◇◇◇◇
Um salto de tempo já vai acontecer na história, tudo explicado, mas, bem depressa.
Carol, porque tão rápido?
Então gente, é porque o foco é os dois juntos, não separados. Por isso então as coisas vão acontecer assim rápido.◇◇◇◇
Paguei o valor que o taxímetro indicava e saltei, arrumando as bolsas e mochilas nos ombros.
Caminhei para dentro com um pouco de dificuldade, notando que aquele lugar não havia mudado em praticamente nada.
As paredes ainda eram encardidas, a pintura de um amarelo escuro desagradável.
A mulher que me olhava do último degrau, na porta do prédio, mantinha uma expressão desagradável no rosto, quase indiferente a mim.
Chegando no último degrau, repousei as bolsas pesadas no chão e encarei-a.
– Sabe onde posso encontrar o responsável…
– Sou eu. Só tenho dois apartamentos vagos.
– Tudo bem. Qual é o mais barato?
Dois minutos depois, já estava arrumando minhas malas enfileiradas de uma forma que desse um pouco mais de espaço ao apartamento, que consistia em um cômodo grande sala-quarto-cozinha com bancada e um banheiro menor.
Tudo que decorava o ambiente era um sofá-cama marrom, um móvel pequeno e gasto comportando uma TV que eu duvidava funcionar e uma geladeira velha.
Eu lembrava que não havia burocracia naquele lugar, então todo o acordo entre as partes consistia no hóspede pagando o aluguel em dia para o proprietário, do contrário seria automaticamente convidado a se retirar sem cerimônias ou modos educados.
Naquele momento, era o que eu podia ter.
Minhas economias foram drasticamente abaladas pela minha estadia não remunerada na Casa de Rayana, o que também me lembrava que eu tinha que começar a procurar alguma coisa para fazer, antes que minha vida terminasse de desmoronar.
Deitei no sofá e encarei o teto por algum tempo.
Eu tinha que começar a tomar atitudes e sabia disso, mas minha força de vontade era quase tão grande quanto a de um toco de madeira. Eu não queria fazer nada, não sentia vontade de nada, e desejei profundamente que pudesse viver como uma planta, me alimentando apenas de luz.
Mas a vida não era perfeita, então eu precisava fazer alguma coisa, e rápido. Tinha que começar uma jornada de busca desemprego o mais rápido possível, e rezar para que conseguisse alguma coisa, qualquer coisa que pudesse me manter naquele lugar.
Eu não tinha planos para longo prazo.
Não tinha planos de nada, e isso me fez notar como minha vida estava na merda.
Simplesmente não havia o que esperar, não havia um objetivo. Meu único objetivo, dia após dia a partir de agora, seria continuar viva.
Não havia um motivo claro para isso. Eu não tinha planos, simplesmente não sabia o que seria, como seria, e a falta de meta na minha própria vida fazia com que, ao invés de me estimular a descobrir uma, eu me acomodasse numa sobrevivência apática e sem graça.
Até o dia que um milagre acontecesse ou um raio resolvesse me atingir no meio da rua.
O que viesse primeiro. Tudo bem.
Eu sempre acreditei que todas as pessoas vêm ao mundo com um propósito. Eu encontraria o meu, cedo ou tarde. Até lá, a única coisa que eu tinha a fazer era continuar vivendo.
Continuar sobrevivendo.
De repente, senti saudade da época que isso parecia ser fácil...
Eu lembrava da última vez que havia saído para procurar emprego.
Com uma educação profissional interrompida pelas tragédias da minha vida, não havia muitas opções.
As chances de uma mulher sem ensino médio concluído eram menores que as dos homens, porque homens quase sempre tinham o curinga de um emprego braçal.
Mas eu era uma mulher. Uma mulher que nunca na vida havia trabalhado em algo que não exigisse meu corpo como parte do acordo, então as coisas eram mais difíceis.
