– Nós conseguimos. - Ele finalmente falou - Ela vai ficar bem.
O peso esmagador que comprimia meus pulmões se dissolveu em um estalo, quase doloroso, e então eu senti que podia respirar outra vez. Mais do que isso, o alívio que senti foi tão grande que, possivelmente, me desequilibrei. Ao sentir os braços do Dr. Leandro se firmarem nos meus, fiz a primeira e única coisa que achei certa, por mais que soasse até um pouco patético.
– Obrigado! - Falei, abraçando-o com desespero, como se ele tivesse acabado de salvar minha própria vida. - Muito, muito obrigado!
– Não há de quê… - Ouvi-o dizer, e quis respondê-lo que havia muito, MUITO pelo que agradecer. Mas ele não entendia. E eu não fazia questão de explicá-lo.
– Como ela está?
– Sedada. - Ele respondeu de maneira simples - Ela perdeu muito sangue, nós tivemos que correr. É o que chamamos de choque hipovolêmico. O coração dela não estava distribuindo sangue suficiente para os outros órgãos, mas nós conseguimos controlar a hemorragia. Está tudo bem agora.
Está tudo bem agora.
– Eu tenho que vê-la. - Falei de repente, me livrando dos braços do médico e já caminhando, um pouco bambo, pelo corredor.
– Bruno, ela está sedada. - Ele repetiu, segurando meu ombro e me impedindo de prosseguir.
– Não importa. Eu tenho que…
– Tem muitos médicos lá dentro terminando o procedimento. - Ele insistiu. - Você não pode entrar…
Encarei-o de maneira séria, mesmo ainda estando um pouco atordoado. É claro que ele não entendia tudo que eu estava sentindo, mas ao menos uma coisa ele tinha que entender:
– Eu PRECISO vê-la.
Ele suspirou, largando o meu ombro logo em seguida.
– Ok, Bruno. - Ele finalizou, derrotado - Só espere mais um pouco. Troque de roupa e espere lá fora. Quando ela já estiver em um quarto, eu te aviso. Tudo bem?
“Bem” não estava. Mas era melhor do que ficar sem vê-la. Por isso, tirando forças unicamente da minha vontade em estar ao lado dela outra vez, fiz como ele pediu, voltando a vestir minhas roupas de antes, secando as lágrimas e saindo para o corredor onde, para minha surpresa (porque eu tinha esquecido do resto do mundo), meus pais ainda me esperavam.
– Graças a Deus! - Minha mãe exclamou assim que me viu, correndo até mim e me abraçando. Senti um nó apertando minha garganta, mas o ignorei. Por causa daquela ligação estranha que tínhamos, ela sabia que algo muito ruim tinha acontecido, mas sabia também que, agora, tudo estava bem - O que houve?
Tentei explicar tudo que o Dr. Leandro e o enfermeiro haviam me dito, fazendo força para lembrar dos detalhes mas, ao mesmo tempo, esquecer.
Porque eu queria esquecer o pânico que tomou conta daqueles últimos minutos. Do desespero, da sensação de sufocamento, do medo e da tristeza esmagadora.
Eu quase tinha perdido Anne, mas aquilo havia passado. E eu queria deixar essa lembrança para lá.
E eu queria vê-la. Desesperadamente. Queria ficar perto dela outra vez. Tocá-la outra vez. Ter certeza de que ela estava bem, que estava tranquila, que não estava sentindo dor ou sofrendo. Eu precisava vê-la. Precisava estar com ela.
E pacientemente, eu esperei. Informei meus pais de que passaria aquela noite no hospital, porque sabia que Anne teria que ficar. Ao reconhecer dezoito chamadas não atendidas de Jhulie no meu celular, pedi para que eles dessem notícias à ela e ao Arthur, porque obviamente não estava em condições de fazer isso eu mesmo. Eles me fizeram companhia durante todo o tempo de espera, e fiquei feliz por isso: Eu estava estranhamente sensível. O perigo já tinha passado, mas eu ainda me sentia frágil, com um certo medo.
