◇◇◇◇
Não me matem depois desse capítulo. Estamos quase na reta final da história, e meu Deus, esse capítulo dói meu coração.
◇◇◇◇– Bruno…
– Que foi? Sentiu o quê? Vou pegar as chaves do carro…
– Eu só queria um copo d’água.
Nas duas últimas semanas ela passou a ter contrações fracas, quase como pequenas cólicas. Me certifiquei algumas vezes - o suficiente para fazer com que ela perdesse a paciência -, de que aquilo não significava que tínhamos que correr para o hospital, mas o próprio obstetra havia dito que aquelas dores seriam mais frequentes com o passar do tempo.
Então um domingo chegou. Era para ser um domingo normal, um pouco monótono, meio nublado. Havíamos almoçado na casa dos meus pais, como quase sempre fazíamos. Anne dormiu um pouco de tarde, já que a noite havia sido um bocado agitada por causa da animação da nossa filha. Eu também estava com sono, mas não conseguia dormir. Chequei as coisas já arrumadas em duas pequenas bolsas. Estava tudo preparado para uma emergência: Roupas dela, roupas de bebê e agasalhos dos dois tipos, além de óleos e hidratantes, produtos de higiene, biscoitos, carregador de celular e uma garrafa de água, que eu limpava e trocava todos os dias. Assim, quando tivéssemos que ir para o hospital, só precisaríamos localizar as chaves do carro.
A noite veio como todas as outras. Ela continuava um pouco sonolenta, indicando que nem o cochilo havia sido o suficiente para fazê-la descansar propriamente.
Naquela noite ela foi para a cama mais cedo. Naquela noite eu toquei piano por mais tempo. Naquela noite ela estava diferente.
– Não consegue dormir? - Perguntei enquanto entrava no quarto, encontrando-a acordada com a luz do abajur acesa, sentada na cama com as costas apoiadas na cabeceira. Ela estava suando um pouco e parecia razoavelmente desconfortável. Já haviam se passado horas desde que tínhamos nos despedido com um beijo de boa noite no andar de baixo.
– O que foi? - Aumentei a voz quando Anne não respondeu, não conseguindo disfarçar meu nervosismo.
– Estou com dor.
Continuei olhando-a sem saber muito como agir, sentindo meu coração acelerar aos poucos.
– Aquelas dores que você vem tendo? - Soltei, torcendo para que a resposta fosse positiva.
– Mais ou menos…
– Mais ou menos?
– São um pouco diferentes… E estão mais fortes, e mais frequentes… E ficam cada vez mais regulares…
Meu coração começou a bater realmente forte agora.
– Tudo bem… - Comecei em voz alta, falando mais para mim mesmo do que para ela - Tudo bem.
Caminhei de um lado para o outro. Desci até a cozinha e peguei um copo d’água, tentando parecer minimamente normal. Ofereci a ela e ela bebeu um pouco do líquido.
– Melhor? - Perguntei.
– Não.
– Pior?
– Está ficando mais forte…
Era o suficiente. Minha cota de racionalidade já havia sido atingida, e eu devia levar algum crédito por ter conseguido agir como um perfeito marido nervoso (mas normal) por tanto tempo.
– Vamos pro hospital. - Concluí, já indo para o closet pegar a primeira calça jeans que estivesse à vista.
– Calma…
– Não! Não estou calmo! Vamos AGORA!
– Bruno, pode não ser nada.
– Você está sentindo dor!
– Ainda é suportável.
– E você realmente acha que o melhor é esperar aqui até que a dor se torne insuportável?
– Podemos ao menos ligar pro Dr. Leandro?
Pulei um pouco no mesmo lugar, nervoso por estar sendo contrariado. Mas no final acabei cedendo, pegando meu celular do criado mudo e discando o número do médico.
– Alô?
– Doutor, minha mulher entrou em trabalho de parto e não quer ir pro hospital.
– Não seja dramático, Bruno!
– Espere aí… Como você sabe que ela entrou…
– As contrações ficaram mais fortes e mais frequentes. Nós temos que esperar até quando?
– Me deixe falar com ela.
Como solicitado, estendi o telefone para Anne e ela o atendeu. Iniciou-se então um diálogo secreto entre os dois, me sendo permitido ouvir apenas respostas vagas por parte dela como “sim” e “um pouco” e “não sei”. Ela estava atenta ao que ele dizia, e a cada três minutos seu rosto se contorcia de dor. Desejei poder fazer alguma coisa, mas sabia que, naquele momento, eu era um inútil.
– Ok… - Ela falou, depois do que pareceu serem horas - Tudo bem, vou falar com ele. Obrigada.