Ou isso, ou meu estado de espírito insistia em me dizer que absolutamente tudo o que eu tentava era impossível de conseguir.
Durante algum tempo, procurei em lanchonetes e bares vagas para garçonete.
Procurei vagas de atendente em lojas, balconistas ou vendedores.
Os empregadores normalmente exigiam currículo ou carta de recomendação para profissões como secretárias até de consultórios de pequeno porte ou ajudantes de veterinário.
Enquanto isso, eu tentava conciliar o dinheiro que mantinha na conta bancária, em constante decadência, com meu dia a dia.
Optei por não pegar conduções em excesso e gastar somente com o necessário.
Como minhas condições exigiam, não era viável procurar emprego em lugares muito distantes, já que isso me traria gastos além dos que eu poderia ter, então minha área de procura estava restrita àquela parte da cidade, onde ironicamente não havia quase nada.
Continuei procurando por pequenas tarefas que poderiam me dar algum retorno financeiro, mesmo que fossem instáveis ou temporárias, mas isso também parecia ser difícil de encontrar.
Somado a isso, veio a cobrança do primeiro aluguel, coisa que eu teria facilmente esquecido caso não tivesse sido rudemente lembrada.
Como resumo dos meus dias, eu tinha manhãs e tardes ocupadas por tentativas fracassadas de emprego, enquanto a noite me servia um prato cheio de nada a ser feito, o que me dava tempo demais para pensar em coisas demais.
Pensar em coisas ruins, me lamentar por coisas passadas, não acreditar em melhorias futuras.
De fato, minha depressão estava tomando proporções maiores a cada dia, e era visível minha completa apatia pela vida. Eu não tinha motivos para me empenhar em fazer absolutamente nada, não tinha pessoas as quais pudesse contar, não tinha sequer inimigos para odiar.
Nada era realmente importante, e eu temia estar entrando em um estado vegetativo irreversível.
Isso era notório especialmente pelos empregadores que me recusavam qualquer proposta.
Muitos foram sinceros ao falar que simplesmente não viam em mim vontade alguma de fazer coisa alguma, e que “esse não era o perfil procurado”.
Mas embora aquilo fosse compreensível, eu simplesmente não tinha forças para mudar. No fundo, eu não tinha motivos para mudar, e mesmo que o motivo fosse “arranjar um emprego”, no final das contas isso também não tinha um porquê.
Frequentemente eu entrava em espirais de pensamentos negativos, e me perguntava quando foi o momento exato em que minha vida deixou de fazer sentido. Mas o pior de tudo era não ter ninguém para me convencer do contrário.
O maior dos meus problemas era ter tempo demais para pensar demais. Isso provavelmente não faria muitos danos a alguém com uma vida normal, mas infelizmente esse não era o meu caso. Então, em momentos vazios do meu dia, eu me pegava pensando em coisas que eu não devia pensar.
Fossem elas lembranças, sonhos impossíveis ou pensamentos aleatórios, todas acabavam fazendo com que eu saísse no prejuízo, e talvez a parte mais patética disso tudo era o fato de não ter o menor controle sobre minha própria cabeça. Por isso, não eram raros momentos em que eu sabia que não deveria estar lembrando de certas coisas, mas mesmo assim continuar pensando nelas. E o pior de tudo, sentir saudades.
Não havia mais como negar: Eu já não fazia o menor esforço para parar de pensar nele, e eu sabia o quão ridículo isso era porque havia problemas demais na minha vida, coisas mais urgentes com as quais eu deveria me preocupar. Mas a lembrança dele simplesmente insistia em tomar conta de mim como uma força superior, e eu não tinha condições de negá-lo, mesmo que em pensamento.
Assim, meus momentos de reflexão consistiam basicamente em pensar nele, lembrar dele e, mesmo depois de tudo, ainda querê-lo. Mesmo sabendo que era impossível. Mesmo sabendo que desejá-lo só me tornava mais fraca e infeliz a cada dia.