Me despedi dos meus pais de qualquer jeito quando fui avisado de que já podia subir. Desejei intimamente saber dar mais valor à atenção que eles tinham por mim, mas naquele momento era impossível. De qualquer forma, eles entendiam, e eu sabia disso.
– Ela está dormindo. Só vai acordar amanhã. Você não vai poder falar com ela ainda… - O Dr. Leandro começou, caminhando comigo pelo corredor.
– Não importa. - Respondi prontamente. Era óbvio que eu queria falar com ela, mas poder estar ao seu lado já era o suficiente.
– É aqui. - Ele disse, parando à frente de uma das portas do corredor - Pro conforto dela, nós a trouxemos pra um quarto melhor, mais amplo. Isso não estava nos nossos planos, por isso você vai ter que resolver algumas pendências…
– Tudo bem. Faço isso amanhã. - Respondi automaticamente. Não me importava quanto a mais eu teria que pagar, não me importava nada. Nada era importante o suficiente naquele momento. Talvez eu me comprometesse a pagar o triplo de qualquer diferença em dinheiro para que simplesmente me deixassem em paz.
– Tudo bem.
– Como está a minha filha? - Perguntei, antes de deixá-lo ir.
– Dormindo, provavelmente. Mas ela está bem, não se preocupe. Parece uma menina bastante saudável. Amanhã vocês dois a verão.
Suspirei, feliz com a sensação leve do oxigênio nos meus pulmões. Podia parecer algo banal, mas respirar, há pouco tempo atrás, não era uma tarefa assim tão fácil.
– Ok. Obrigado…
– Espero que você consiga dormir. Sei que o dia não foi fácil. Claro que cadeiras de hospitais não são muito confortáveis, mas…
– Não tem problema. Contanto que eu fique com ela, está tudo bem.
Ele sorriu, e seu sorriso leve fez com que eu me sentisse melhor. Ele estava calmo, porque não havia mais com o que se preocupar. E se não havia mais com o que se preocupar, eu estaria calmo também.
– Boa noite, Bruno.
– Boa noite… E obrigado por tudo…
Ele se afastou com um simples aceno de mãos, mas eu não esperei perdê-lo de vista para girar a maçaneta e entrar no quarto em que minha mulher estava. Como havia sido dito, ela estava dormindo. A cama era larga e parecia confortável, até onde me era possível presumir. Anne parecia calma, em um sonho tranquilo. Seus batimentos e sua respiração estavam sendo monitorados por aparelhos quase silenciosos atrás da cama, e aquilo fez com que ela parecesse mais frágil do que nunca. Ela tinha tubos finos no nariz e nas costas das mãos, e eu sabia que era melhor não tocá-la. Mesmo assim, uma enorme vontade de abraçá-la me atingiu como um soco, mas me contive.
Tudo que fiz então foi observá-la nos seus mínimos detalhes, das suas pálpebras imóveis à intensidade da sua respiração. Ela estava bem. Ela ficaria bem, e isso era o suficiente.
Toquei com cuidado no seu braço esquerdo, com o único intuito de senti-la. Sentir que ela estava ali. Que eu não a tinha perdido. Que ela acordaria de manhã e abriria aqueles olhos que eu tanto amava.
E, de repente, me dei conta de que estava chorando outra vez.
– Senhor?
Fui retomando a consciência aos poucos, um pouco desnorteado. Ou talvez eu estivesse sonhando. A voz era feminina, bastante paciente. Mas desconhecida, até onde eu lembrava.
– Senhor? - A voz insistiu, com um toque leve no meu ombro. A sensação era boa, mas vinha de algum outro lugar. Da minha nuca, talvez. Como se meus cabelos ali estivessem sendo remexidos delicadamente.
– Ele não pode ficar aí?
Aquela voz era diferente da anterior. Era mais fraca, mais bonita, um pouco mais rouca. E era conhecida.
Abri os olhos imediatamente com o som, ainda completamente perdido. Minha visão estava turva. Pisquei algumas vezes, insistentemente, e isso ajudou. A sensação boa na minha nunca continuava.