Ela desligou e logo em seguida deixou seu rosto se contorcer mais uma vez em agonia. Sentei do lado dela um pouco desesperado, levando uma das mãos até sua barriga sem pensar, tentando tomar alguma atitude que a fizesse sofrer menos. Senti um chute forte contra meus dedos, e pela primeira vez ignorei isso. Esperei sua dor suavizar para falar outra vez.
– E então? - Perguntei sem me preocupar em disfarçar o desespero na voz - O que ele disse?
Anne respirou fundo, parecendo concentrada em alguma coisa, enquanto me entregava o celular.
– Ele disse pra irmos pro hospital. Agora.
Assim que chegamos no hospital, me deparei com a difícil tarefa de parecer normal. Eu havia prometido acatar ao pedido de Anne, repetido exaustivamente durante todos os 15 minutos de viagem (que, em condições normais, deveriam ser feitos em meia hora).
“Não faça um escândalo”. “Seja normal”. “Nervosismo é uma coisa. Pânico é outra”.
– Boa noite. Minha mulher entrou em trabalho de parto e precisa ser atendida. - Comecei, tentando engolir o grito para as três mulheres da recepção. Como imaginei que elas não me levariam a sério, me apressei em adicionar: - O obstetra mandou que ela viesse o mais rápido possível.
Uma das mulheres, talvez notando a força que eu fazia para não explodir (ou talvez notando que Anne estava mesmo em trabalho de parto) se apressou em conseguir uma cadeira de rodas em algum canto ali perto da recepção. Ajudei-a a se sentar com cuidado, e uma nova onda de contrações a atingiu. E cada vez que seu rosto se contorcia eu tinha vontade de socar alguém ao meu lado por não fazer nada para que a dor dela passasse.
– Vocês têm que preencher alguns dados desse formulário… - Uma delas começou, claramente não entendendo a situação.
– Eu preencho o que você quiser, mas coloque a minha mulher em um quarto primeiro!
– Vocês são o casal do Dr. Leandro? - Uma outra mulher perguntou.
– Somos.
– Ele já está esperando. Vou levá-los até lá.
Tudo que tivemos que fazer foi andar por um longo corredor - Anne na cadeira de rodas, eu (com um formulário nas mãos) e a recepcionista caminhando -, entrar em um elevador e chegar a uma sala verde-bebê enjoativo. E mesmo sendo tudo o que tivemos que fazer, a coisa toda pareceu demorar mais do que tinha que demorar. Anne não deixou escapar nenhum som. Ela parecia querer manter suas dores em silêncio, mesmo que suas contrações ficassem mais constantes e aparentemente mais fortes a cada minuto. Sem saber o que fazer para ajudá-la, e tendo certeza que nada do que eu tentasse surtiria efeito, apenas fiquei ao lado dela o tempo todo, repetindo coisas como “tudo vai dar certo” e “já estamos chegando”.
Eu estava angustiado. Angustiado porque não podia fazer com que sua dor passasse. E porque minha filha queria sair dela à força. E era claro que eu sabia que isso aconteceria algum dia, mas vê-la se contorcendo daquela forma só tornava tudo um pouco mais desesperante.
– Boa noite! - O Dr. Leandro disse assim que entramos na sala de pré-parto. Havia mais duas mulheres lá dentro, parecendo serem suas auxiliares de parto, que o ajudaram com a tarefa de levantar Anne da cadeira e sentá-la em uma cama alta.
– Doutor, ela está com muita dor! - Me apresei em falar, não lembrando de retribuir o “boa noite” dado - O senhor não pode dar algum remédio…
– Bruno, ela está em trabalho de parto. Não há muita coisa que possa ser feita. A única coisa que vai fazer com que a dor passe é o nascimento do bebê.
O rosto dela se contorceu outra vez, e outra vez me contorci também, por instinto.
– Ei, já preencheu o formulário?
Percebi que ele estava falando comigo.
– Quê? Não…
– Ótima hora pra fazer isso. Volte daqui a uns quinze minutos, ok?
– Quê? - Exclamei, surpreso - Não! Não vou deixá-la sozinha…
– Bruno, nós temos que seguir alguns procedimentos aqui. - Ele se voltou para mim, falando com uma autoridade de médico e, ao mesmo tempo, de pai - Eu tenho que fazer alguns exames nela, e você não tem que ficar grudado à sua mulher o tempo todo. Não se preocupe, você vai estar presente no parto. Mas não precisa estar presente na tricotomia.
– Mas…
– Nós só vamos mudar a roupa dela e checar se está tudo bem. Não tem porquê se preocupar, ok? Vá preencher seu formulário, ligue pra quem tem que ligar e tome um calmante antes que eu mesmo injete um em você à força.
