parar lá. Instintivamente, quando ela se virou, me forcei a soltar a mão de Bruno, que pareceu irritado com minha atitude. 
– Vai trabalhar amanhã? - Duda o encarou, interrogativa. 
Ele pareceu ponderar por algum tempo, e eu me perguntei o motivo da dúvida dela. “Amanhã” era segunda-feira, por que ele não iria trabalhar? 
– Vou. - Ele respondeu, e ela pareceu se iluminar com sua simples resposta. 
– Vou estar esperando.
Então tive a impressão que Duda não se despediu adequadamente de Bruno porque, se o fizesse, teria que se despedir de mim também. Por isso, um “até logo” pontuou sua frase direcionada para nós dois, e a última coisa que pude ver foi ela entrando em seu carro, dando a partida e sumindo pelo final da rua pouco movimentada.
– Por que soltou minha mão? - Ele quebrou o silêncio, me encarando com um olhar acusatório. 
– Porque Eduarda não ia gostar de nos ver… - Comecei, mas logo fui interrompida. 
– E por que você se importa com o que ela gosta ou deixa de gostar? 
– Não quero que ela goste menos de mim.
Ele recebeu minha explicação calado, e depois de me encarar por algum tempo, o que constatei ser mais uma profunda e minuciosa análise, finalmente acionou o segredo do carro e abriu a porta do carona para que eu entrasse. 
– Onde vamos? - Perguntei com o carro já em movimento, grata a mim mesma por notar que estava desenvolvendo a capacidade de quebrar o silêncio entre nós dois com mais facilidade a cada dia. 
– Comprar algumas roupas pra você. Como hoje é domingo, a maioria das lojas que eu queria dar uma olhada estão fechadas, então vamos ter que ir no shopping.
Me senti contrariada outra vez com a lembrança da ideia de Bruno. 
Tossi para que minha voz soasse mais convincente e mais segura. 
– Eu não quero… 
Bruno parou em um sinal vermelho e me encarou outra vez, com uma expressão de “me escute” que me fez parar de falar para ouvir o que ele iria dizer. 
– Você se dá conta de que sobraram poucas roupas… “usáveis” na sua mala? 
– Sim… 
– E que, cedo ou tarde, vai precisar de mais roupas além daquelas? 
– Eu sei… 
– Isso significa que se não comprarmos mais peças, algum dia você vai acabar tendo que andar nua dentro de casa. 
Outra vez, senti meu rosto ferver instantaneamente com os milhares de significados ocultos que eu sabia que ele havia, propositalmente, empregado naquela frase. 
– Eu só não quero que você gaste ainda mais comigo! - Me apressei em falar, tentando sentir menos vergonha. 
– Quer que eu banque o esnobe e fique te falando o tempo todo que eu posso gastar a quantidade que eu quiser? 
– Não, só quero pagar as minhas coisas. 
– Por mim você podia queimar todo aquele seu dinheiro, não te faria falta alguma. - Ele começou, empregando veneno à sua voz, e pude notar que não havia sido de propósito, não para me atingir: Bruno só lembrava de onde vinha o pouco dinheiro que eu tinha guardado, e simplesmente odiava isso. - Além do mais, sou eu que quero te dar alguns presentes. Portanto, sou eu que devo pagar. 
– Você não deve pagar nada pra mim. - Comecei, um pouco mais exaltada do que o normal. 
– Qual o seu problema com isso? Por que é tão aversa à ideia? 
– Porque eu odeio o fato de que, desde o primeiro momento em que nos conhecemos, tudo o que você fez foi gastar dinheiro comigo.
Pontuei a frase já sentindo o peso que ela deixaria em cima das nossas cabeças. Essa era a mais pura verdade, mas talvez fosse razoável considerar a possibilidade de não mencioná-la daquela forma. Infelizmente, as palavras saíram mais rápido do que meu bom senso, e então todo aquele significado pairava no ar entre nós, tornando o silêncio bastante desagradável.
Ele ficou quieto por muito tempo, apenas olhando para frente e evitando bater contra um poste. Eu sabia que ele devia estar muito puto agora, e desejei que ele soubesse que minhas palavras não foram propositais. Ainda assim, me mantive calada, recolhida no meu canto, esperando por sua reação. 
– Eu não estou querendo te comprar. Estou fazendo isso porque me sinto responsável pelo seu bem estar. E se você não entende isso, então nós temos um problema bastante sério aqui. 
Continuei calada, absorvendo sua fúria disfarçada pela suavidade de sua voz, mas depois de algum tempo, o que parecia suficiente para que ele já estivesse menos irritado, voltei a falar, em voz baixa. 
– Só queria que você me deixasse participar disso também. Nem que fosse só um pouco. Nem que fosse pra me sentir um pouco melhor.
Ele suspirou, e então tive novamente a sensação de que aquilo não havia sido um “não”. Me senti um pouco mais animada com a ideia de que Bruno parecia ficar cada vez mais maleável com relação às suas decisões, e então deixei que o resto da viagem fosse preenchido pela melodia do piano que tocava no CD do carro.

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