– Hmppffff…
Eu não sabia direito para onde estava olhando, mas sabia que o lugar era claro. Fiz uma força quase sobre-humana para virar a cabeça, enfiando o rosto nos lençóis e quase sufocando sem querer. Tinha um leve cheiro de farmácia. Pisquei mais algumas vezes e encontrei Anne me encarando com um sorriso simples. A lembrança de tudo que vivi no que provavelmente foram as últimas horas vieram rapidamente, e eu levantei a cabeça de uma vez.
Eu tinha trocado a cadeira de acompanhante, aparentemente confortável, por uma cadeira qualquer, que deixasse minha cabeça à altura da cama dela. Depois de algumas horas de insônia, quase no nascer do sol, eu finalmente havia adormecido ali, curvado ao lado dela, na altura da sua barriga. Os dedos dela brincavam nos fios da minha nuca. Ela ainda estava recebendo soro, mas os tubos finos que antes estavam abaixo do seu nariz haviam sido removidos. Ela não parecia doente: Apenas frágil.
– Bom dia. - Anne falou, e sua voz saiu baixa em meio a um sorriso. Aquele era, sem a menor sombra de dúvidas, o melhor “bom dia” que eu já havia recebido em toda a minha vida.
Tirei sua mão dos meus cabelos e a trouxe até minha boca, beijando sua palma com cuidado, feliz demais para fazer qualquer outra coisa por um longo tempo.
– Está tudo bem? - Ela perguntou de repente, e a simples menção de responder “sim” já trouxe um nó à minha garganta, me impossibilitando de falar. Como saída, apenas sacudi a cabeça positivamente, tocando com meus próprios dedos cada pequeno pedaço da pele do braço dela que conseguia alcançar.
– Por favor, por favor, nunca mais me assuste desse jeito… - Comecei com uma voz estrangulada.
– Eu sinto muito…
O tom da sua voz mostrava que ela realmente sentia. Mas não devia: A culpa não era dela. E eu não queria que ela se sentisse culpada, ou triste, ou qualquer coisa que destoasse muito de uma sensação boa.
– Desculpa por não estar do seu lado o tempo todo… - Voltei a falar - Eu tentei…
– Não tem problema…
– Mas me expulsaram… Eu tentei voltar… - Continuei me explicando da melhor maneira que podia, mas ela não pareceu se importar.
– Não tem problema. - Ela repetiu, trazendo sua mão até o meu rosto e me tocando com leveza. Fechei os olhos e quase me perdi no toque dela.
– Como você está? - Perguntei um pouco extasiado por aquele simples ato.
– Estou bem. Um pouco fraca, mas bem.
Suspirei, trazendo sua palma outra vez contra minha boca e deixando-a ali. Eu já sabia que, se é que era possível, passaria a tratá-la com mais zelo do que antes. Talvez isso me tornasse um pouco insuportável, mas era inevitável: Passar pela possibilidade de perdê-la havia mexido demais comigo.
– O corte da operação está doendo?
– Um pouco. Mas eu aguento.
– Você quer algum analgésico? - Uma voz perguntou em algum canto, e só então me dei conta de que não estávamos sozinhos. Me lembrei então de que era a mesma voz que tinha tentado me acordar havia alguns minutos: Uma enfermeira muito pequena e nova, parada ao pé da cama.
– Bom, talvez não seja uma má ideia. - Anne pontuou, fazendo uma careta para ela.
– Senhor… - A mulher começou outra vez - Pode nos dar alguns minutos?
Eu não queria sair. Era irritante a mania que aquelas pessoas tinham de me mandar ir embora o tempo todo. Por que infernos eu nunca podia ficar perto dela?
– Por quê? - Perguntei, já meio seco.
– Nós vamos ajudar sua esposa com o banho e os curativos…
– Eu posso ajudar também.
– Mas são quatro enfermeiras ao todo, não há necessidade…
– Tudo bem, eu não tenho lugar nenhum pra ir mesmo.
– Bruno… - Anne começou com a mesma voz fraca, e eu bufei contrariado.