Respirei fundo tentando me controlar. Encarei Anne outra vez e notei que ela estava no breve período de trégua entre uma contração e outra.
– Amor… - Comecei, me aproximando dela e sentindo uma enorme vontade de me desculpar: Mesmo que não fosse por vontade própria, eu tinha que sair. Antes que me tirassem de lá à pontapés.
– Vai. - Ela falou em um tom de voz baixo, e eu sabia que Anne não estava sendo rude, mas apenas evitando falar demais e deixar escapar algum gemido de dor.
Me aproximei do seu rosto e a beijei apaixonadamente, empregando intensidade suficiente para que ela entendesse que eu voltaria e que estava odiando ter que deixá-la naquele momento.
– Estou de volta em quinze minutos. - Falei contra o seu rosto, encarando-a nos olhos - Eu vou voltar. E quando voltar, não vou sair do seu lado.
Ela assentiu com a cabeça de forma simples.
Me forçando a dar meia volta e caminhar para fora da sala, eu saí.
E então tudo começou a desmoronar.
Depois de responder a todas aquelas malditas perguntas no formulário e esperar pacientemente pelos quinze minutos estipulados pelo Dr. Leandro, voltei para o corredor que daria para a sala de pré-parto e, para minha surpresa, fui impedido de prosseguir até a porta.
– Sr. Coolin? - O homem falou, parado à minha frente parecendo não querer se mover.
– Sim?
– O Dr. Leandro pediu para mantê-lo por mais algum tempo aqui fora.
Continuei encarando o homem desconhecido, tentando entender o motivo daquilo.
– Por quê? - Perguntei secamente.
– Ele ainda não terminou de fazer os exames necessários na sua esposa.
O rapaz parecia algum tipo de enfermeiro ou auxiliar. E, talvez coincidentemente - embora eu achasse ser proposital -, ele tinha quase o dobro do meu tamanho. Talvez o Dr. Leandro já me conhecesse o suficiente para saber que eu tentaria entrar naquela sala caso um armário não estivesse me impedindo.
– Ele disse “quinze minutos”. - Falei ainda frio, começando a caminhar para a porta.
– Mas ele ainda não acabou. - O homem repetiu, se colocando à minha frente da maneira mais educada que conseguia.
“Seja normal”. - A voz de Anne ecoou pela minha cabeça - “Seja normal”.
Respirei profundamente uma vez. E depois, outra. E outra logo em seguida.
– Por que ele ainda não acabou? O que está havendo?
– Às vezes os exames demoram…
– Mas ele disse “quinze minutos”! - Eu sabia que aquilo já não era mais um argumento, mas mesmo assim me agarrava a ele.
– O senhor precisa se acalmar…
Aquilo definitivamente não era a coisa certa para se dizer a alguém que precisava se acalmar.
– Não vou me acalmar até conseguir ver minha mulher e me certificar de que está tudo bem! - Falei com uma voz baixa e forçada, tentando por tudo no mundo acatar ao pedido de Anne e não fazer nenhum escândalo.
– O senhor tem que se acalmar se não quiser deixar sua esposa nervosa também. Ela precisa da sua calma, precisa da sua força.
Pela primeira vez, o que aquele homem dizia estava fazendo algum sentido. Mas aquilo indicava que não estava tudo bem. Não estava tudo bem.
– O que está acontecendo? - Repeti, agora sem fazer menção de correr para a porta e mandá-la abaixo. Ele suspirou.
– Ela não tem dilatação suficiente. E as contrações estão ficando cada vez mais frequentes.
– E o que isso significa? - Perguntei com uma voz já esganiçada.
– Isso não significa nada… - Ele começou, dando uma ênfase esquisita na palavra “isso”, mas quando ia pedi-lo para desembuchar logo tudo que eu sabia que ele estava escondendo de mim, fui interrompido por uma voz conhecida.
– O que está acontecendo? - Minha mãe falou do outro canto do corredor, andando apressadamente ao meu encontro. Meu pai vinha logo atrás dela.
– Ela não tem dilatação suficiente, seja lá o que isso signifique… - Comecei, e minha mãe agora encarou o enfermeiro, ou auxiliar, ou o que quer que ele fosse.
– É só esperar até que ela tenha, não é? - Ela perguntou, com a pouca experiência que tinha naquele assunto - Qual o problema nisso?
O homem encarou-a de volta, parecendo escolher as palavras certas.
– Houve uma complicação. O Dr. Leandro está tentando ver se é possível realizarmos o parto normal logo. O feto está recebendo oxigênio insuficiente…
– QUÊ? - Falei, agora completamente em pânico.
Nesse exato momento, a porta que eu queria derrubar há alguns minutos atrás se abriu e uma maca passou por ela, com quatro pessoas em volta. Deitada nela, estava a minha esposa.