Vez ou outra a razão surgia em mim, então eu usava o pouco da fé que ainda tinha para pedir que eu pudesse esquecê-lo.
Mas não seria assim tão fácil.
Então, além de uma vida completamente sem sentido, eu também tinha que lidar com o fantasma dele me assombrando todos os dias e todas as noites, me deixando perigosamente vulnerável a uma mera lembrança.
Minhas noites mais recentes haviam sido passadas em claro, fruto de minhas preocupações ou da minha depressão quase crônica.
Quando meu corpo se rendia ao cansaço, na maioria das vezes minha cabeça não tinha forças para sonhar, mas eventualmente lampejos dele vagavam pela minha mente, tornando meus sonhos um pouco mais prazerosos. Ironicamente, isso só fazia com que, por contraste, minha realidade fosse muito pior.
Eu queria esquecê-lo, mas uma pequena parte um tanto masoquista queria manter um pouco dele guardado comigo, porque era ali que se encontravam alguns dos momentos mais simples da minha vida, e de uma forma ou de outra, felizes.
Era uma pena que tudo havia acabado de uma forma tão triste e amarga, mas ainda assim, não deixava de ter sido doce um dia.
Era tudo que havia restado. Um amargo forte que temperava cada dia, cada tentativa e cada fracasso.
E era com esse gosto que eu acordava todas as manhãs, quando conseguia dormir.
– Um novo dia, Ninha.
Eu havia desenvolvido a mania de falar comigo mesma, já que não tinha um animal de estimação ou uma bola de vôlei para me fazer companhia. Era importante me manter lúcida, e além disso, eu poderia checar se minhas cordas vocais não estavam atrofiando gradativamente com a falta de uso.
– Adivinha o que você vai fazer hoje?
A mesma coisa que eu fazia todos os dias ultimamente.
– Exatamente. E hoje você vai se sair bem, porque é seu dia de sorte.
Hoje seria o meu dia de sorte, e com esse pensamento na cabeça, era uma boa maneira de começar o dia.
É isso aí. Nada como o poder da indução.
Ultimamente, boa parte das minhas horas matinais eram desperdiçadas por causa da minha enorme falta de vontade em levantar. Assim, meus dias vinham começando mais tarde do que deveriam para uma pessoa desempregada.
Por isso, eu pensei que fosse ser um bom sinal aquela manhã ter sido diferente. Acordei mais bem disposta e mais confiante do que o normal, o que poderia ser sinal de mudanças boas na minha vida.
Mas eu deveria ter mantido meu ceticismo em assuntos relacionados a sorte e coisas do tipo. Não pelo fato de agora serem aproximadamente 18h e eu não ter conseguido nada.
Era o que acontecia todos os dias, portanto isso não era sinal de azar, mas sim uma constante irritante.
O problema era no que estava por vir.
– Veja bem, eu não sou o dono daqui, sou apenas o gerente.
– Mas o senhor não pode me ajudar?
Havia poucas pessoas no lugar. A lanchonete era clara e alegre, o que contrastava fortemente com o ar triste e feio daquela rua escura. O bairro era vizinho ao meu, e ainda que fosse pobre, já apresentava uma aparência consideravelmente melhor. Se eu conseguisse algo ali, seria um bom lugar porque, além de não ser longe, era bem mais agradável.
– Você disse que não tem experiência.
Era verdade, eu não tinha experiência nenhuma, em nada. Nada além daquilo do que eu tentava fugir.
– Mas eu prometo que vou me empenhar.
– Nós não estamos precisando de outra garçonete, moça.
Eu estava a ponto de ajoelhar ali mesmo e implorá-lo para que pudesse ter uma chance. Aquela tinha sido, até agora, minha melhor oportunidade.
– Por favor, me deixe tentar por algum tempo.
O homem agora me olhava com um pouco de pena. Eu estava desesperada e falava com toda a sinceridade da alma, então esperava que ele acreditasse no meu empenho e pudesse me ajudar de alguma forma.