– Em quanto tempo eu posso voltar? Vão me deixar entrar dessa vez? - Perguntei sem me preocupar se estava sendo grosseiro.
– Volte em meia hora, senhor. - A enfermeira respondeu, sem se deixar abalar - E o senhor vai poder entrar, não se preocupe.
– “Não se preocupe”… - Resmunguei debochado enquanto me levantava e me dava conta da dor aguda nas costas por ficar algumas horas curvado na mesma posição.
– Talvez você também queira um analgésico. - Anne falou, rindo da careta de dor que eu sabia estar fazendo.
– Não, tudo bem. Eu vou resolver algumas pendências com o hospital e volto em trinta minutos. - Falei pontualmente, olhando sério para a mocinha que ainda nos assistia.
– Ok. Não vou a lugar nenhum. - Ela riu outra vez, deixando claro que aquilo era uma tentativa de piada. E mesmo que fosse uma piada sobre seu estado de saúde, o que a tornava bastante sem graça, eu ri. Porque vê-la bem era maravilhoso.
Beijei sua testa, me segurando ao máximo para não tomá-la em um abraço efusivo, e saí.
Passei na farmácia quase ao lado do hospital, comprando pasta e escova de dentes para que pelo menos me sentisse mais limpo. Depois de lavar o rosto rapidamente no banheiro, corri até o carro no estacionamento e peguei a enorme bolsa esquecida com roupas para Anne e para nossa filha, tentando resolver tudo que tinha que ser resolvido com a recepção nesse meio tempo.
– Como ela está? - Minha mãe me perguntou enquanto me acompanhava pelo corredor, a caminho do quarto dela. Ela havia chegado naquele mesmo momento, carregando um buquê enorme de flores.
– Bem. Mas acho que está com dor…
– Cesarianas são dolorosas mesmo.
– Só espero que deem um remédio pra ela que faça efeito…
– E a minha neta? - Ela sorriu como uma menininha feliz.
– Eu ainda não vi… - Falei, já me sentindo um péssimo pai.
Eu ainda não tinha visto minha filha, que havia nascido na noite anterior! Claro que as circunstâncias ajudaram a tornar tudo mais difícil, mas ainda assim…
– Quando a trouxerem pro quarto… - Minha mãe começou enquanto eu abria a porta, mas parou de falar no segundo seguinte. Ou isso, ou meus ouvidos simplesmente bloquearam a voz dela. O Dr. Leandro estava ali, de pé ao lado da cama, com mais uma enfermeira. Anne estava encostada na cabeceira, segurando o que parecia ser uma trouxinha de roupa e olhando para ela com amor.
E eu sabia o porquê: Aquela “trouxinha” era a nossa filha.
– Eu achei que você estivesse aqui… - Ouvi uma voz falar em um tom baixo, mas ignorei. Provavelmente pertencia ao doutor, já que a voz era muito rouca para ser da mulher desconhecida, e ele era a única presença masculina ali. Andei devagar até o lado de Anne e vi um bebê minúsculo e faminto mamando em um dos seios inchados pela produção de leite.
Ela mantinha os grandes olhos azul-acinzentados abertos o tempo todo, encarando um ponto qualquer à sua frente como se estivesse hipnotizada com o momento. Suas bochechas eram redondas e rosadas, e a boca era muito vermelha. Ela era incrivelmente linda. Anne desviou os olhos dela por um ou dois segundos, apenas para me encarar e sorrir. Notei isso pela minha visão periférica, porque eu mesmo não conseguia tirar os olhos dela.
Ela sugava com tanto empenho que quase me perguntei se Anne não estava sentindo dor. Uma de suas mãozinhas estava descansando no seio, completamente alheia a tudo à sua volta. Acho que fiquei naquela posição durante muito, muito tempo, olhando para ela completamente embasbacado. Senti minha boca ressecar, e me dei conta de que talvez fosse melhor fechá-la. Ninguém falou nada durante todo aquele tempo, e se falou, meu cérebro se empenhou em não registrar. Quando ela pareceu satisfeita, sua pequena boca começou a desacelerar os movimentos de sucção e seus olhos começaram a piscar como se estivessem pesados. Anne levou uma das mãos à sua cabecinha e passou com cuidado os dedos ali. Isso pareceu chamar sua atenção, que imediatamente encontrou os olhos da mãe a observando.