– O QUE ESTÁ ACONTECENDO? - Gritei para o médico, já seguindo-o enquanto ele empurrava a maca para uma outra sala mais ao fundo do corredor.
Anne estava, para variar, com sua expressão de dor, e eu corri para segurar sua mão ou ficar ao lado dela de alguma forma. Mas assim que a maca entrou em uma das portas, pela segunda vez, fui impedido de acompanhá-la. Dessa vez, pelo Dr. Leandro, que se colocou à minha frente antes que nós dois pudéssemos entrar.
– Está acontecendo uma coisa que nós chamamos de Sofrimento Fetal. - Ele começou sem nenhuma preparação, bastante sério e frio, e só de ouvir aquela expressão senti meu estômago afundar - Isso não quer dizer que sua filha esteja sofrendo ou sentindo dor. O fato é que o cordão umbilical está sendo pressionado e o oxigênio que está chegando ao feto não está sendo suficiente. Nós vamos ter que fazer uma cesariana. Você autoriza a operação?
Continuei estático, me mantendo de pé só Deus sabia como. Ele parecia com pressa, e aquilo fez com que eu não tivesse tempo de pensar sequer no que tinha acabado de ouvir.
– Não tem outro jeito…? - Comecei completamente atordoado, mas fui interrompido pela voz grave do médico outra vez.
– Não, não tem. Temos que fazer logo pra que sua filha sobreviva.
Sobreviver. Minha filha sequer tinha nascido ainda, e já estávamos falando da sua sobrevivência.
– É óbvio… Óbvio que autorizo… Faça tudo o possível…
Minha voz saiu abafada, quase baixa demais para ser ouvida. Eu estava incrédulo, incapaz de aceitar que aquilo tivesse se transformado em um pesadelo daquela magnitude. Tudo estava acontecendo rápido demais, e minha cabeça, ainda trabalhando de forma lenta, não conseguia acompanhar. Meu peito começou a doer, uma dor abstrata mas muito real. O medo de perder minha filha sem sequer tê-la visto uma única vez estava me corroendo, me matando. E, somado a isso, a minha impotência diante daquela situação era esmagadora. Eu não podia fazer nada - absolutamente nada - para ajudar.
– Você ainda quer entrar? Quer estar presente no parto? - A voz do médico soou outra vez, me tirando do meu poço de tristeza e desespero.
– É lóg… É lógico!
– Então, a partir de agora, recomponha-se. Sua esposa não pode ficar mais nervosa. Você precisa estar calmo ao lado dela, precisa tranquilizá-la. Ela não sabe o que está acontecendo.
Respirei fundo, desejando ter mais tempo para me preparar. Eu não podia fazer nada para ajudar no problema de fato, mas se a única coisa que me restava consistia em ficar do lado dela e apoiá-la naquele momento, mesmo que ela não soubesse de tudo que estava acontecendo, era exatamente isso que eu faria. Nem que eu mesmo não confiasse no meu autocontrole ou na minha capacidade de lidar com aquele pesadelo.
– Você pode fazer isso? - Ele me perguntou, já abrindo novamente a porta atrás de si. Parecendo muito mais confiante do que realmente estava, respondi de imediato:
– Sim.
– Ok. - Ele pontuou, segurando no meu ombro de uma maneira firme - Vai dar tudo certo.
Não falei nada, rezando silenciosamente para que aquelas palavras fossem uma certeza, e não apenas otimismo. Me dei conta pela primeira vez em muito tempo de que meus pais ainda estavam ali, atrás de mim, e por mais que eu quisesse ser consolado por eles, não queria parecer fraco. Não naquele momento.
– Nós vamos ficar aqui. - Meu pai disse - Vai dar tudo certo.
Assenti com a cabeça firmemente, ignorando a dor na garganta pelo choro preso e disfarçado. Sem dizer mais nada - porque eu sabia que se ficasse para ouvir mais palavras doces da minha mãe, acabaria desmoronando -, entrei na porta pela qual o Dr. Leandro já havia passado. Me dei conta então de que o que eu achava ser uma sala era, na verdade, um outro corredor. Um corredor menos comprido e mais fino, com apenas duas portas à direita e uma à esquerda. Quando estava pronto para me dar como perdido ali, o homem que antes havia me impedido de ver Anne saiu de uma das portas à direita e me entregou roupas verdes, dobradas e limpas.
– Vista isso. Troque-se naquela sala. Quando estiver pronto, entre na sala de parto. - Ele pontuou, sem se preocupar em me dar maiores explicações. No segundo seguinte, o homem puxou o pano verde que lhe cobria o queixo e tampou a área da boca e do nariz, entrando na sala à esquerda logo em seguida e me deixando sozinho ali.