– Olha, o dono deve estar chegando por agora. Ele vem sempre no final da tarde ver como foi o balanço do dia, então você pode falar com ele. Eu não tenho muita lábia, mas vou tentar convencê-lo, ok?
Aquilo me animou. Era a primeira vez que eu tinha uma real oportunidade, então concordei e agradeci exageradamente, enquanto sentava na sala dos fundos a qual o homem havia me levado.
Senti-me um pouco nervosa com aquilo, porque seria algo como uma entrevista. Eu poderia colocar tudo a perder, por isso tentei me concentrar e pensar em respostas boas para perguntas aleatórias, quando meu possível futuro empregador chegasse e resolvesse fazê-las.
Devo ter ficado ali por algum tempo, tentando me concentrar e me manter tanto calma quanto otimista, e não notei quando já não estava mais sozinha na sala.
– Boa noite. - Disse o homem.
– Boa noite. - Respondi, me levantando - Meu nome é Anne.
Notei que ele olhava de forma estranha para mim, então me correu um leve arrepio por toda a extensão da espinha. Seus olhos estavam focados em mim, enquanto um sorriso meio debochado brincava em seus lábios.
– Olá, Anne.
Ele continuava com o sorriso estranho, me encarando como um predador. Eu poderia até dizer que o conhecia de algum lugar. Talvez já o tivesse visto antes, mas onde?
– Sente-se.
Obedeci, sentando-me novamente na cadeira ao meu lado, e o vi arrastar outra cadeira para perto, imitando meu ato logo em seguida. Notei que ele estava de frente para mim, inclinado em minha direção, enquanto me analisava de cima a baixo.
Ele estava perto demais. Desconfortavelmente perto.
– Então, o que você quer aqui? Meu empregado disse que queria falar comigo sobre um emprego.
– É… - Comecei, desviando o olhar dele e encarando agora minhas mãos - Eu não tenho experiência como garçonete, mas posso prometê-lo que vou me esforçar pra fazer tudo certo.
Ele se inclinou mais em minha direção, e no mesmo momento que sua boca foi parar em minha orelha, senti uma de suas mãos em minha coxa esquerda.
– Eu sei bem em que você tem experiência, Anne.
Estaquei em choque, enquanto lutava para assimilar suas palavras.
Ele me conhecia. Ele sabia o que eu era.
– Da última vez que te vi, você não estava assim tão magra, mas ainda lembro de você. Foi uma das melhores noites que eu passei naquela casa, sabia?
Ele tinha sido meu cliente. Eu não lembrava exatamente dele, não sabia seu nome, mas tinha a impressão que o tinha visto em algum lugar.
E onde mais haveria de ser?
– Eu… - Comecei, mas não sabia ao certo o que falar. Eu queria que ele saísse de perto de mim, queria que ele parasse de falar coisas ao pé do meu ouvido enquanto ia subindo sem cerimônias suas mãos pelas minhas pernas, mas não conseguia me mexer. Eu estava em pânico, e por mais que eu quisesse, tomar uma atitude era impossível.
– Eu não… Eu só queria…
– Sabe o que eu acho? Acho um desperdício. Você é tão boa no que faz…
Por que ele tinha que lembrar de mim? Por que ele tinha que me conhecer?
– Não pode jogar fora um talento tão bom assim, querida. Onde já se viu, uma menina tão habilidosa deixar isso de lado?
– Eu não faço… mais… Vai me dar o emprego?
Senti o riso debochado dele no meu pescoço, e estremeci.
– Não posso permitir que uma puta trabalhe na minha lanchonete, paixão. Tente entender. Mas se você quiser oferecer outros serviços..
Dizendo isso, ele segurou rudemente minha mão e, com força, a apertou contra sua ereção.