– Está com sono? - Ela perguntou em uma voz muito baixa, falando diretamente com a coisinha minúscula, como se seus tímpanos fossem muito sensíveis ao som. A pequena ficou encarando-a imóvel, como se o som daquela voz fosse muito, muito importante. E isso fez meu coração derreter até a última gota.
– Acho que você está com sono. - Ela falou outra vez, não conseguindo conter o largo sorriso no próprio rosto. Era provável que eu estivesse pulando no mesmo lugar como um idiota. Eu era um homem crescido, mas a visão da minha mulher e da minha filha recém-nascida trocando sorrisos e olhares estava atingindo um grau de fofura muito pouco adequado para a minha masculinidade.
– E você sabe quem é esse? - Ela continuou, inclinando um pouco os braços e deixando nossa filha de frente para mim. Seus olhos encontraram os meus, mas não pareceram se interessar por mim - Esse é o homem que, não importa quantos namorados você tiver, ele vai sempre te amar mais.
Sorri com aquilo, pensando na palavra “namorados” e já traçando planos em como assassinar anonimamente todos eles.
– Oi… - Falei meio sem jeito, fazendo força para não engasgar, e mesmo baixo, o som da minha voz pareceu transformá-la. Seu desinteresse se transformou em uma expressão de curiosidade e total atenção, como se, naquele momento, ela tivesse me reconhecido. Ela mudou tão completamente que era como se nos conhecêssemos havia uma vida inteira, e embora fosse bobo pensar isso, eu quase podia ouvir seus pensamentos dizendo “Ah, mas esse é o meu pai!”.
– Ah, então você sabe quem ele é! - Anne falou outra vez, e ouvi um risinho animado atrás de mim. Provavelmente da minha mãe - Você quer ir pro colo dele?
Ela continuou me encarando como se eu fosse alguém muito importante.
– Eu posso? - Perguntei de repente, olhando de Anne para o médico, um pouco incerto de como prosseguir.
– Até onde eu sei, ela é sua filha. - Ela respondeu, debochada - É claro que você pode.
O olhar de curiosidade e interesse não sumia do pequeno rosto dela, e eu estava começando a ficar realmente hipnotizado com aquilo.
– Mas… Ela é frágil…
– Tenho certeza que você não vai jogá-la no chão.
Era óbvio que eu não faria isso! Era mais fácil atear fogo nos meus próprios olhos do que deixar que minha filha caísse. Mas, e se ela se sentisse desconfortável no meu colo? Sem esperar que eu me preparasse, Anne me ofereceu cuidadosamente a nossa filha, que parecia estar se divertindo com a minha total falta de experiência. Aceitei-a um pouco descoordenado no início, mas logo a ajeitando nos braços e a deixando confortável ali.
Ela era tão incrivelmente pequena que eu poderia segurá-la com uma única mão. Fiquei encarando-a hipnotizado, pensando em como alguém tão pequeno podia ter quase feito um estrago tão grande na noite anterior. Mas não havia como não amá-la: O fato de Anne quase me deixar não era culpa dela. Foi uma eventualidade, uma coisa que não era culpa de ninguém realmente.
E agora, tendo as duas ali comigo, sem a impressão de que ficando com uma eu teria que perder a outra, praticamente nada poderia acabar com aquela felicidade.
– Acho que ela prefere o seu colo…
Ela continuou se mexendo em câmera lenta, agora finalmente cansada de me encarar e contorcendo sua expressão em um mini-bocejo, fechando os olhinhos com força e abrindo completamente a boca em um “o” tão minúsculo e lindo que me fez sentir uma vontade quase inumana de agarrá-la até quase asfixiá-la. E então, cinco segundos depois, ela dormiu.
– Meu Deus… - Ouvi a voz da minha mãe ao meu lado, quase sussurrando - Ela é tão linda…
– É verdade. - A voz do doutor disse.