Um pouco apressado - porque não havia tempo para raciocinar -, corri para a porta que ele tinha apontado e me troquei lá dentro, em um banheiro muito claro e um pouco apertado. Ao vestir todo o conjunto, me dei conta de que estava exatamente como aquele homem agora: Camisa e calças verdes, uma touca e uma máscara. Estava vestido como algum cirurgião, com o uniforme próprio para entrar na sala de parto. Deixei minhas roupas ali mesmo, incapaz de pensar.
Tudo parecia acontecer muito rápido, e não havia nenhum sentimento em mim além de um medo esmagador. Mas não importava o tamanho do meu medo ou o quão frágil eu estava, tudo teria que ser deixado de lado para dar lugar a uma coragem que eu não possuía. A coragem e a certeza que precisava de mim, de que tudo daria certo.
Havia seis ou sete pessoas na sala quando entrei. Ela estava deitada em uma cama alta, um foco de luz muito forte e grande logo acima da sua barriga. Em volta dela, o obstetra - que seria o responsável pela cesariana -, uma mulher ao seu lado, mais outra perto de uma bandeja cheia de pequenos objetos metálicos e cortantes, um homem que parecia checar sua pressão e outras pessoas que não me dei ao trabalho de analisar. A sala era clara e espaçosa, mas o ausência de casualidade e de vozes despreocupadas me fazia sufocar.
– Oi, amor… - Falei perto do rosto dela, fazendo-a se virar para mim e me encarar ali.
Ela sorriu em resposta, soltando uma leve lufada de ar, como se estivesse mais tranquila por me ver ali. Mas não falou nada. Ela parecia sonolenta, e eu imaginava que tinha algo a ver com a anestesia.
– Tudo bem? - Ouvi a voz do Dr. Leandro soar abafada por debaixo da máscara, e ao encará-lo, notei que a pergunta não havia sido direcionada a mim, mas sim a uma das pessoas ali perto.
– Tudo bem. - O homem do outro lado da cabeça de Anne respondeu. E então, as pessoas ali começaram a se comunicar entre si, passando e repassado objetos enquanto cortavam com cuidado a pele da barriga dela.
Segurei uma das suas mãos com firmeza, agoniado por ter a impressão de que ela sentia dor. Mas ela não reclamava. Tudo que fazia era permanecer calada e neutra, olhando para o vazio no teto da sala. Eu não queria assistir o que eles faziam com a pele da barriga dela. Não porque passaria mal de alguma forma, mas porque, sinceramente, tudo que eu queria ver saindo dali era a minha filha: Bem, saudável e chorando alto.
Estava mais concentrado no semblante completamente neutro dela, porque mesmo que aquilo fosse normal, eu não conseguia me convencer de que estava tudo bem. Ela parecia calma demais.
– Está tudo bem? - Falei muito baixo, perto do seu ouvido. Ela apenas sorriu e piscou, muito lentamente, assentindo vagamente com a cabeça. Os médicos se mexiam para lá e para cá. O homem ao lado dela continuava monitorando os sinais vitais. O tempo parecia não passar, talvez porque estivéssemos com pressa em retirar minha filha de dentro da barriga dela.
– Vai ficar tudo bem. Já já vai acabar. - Falei aleatoriamente, segurando sua mão com força enquanto tentava empregar um tom de casualidade na voz. Ela piscou mais duas vezes. - E nós ainda temos que escolher um nome pra ela, sabe?
– Você pode escolher. - Ela respondeu baixo.
– Não, vamos escolher juntos.
Ela deu um sorriso calmo, e só. Parecendo cansada de manter os olhos abertos, ela os fechou e ficou daquela maneira por algum tempo.
O aperto que sua mão fazia na minha afrouxou um pouco.
– Meus pais estão aí fora. - Soltei de repente, apenas com o intuito de mantê-la distraída - Eles vieram assim que souberam…
– Tenho que cortar agora. - Ouvi o médico falar, parecendo mais distante do que realmente estava. A mulher próxima à bandeja com os objetos se mexeu com um pouco de pressa, e três outras pessoas começaram a se agitar por ali. Respirei fundo, tentando não transparecer a preocupação.
A sala estava quente demais para mim. Levei minha mão livre à testa de Anne e brinquei com alguns fios que estavam ali, grudados no suor dela também. Eu não via nada que acontecia na cirurgia, porque havia um lençol estrategicamente colocado entre nós e os médicos que cuidavam da operação. Era um pouco angustiante supor o que estava acontecendo apenas pelas reações que eram verbalizadas.
– Vamos logo… - Ouvi o Dr. Leandro dizer outra vez, e sua voz tinha um tom de urgência. Não era pressa, mas sim algo mais, em um tom bastante baixo. Talvez propositalmente baixo.