Aquilo foi o gatilho para que meu sistema nervoso fizesse alguma coisa e me permitisse ter alguma reação. Levantei-me extremamente rápido, o que fez com que eu derrubasse a cadeira na qual estava sentada. Ele continuou me olhando com um sorriso debochado no rosto, enquanto me olhava outra vez de cima a baixo.
Antes que eu pudesse me dar conta, saí correndo da sala, esbarrando com o homem que havia me atendido antes. Ele notou meu estado de nervos, mas obviamente não entendeu o que estava acontecendo.
– Sinto muito, espero que você consiga o emprego em outr…
Eu já estava na porta que dava para a rua, e não parei um segundo sequer para olhar para trás, enquanto desviava de alguns transeuntes despreocupados. Subitamente senti meu rosto mais frio, então percebi que ele estava molhado. Eu não notei quando as lágrimas haviam começado a descer, mas não importava.
– Merda! Merda de azar! Por que nada dá certo na porra da minha vida? - Falei para mim mesma, ainda caminhando rápido, sem um destino certo.
Algumas pessoas me olhavam como se eu fosse algum animal de circo, e a vontade que eu tinha era mandar todos irem à merda.
Estigma. Desgraça.
Meu passado seria sempre uma desgraça na minha vida, e eu teria sempre que fugir dele, me esgueirando entre um canto e outro para que ele não me seguisse onde quer que eu fosse.
A dúvida era se eu poderia fugir dele para sempre, se poderia contar sempre com a sorte, ou se teria que aceitar que coisas como as que acabaram de acontecer poderiam acontecer outra vez.
Eu não conseguia conter as lágrimas que teimavam em cair, mas não era como se eu realmente estivesse tentando. Eu simplesmente não me importava mais com nada, porque nada tinha mesmo importância nenhuma.
Depois de muito tempo e provavelmente uma longa caminhada, olhei em volta e notei que não sabia onde estava.
Tudo bem, isso era só mais uma das coisas ruins que sempre me aconteciam, e eu já estava me acostumando com aquela maldita falta de sorte.
Sentei em um banco e tentei me acalmar, porque eu não conseguiria encontrar o caminho de volta se não estivesse raciocinando direito. Infelizmente, a tentativa de foco só fez com que uma raiva intensa se apoderasse de mim, e junto a ela, uma indignação maior que a que eu vinha sentindo durante todo esse tempo.
Eu estava irada, inconformada, desesperançosa e miseravelmente infeliz.
Estava acabada, estava cansada de tentar ser outra pessoa. Cansada de falhar, de tentar e nunca conseguir nada. Cansada de não ter uma chance, cansada de ser humilhada e diminuída.
Mas no final das contas, era só isso que eu era.
Uma puta.
E uma puta não poderia ser outra coisa além de puta. Eu deveria saber disso.
Fiquei de pé. Sequei as lágrimas e decidi que não importava mais. Eu seria o que tinha que ser, porque se era só para isso que eu servia, se era só isso que eu conseguia fazer, então seria desse jeito.
Eu sabia que agora adotava uma expressão dura e vazia, e se minha expressão espelhasse o vazio que sentia, eu deveria estar assustadoramente neutra e sem vida.
Mas não importava. Nada importava.
Precisei de algum tempo para me localizar.
Peguei o ônibus errado, o que me deixou longe de casa, mas não reclamei.
A partir de agora, eu não aceitaria ou deixaria de aceitar o que quer que acontecesse comigo. As coisas simplesmente aconteceriam, e eu só estaria ciente delas.
Eu entraria no piloto automático. Aquele que não me permitia ter emoções ou pensar nelas.
Seria irreversível.
Cheguei em casa perto das 20h. Me dirigi ao chuveiro mecanicamente, enquanto tomava minha decisão, pensando o mínimo possível sobre ela e sobre as consequências que ela traria.
Não sabia quanto tempo o banho havia durado. Não sabia qual shampoo havia usado ou se a água estava quente ou fria. Simplesmente agi sem pensar em nada, e possivelmente poucos minutos depois eu abria minha mala, tirando de lá a primeira peça de roupa vulgar e chamativa à vista.