– Ela é perfeita… - Anne falou.
– Acho que ela vai parecer com você… - Respondi, mas não a encarei. Meus olhos estavam fixos na nossa filha. Eu simplesmente não conseguia deixar de admirá-la.
O som de uma gargalhada debochada me trouxe de volta à realidade, e quando olhei em volta, todos riam abertamente.
– Que foi? - Perguntei confuso.
– Bruno, ela é a sua cara!
– Não! - Respondi - Claro que não!
– Querido… - Minha mãe começou carinhosamente - Ela é igual a você.
– Ela é só um recém-nascido! Tem cara de… recém-nascido!
– Não, filho. Ela é uma cópia sua. Parece que estou vendo você recém-nascido.
– Vocês estão enganados… - Insisti. Eu não queria que ela se parecesse comigo.
– Não estamos não. - O Dr. Leandro falou, então entendi que todos naquele quarto estavam contra mim.
– Os olhos dela… De que cor vão ser? - Perguntei, querendo me agarrar à esperança de que minha filha teria alguma coisa de Anne. Principalmente os olhos.
– Não podemos definir ainda. - O médico se prontificou em responder - Todos os bebês nascem com olhos azul-acinzentados. A cor só se define depois de alguns meses.
– Bruno… - Senti uma mão firme no meu ombro e me dei conta de que meu pai tinha surgido de algum lugar, encarando agora a coisinha que eu carregava nos braços - Ela é uma cópia sua!
Bufei, olhando para baixo outra vez e vendo minha filha brincar inconscientemente com a pequena língua, trazendo-a para fora algumas vezes, como se estivesse constantemente fazendo careta. Não consegui deixar de sorrir com aquilo. Encostei a ponta do indicador na sua mão e ela enrolou seus dedos gordinhos ali, quase não conseguindo fechá-los. Contei cinco deles e chequei se os outros cinco estavam do outro lado também.
Apalpei delicadamente seus pés, sentindo dez dedos no total. Duas orelhinhas, dois bracinhos, duas perninhas e nada entre elas.
– Ela é perfeita…
Eu poderia ficar com ela nos braços para sempre, mas meus pais também queriam tirar uma casquinha. Concordei em ceder-lhes minha filha por alguns minutos, um pouco contrariado por possivelmente atrapalhar seu sono. Felizmente, ela não acordou.
Tirei fotos deles para enviar à Jhulie (que, àquela altura, já havia me ligado mais de cinquenta vezes) e conversei com o médico mais uma vez sobre a saúde da minha filha e da minha mulher. Fiquei um pouco triste ao anunciarem que era hora de levá-la de volta ao berçário. Meus pais aproveitaram a deixa para irem embora também, mas minha mãe prometeu voltar todos os dias para visitar Anne, o que a deixou genuinamente feliz. Quando todos nos deixaram a sós no quarto, pude aproveitar o momento para desfrutar da companhia dela - e só dela.
– Temos que decidir uma coisa… - Comecei, ainda na mesma posição na qual havia passado as últimas horas: Deitado naquela cama de hospital, agarrado a ela o máximo que seu frágil estado pós-cesariana permitia.
– O quê? - Ela perguntou, já quase adormecendo outra vez.
– O nome dela.
Anne suspirou, se ajeitando um pouco na cama e virando o rosto para mim, parecendo repentinamente acordada.
– Eu andei pensando sobre isso… - Ela começou, corando um pouco, e eu tentei encorajá-la a prosseguir:
– E…?
– E… Pensei em Valentina.
– Valentina. - Repeti, e o simples som do nome na minha voz conseguiu me deixar um pouquinho mais feliz, me fazendo sorrir involuntariamente - É. Perfeito.
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De repente, Amor.
Romance"Bruno é um jovem homem de negócios, embora não saiba nem do que se tratam os contratos que assina. Anne é uma prostituta de luxo, que apesar de se sentir extremamente mal por isso, não encontra uma saída para mudar de vida. Como havia de ser, os do...