– Está sangrando muito…
Respirei fundo outra vez. Meu coração não estava bem. Eu não estava bem. Queria que aquilo terminasse logo, mas cada segundo parecia se arrastar por horas. Anne havia aberto os olhos novamente, mas eles piscavam tão devagar que, a cada piscada, pareciam não ter forças para se abrirem outra vez. A energia do outro lado do pano começou a aumentar. Eu não sabia o que estava acontecendo, mas não parecia estar tudo como deveria estar. Sem pensar direito, puxei a máscara para baixo e livrei minha boca para poder falar em um tom baixo ao pé do seu ouvido.
– Você lembra no dia do seu aniversário? Que eu te levei naquele lugar e nós passamos a tarde inteira ali? - Comecei, sem saber exatamente o porquê de estar falando e lembrando daquilo - Eu acho que foi um dos melhores dias da minha vida.
Ela sorriu em câmera lenta, mas de forma verdadeira. Seus dedos se afrouxaram um pouco mais em volta dos meus. Ela não respondeu nada, fechando outra vez os olhos e mantendo-os fechados por um bom tempo até abri-los outra vez, me encarando com doçura, com amor. Me encarando como se quisesse olhar para mim, e nada mais.
– Agora! - O médico falou, suficientemente alto para que nós dois escutássemos. Mas Anne continuou sonolenta, completamente dopada. Recomecei a falar sem rodeios, sem pensar que talvez fosse melhor ficar calado. Eu queria dizer alguma coisa, nem que fosse para não prestar atenção no que estava acontecendo. Nem que fosse para distrair Anne de tudo aquilo.
E, inesperadamente, tudo que eu falava acabava soando como confissões, como verdades guardadas que precisavam ser reveladas naquele momento. Por algum motivo.
– E você lembra quando eu te dei os parabéns? Só Deus sabe o quanto eu queria te abraçar naquela hora, mas tinha que me segurar pra não acabar…
Fui interrompido por um choro. Um choro baixo, agudo, esganiçado. O som pelo qual eu esperava ouvir. Minha filha havia nascido, e agora chorava à plenos pulmões, exercitando-os com oxigênio, alto, freneticamente. E por uma fração de segundos eu me senti leve. Por uma fração de segundos eu me senti feliz, completo. Senti que tinha tudo que precisava naquela fração de segundos: Minha mulher e minha filha ali, comigo.
Tudo estava bem. Mas só por uma fração de segundos. Porque, depois disso, tudo começou a acontecer rápido demais.
– Rápido!
– A pressão dela!
– Vamos rápido!
– Não estou conseguindo! Não estou conseguindo!
O choro continuava alto e estridente. Parecia um choro normal.
– Eu não consigo estancar… Está sangrando muito!
– A pressão dela está despencando! - O homem do outro lado falou, e então me dei conta de que “ela” de quem estavam falando não se tratava da minha filha. Se tratava de Anne.
– Agora! Vamos agora!
Agarrei a mão dela por instinto, com toda a força que tinha, sem me preocupar se a estaria machucando. Seus dedos não se fecharam nos meus como eu esperava: Não havia força ali. Ela estava se apagando.
– Amor… - Falei, agora completamente desesperado. Encarei seu rosto e constatei que, surpreendentemente, seus olhos estavam abertos, me encarando como se só pudessem fazer isso mesmo. Ela ainda mantinha um sorriso fraco nos lábios, um sorriso quase apagado, mas genuíno. Anne parecia sonolenta, mas, ao mesmo tempo, cansada. Sua respiração estava acelerada demais…
– Senhor, precisamos fazer um procedimento… - Uma voz apressada começou ao meu lado, e mãos vindas de sabe-se lá onde começaram a me empurrar com cuidado
– O senhor tem que ir. Por favor…
Eu não estava ouvindo direito. Meus olhos ainda estavam nos dela, implorando para que o que quer que estivesse errado desaparecesse. Apertei outra vez sua mão, tentando fazer com que ela reagisse, mas era inútil. Tudo que recebia dela era aquele olhar complacente e aquele sorriso simples, quase morto.
“Eu te amo”, seus lábios conseguiram se mover em silêncio, como se emitir som àquela confissão fosse difícil demais. O sorriso ainda estava lá, quase morto, mas ainda lá. Ela piscou mais uma vez, e eu esperei para que seus olhos se abrissem novamente. Mas eles permaneceram fechados. E de repente, aquele “eu te amo” pareceu soar como uma despedida.
– Agora, senhor! - Ouvi a voz ao meu lado, mas ainda assim, tão distante. Minhas mãos foram rudemente soltas da mão dela, e depois de algum tempo que eu não saberia precisar - porque o pânico já havia me tirado a noção de realidade -, me encontrei, de repente, no corredor do lado de fora da sala de parto.