Um vestido azul curto e justo. Uma peça que eu nunca havia tido coragem de usar.
Perfeito.
Vesti-o rapidamente e, ainda sem pensar, procurei por um par de sapatos altos que completariam o visual “piranha barata”.
Sem me olhar no espelho, busquei meu kit de maquiagem, outra coisa raramente usada por mim. Voltei ao banheiro e escovei os cabelos, ainda no piloto automático, sem olhar para meu próprio rosto no espelho.
Acabada a etapa do penteado, escolhi as sombras mais escuras e delineei meus olhos com elas. Quando a produção em ambos os olhos pareciam iguais, escolhi o batom mais escuro e um blush vivo.
Sem saber qual era o cheiro, espirrei a esmo o perfume do frasco dourado pelo corpo, então finalmente prestei atenção ao meu reflexo.
Eu não sabia quem era ela.
Era uma estranha, mas me encarava como se me conhecesse há tanto tempo.
A mulher do espelho não era eu, mas talvez, dentro dos olhos castanhos, um resquício do que eu fui ainda existisse.
Talvez. Mas agora, não havia mais ninguém ali.
Ninguém além de uma puta.
…
Caminhei devagar pela rua, enquanto tentava me lembrar do caminho para onde estava indo. Antigamente eu teria rezado para que ninguém me visse sair do prédio ou que as calçadas estivessem desertas àquela hora, mas hoje eu não me importava.
Não era como se eu fosse ganhar ou perder alguma coisa se as pessoas me vissem daquele jeito, ou se alguém me reconhecesse.
Eu simplesmente não pensava em nada, e enquanto caminhava despreocupada pela calçada, minha cabeça parecia estar estranhamente vazia. Vazia de uma forma que eu nunca havia sentido, como se meu cérebro de repente tivesse parado de querer pensar e agisse de forma automática.
Por um lado, era bom. Não pensar fazia com que eu não me lamentasse e não sofresse. Era um estado um tanto quanto autista, mas era mais fácil. Quando eu pensava, chegava a rápidas e péssimas conclusões, como o grande poço de merda que era a minha vida, e como não havia algo de bom a esperar.
Mas isso só mostrava que meu estado vegetativo agora tomava proporções assustadores, e talvez se continuasse dessa forma, eu poderia desaprender a interagir com as pessoas.
Seria preocupante se eu me importasse. Mas eu não me importava mais.
Algum tempo depois, só Deus poderia dizer quanto, finalmente cheguei à rua que eu conhecia.
Aquele era o lugar em que eu tinha passado muito tempo trabalhando antes de Rayana me achar e me levar para sua casa.
Nada havia mudado. As calçadas ainda eram sujas, fruto do final de um dia tumultuado e cheio. Aquela via comportava multidões durante o dia, que corriam de um lado para o outro e deixavam ali suas marcas.
As paredes eram escuras, e todas as lojas de pequeno porte agora se encontravam fechadas com portas de ferro.
Abertos, só alguns bordéis baratos e apertados, que piscavam uma irritante luz rosa avermelhado.
Nas portas abertas, podia-se ver alguns casais e nenhum pudor ou classe. A rua não era muito movimentada, mas vez ou outra surgiam clientes que chegavam em seus carros e escolhiam suas acompanhantes, enquanto os que estavam a pé aproveitavam a noite ali mesmo.
Espalhadas pelas calçadas, ao longo de todo o comprimento da rua, podiam ser vistas mulheres dos mais variados tipos. Algumas conversavam entre si, enquanto bebiam e gargalhavam de qualquer coisa.
Outras esperavam sozinhas, fumando um cigarro após o outro. Todas usavam roupas vulgares e apertadas, e algumas até ousavam nas transparências.
Aquele panorama abalou um pouco as estruturas do meu muro de indiferença recém adquirido.