Alguém tinha me tirado de lá.
O que estava acontecendo?
– O que… O que… - Gaguejei, tentando parar de tremer, enquanto recuperava a força e os pensamentos.
– Sua filha está bem, senhor…
Meus olhos entraram em foco novamente, e notei que o homem com quem eu falava era o mesmo homem que antes não havia me deixado entrar na sala de pré-parto. Inconscientemente, eu já estava relacionando a cara daquele maldito enfermeiro a algo ruim.
– Minha filha está bem… - Repeti, tentando digerir aquela verdade. Ela estava bem. Mas eu não havia conseguido sequer vê-la, porque tinha sido expulso da sala de parto - Minha mulher…
– Sua mulher estava sangrando muito. Nós…
– O que aconteceu? - Perguntei, ainda completamente desnorteado.
– Ela teve uma hemorragia. A pressão dela caiu. Tínhamos que agir rápido…
– Senão? - Perguntei, querendo saber exatamente qual era a dimensão do problema. Ele suspirou, e o maldito suspiro demorou tanto que eu estava a ponto de segurá-lo pela gola e prensá-lo contra uma parede para que ele cuspisse o que eu queria saber.
– O coração dela pode parar. Nós temos que controlar a hemorragia antes que seja tarde…
O coração dela pode parar.
O coração dela pode parar…
Comecei a cair em um abismo. Silenciosamente.
– O coração dela… O coração…
– Ela perdeu muito sangue. Nós temos que tentar…
Eu não estava ouvindo. Meus ouvidos estavam tomados por um zumbido estranho e incômodo. Minha boca estava incrivelmente seca, minhas mãos tremiam. Minha garganta parecia se fechar aos poucos, como se a onda de pânico que me atingisse não desse sinais de trégua: Era aquilo. Um nervosismo crescente, paredes se fechando ao meu redor e nada que pudesse ser feito para empurrá-las de volta.
– Eu preciso voltar… - Consegui falar enquanto não olhava para lugar nenhum em particular. Me desvencilhei das mãos do homem e caminhei novamente para a porta, completamente perdido, completamente em choque, quase não notando que ele próprio formava um obstáculo bastante difícil de ser passado. O homem era muito forte, e conseguia lidar facilmente comigo naquele estado.
– Senhor…
– Eu tenho que voltar… - Continuei, ignorando a força contrária aos meus passos. Era possível que eu sequer estivesse me mexendo, mas minha decisão cega e minha vontade de ir eram o suficiente.
– O senhor não pode voltar.
– Me larga… - Minha voz começou a adquirir um novo tom. O tom da impaciência, cobrindo até mesmo meu próprio desespero.
– Não posso. Não vou soltá-lo. O senhor atrapalharia…
– EU TENHO QUE VOLTAR! - Explodi, e o sangue quente pareceu voltar a correr nas minhas veias, me tirando do estado quase letárgico em que o pânico havia me colocado - EU PROMETI A ELA QUE ESTARIA LÁ! EU PROMETI A ELA! EU TENHO QUE ESTAR DO LADO DELA! EU FALEI QUE ESTARIA!
– O senhor só vai atrapalhar lá dentro! - O homem respondeu, não no mesmo tom, mas se forçando a falar mais alto e com maior autoridade - Precisamos salvá-la! Deixe que os médicos trabalhem!
Tentei afastar suas mãos outra vez, mas por mais desesperado que eu estivesse, não seria o suficiente para passar pelo homem. “Você não entende! Você não entende!”, eu repetia, rezando para que ele subitamente entendesse sem que eu precisasse explicar. Sem que eu precisasse dizer, e lembrar, que já havia a decepcionado uma vez. Que já havia faltado com a minha palavra antes, e que não cumprir a promessa de estar ao lado dela a havia feito sofrer no passado. Eu precisava estar ao lado dela. Porque eu devia isso a ela muito mais do que o normal. E porque eu disse que estaria lá. E não estava. E aquele homem não entendia a dimensão do meu desespero.
– Se o senhor não se acalmar, terá que esperar no corredor de fora!
Sacudi suas mãos para longe outra vez e dei meia volta, indo para o outro lado do corredor. Eu não podia fazer nada para voltar, mas se aquela era a menor distância que eu teria da minha mulher, eu aceitaria. Sentei no chão, ao lado da porta da sala onde minhas roupas originais ainda estavam, encostado na parede e, sem saber o que fazer, abaixando a cabeça. Talvez daquela forma, encolhido a um canto, fosse mais fácil lidar com a dor e com o pânico. Talvez eu pudesse ao menos respirar.