Lembrar daquele lugar era uma coisa, mas vê-lo novamente nas mesmas condições e estar prestes a reviver tudo outra vez era outra coisa.
Algo com o qual talvez eu não conseguisse lidar.
Encostei em uma das paredes com falta de ar, tentando mais que tudo não pensar em nada.
Eu não poderia pensar, porque se o fizesse, não suportaria. Eu seria tomada pela razão e não conseguiria fazer o que estava prestes a fazer. Eu simplesmente sucumbiria, ali mesmo, e só Deus sabe qual seria o resultado disso.
Tentei inspirar e expirar o ar lenta e pausadamente, para oxigenar bem o cérebro e me acalmar. Eu tinha tido uma crise antes, havia um pouco mais de três meses, quando me vi frente à mesma situação. Bom, quase a mesma. A situação em que eu estava no momento era consideravelmente pior.
Procurei na bolsa pequena que carregava algum calmante, mas não havia nada de útil ali. Tentei ignorar as duas mulheres que riam de mim a pouco mais de três metros enquanto caminhava para uma pilastra próxima.
Ao chegar, encostei meu corpo ali e fechei os olhos, numa tentativa desesperada de não entrar em pânico.
Eu podia sentir a vontade de chorar me tomar aos poucos, e eu sabia que se me permitisse derramar a primeira lágrima, as outras seriam impossíveis de segurar.
Assim, a única coisa na qual me concentrava era na força hercúlea que fazia para desmanchar o nó precedente ao choro na garganta, falando comigo mesma coisas do tipo “não seja tão ridícula” ou “é melhor você deixar de frescura antes que seja despejada”.
De fato, minha concentração era tanta que quase não reparei no carro que agora se aproximava muito lentamente.
O motorista estava obviamente escolhendo quem ele levaria para “um passeio romântico” aquela noite, e de repente me peguei desejando intimamente que ele não me escolhesse.
Era ridículo, eu sabia disso, já que eu estava lá justamente para isso. Mas se eu fosse lembrar de todos os momentos como esse que existiram na minha vida, poderia constatar que em todos eu havia agido da mesma forma: minha vontade sempre ia contra o meu objetivo.
Eu não queria fazer aquilo, e por mais que tivesse vestido uma máscara de indiferença e frieza aquela noite, bastou ficar frente a frente com os fatos para que eu fugisse do perigo como uma menina de 10 anos.
Mas eu havia esquecido que Deus parecia estar se vingando de mim por algum motivo, então o veículo obviamente parou exatamente onde eu estava, de forma que eu só pude ver o banco do carona pela janela aberta.
Eu não tinha mais nada a perder com aquilo. Era bastante simples, tudo que eu tinha que fazer era a mesma coisa que eu vinha fazendo há tanto tempo.
A coisa que odiava fazer, era verdade, mas aparentemente era a única coisa pela qual eu era “reconhecida”.
Quais eram as minhas outras opções?
Eu não tinha outras opções. Mesmo que as tivesse procurado, pareciam simplesmente não existir.
Eu simplesmente tinha que fazer aquilo. Tinha que ser aquilo.
Finalmente, depois de um pouco mais de tempo do que uma mulher na minha posição levaria, engoli em seco e respirei fundo, dando um passo a frente e me apoiando na janela do carro.
Para minha surpresa, o homem dentro dele não me encarava com luxúria e não trazia no rosto a expressão de divertimento e abuso de poder que todos os clientes que por ali passavam costumavam trazer.
Ele me olhava com uma expressão que trazia a mistura de muitas coisas, as quais poucas puderam ser identificadas: Raiva. Tristeza. Confusão.
Foram as poucas reações que eu consegui ver naqueles conhecidos olhos dourados.
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De repente, Amor.
Romance"Bruno é um jovem homem de negócios, embora não saiba nem do que se tratam os contratos que assina. Anne é uma prostituta de luxo, que apesar de se sentir extremamente mal por isso, não encontra uma saída para mudar de vida. Como havia de ser, os do...