Não a tire de mim.
Eu não era religioso, mas sabia que a vida dela pertencia a algo maior. E fosse o que fosse esse “algo”, eu imploraria para que Ele permitisse que ela ficasse comigo. Porque eu não podia perdê-la. Eu não estava pronto sequer para começar a pensar nisso. Nossas vidas haviam se entrelaçado há muito pouco tempo, e perdê-la não era justo. Não era justo.
Por favor, não a tire de mim.
Ouvi passos apressados entrando pela porta que dava para o corredor externo e me virei. Eram mais dois médicos, vestidos exatamente como o Dr. Leandro, e sem sequer reparar na minha presença ali, no chão, ou do homem ao meu lado, de pé, eles seguiram correndo para dentro da sala de parto. O silêncio deu algumas toneladas extras ao ar naquele ambiente. A tonalidade verde-bebê me enjoava. O cheiro de produtos farmacêuticos misturados com ar-condicionado provocava uma sensação horrível. Era como esperar pela morte.
Era como esperar para sempre.
Não a tire de mim.
Meus lábios se moveram dessa vez. As palavras tomavam forma a medida que o meu desespero aumentava. Eu não podia perdê-la. Eu não podia sequer cogitar essa possibilidade. Ela era importante demais. Era necessária. Como infernos eu viveria sem ela, amando-a daquele jeito doentio? Como infernos eu tomaria conta da nossa filha sozinho? Eu não tinha essa competência, não tinha essa segurança. Eu precisava dela, em todos os sentidos. Precisava dela como mãe, como amante, como amiga. Era necessário que ela saísse daquela sala viva. Bem. Saudável.
Por favor, por favor…
Mais passos apressados entraram pela mesma porta, seguindo o mesmo caminho dos passos anteriores. Dessa vez, não me virei. Continuei com a cabeça baixa, minhas mãos atrás do pescoço puxando com violência os fios ali. Todos aqueles profissionais estavam correndo contra o tempo para salvarem Anne. Todos eles sabiam da urgência. Ou parte dela.
Duas lágrimas escorreram simultaneamente pelo meu rosto, uma de cada olho. Não me importei. Sabia que eram raros os momentos que me deixavam daquela forma, mas se simples medo não era o suficiente para me fazer chorar, pânico era. Um desespero tão esmagador e dominante que temi não conseguir voltar à superfície da minha própria fé, temi não conseguir respirar outra vez.
Por favor… - Balbuciei - Por tudo quanto é mais sagrado. Não a tire de mim…
Fechei os olhos e me deixei ser engolido pelo medo, mas sem nunca deixar de repetir aquelas mesmas palavras, em voz baixa, quase como uma oração.
Não a tire de mim…
Eu não posso perdê-la…
Aquilo era repetido como mantra. Meus lábios já trabalhavam automaticamente, cuspindo devagar meu desespero. Minhas preces.
Não sabia se havia alguém perto de mim.
Não sabia quanto tempo havia se passado.
Não sabia se estava frio ou quente.
Em certo ponto, eu não sabia sequer onde estava.
Mas sabia que não deixaria de pedir e implorar para que Anne ficasse bem até que alguém me informasse que não era mais necessário. De uma forma ou de outra.
Por favor,
Por favor, não a tire de mim..
Por favor.
Eu PRECISO dela.
– Bruno…
Antes mesmo de conseguir associar aquela voz à figura do Dr. Leandro, eu já estava de pé, mas não sem dificuldades. Eu tremia tanto que meus joelhos pareciam a ponto de ceder, me fazendo cair de volta no chão. Me apoiei na parede atrás de mim com o intuito de permanecer de pé, tentando não me desesperar enquanto o encarava.
– Ela vai ficar bem, não vai? - Perguntei de maneira automática, desesperado por uma confirmação. Era óbvio que ela ficaria bem. Não havia outra opção. E se a resposta fosse diferente disso, tudo não passaria de uma brincadeira de muito mau gosto - Vocês conseguiram… Não é…?
Ele suspirou audivelmente e depositou uma das mãos no meu ombro, e aquilo se arrastou por uma eternidade. Sua expressão era neutra: eu sequer podia conjecturar sobre sua resposta.
Mas não importava. Eu ainda estava ocupado demais, rezando silenciosamente. Ele só precisava confirmar o que eu tinha que ouvir.
Ele PRECISAVA confirmar.
VOCÊ ESTÁ LENDO
De repente, Amor.
Romance"Bruno é um jovem homem de negócios, embora não saiba nem do que se tratam os contratos que assina. Anne é uma prostituta de luxo, que apesar de se sentir extremamente mal por isso, não encontra uma saída para mudar de vida. Como havia de ser, os do...