Capítulo 17

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Humilhante. 
Nada no mundo poderia ser mais humilhante que aquele momento. O momento onde eu finalmente reencontrava o homem pelo qual vinha sonhando há meses, pelo qual estava ridiculamente apaixonada. 
O homem que havia gritado comigo, dizendo coisas horríveis na frente de tantas outras pessoas. 
O homem que transformou minha vida em um inferno tão rápido quanto um piscar de olhos. 
O único homem que se destacava dos outros sem nem precisar fazer força para isso, e que agora me fazia sentir pior do que nunca. 
Era humilhante. 
A vontade irracional que me tomou foi socar qualquer coisa que estivesse a minha frente. Liberar um pouco de toda a raiva e mágoa que estavam estranguladas dentro de mim talvez fosse me fazer bem, mas eu estava muito concentrada naqueles olhos. 
Aqueles olhos me prendiam, tinham um poder muito estranho sobre mim. Talvez esse poder fosse afetado pela saudade que eu sentia dele, mas o fato era que eu estava parada feito uma imbecil, olhando-o sem saber o que dizer, enquanto ele me encarava de volta. 
Por que eu tinha que encontrá-lo nessas condições? Por que justo hoje? Por que justo agora, merda? 
Por que não poderia ter sido há algumas horas atrás?
Há alguns meses atrás… 
Mas eu devia mesmo ter feito algo de muito ruim em outra encarnação, e agora pagava pelos meus pecados. Então, é claro que ele me encontraria no momento em que eu estaria desempenhando meu humilhante papel de prostituta de esquina, praticamente transfigurada com toda aquela maquiagem, correndo o risco de uma iminente crise de pânico e choro. 
Eu estava agora dividida com vários pedaços de sensações. Uma parte minha queria morrer, porque assim tudo acabaria rápido e eu não teria mais que suportar todo aquele mal estar. Outra parte queria puxar o homem que ainda me encarava e socá-lo com toda a força, em todas as partes alcançáveis, por ter me abandonado quando tinha dito que ficaria ao meu lado. Uma terceira parte queria se jogar nos braços dele e se enrolar como um gato em seu peito até que toda a dor, sofrimento e mágoa fossem simplesmente esquecidos. Uma quarta parte não queria nada, além de continuar ali. 
Seria bom se eu dissesse algo. 
Seria bom se ele dissesse algo. 
Mas ambos permanecemos em nossas posições, feito estátuas, e eu tinha certeza que ele acabaria com um torcicolo e eu com uma dor na coluna provavelmente insuportável.
Então lembrei que ele estava ali por um propósito. 
Não era justo com ele, nem comigo, nos forçar àquela situação. 
Ele havia me escolhido por algum motivo desconhecido. Talvez não tenha me reconhecido, já que ultimamente eu vinha parecendo muito mais com um zumbi do que outra coisa, além dos meus muitos quilos perdidos e da maquiagem escura que ele nunca me vira usar. 
Ele estava lá por um motivo, e ele havia me escolhido.
O motivo não importava, seja ele porque me reconheceu ou porque achava que eu era uma puta qualquer. Mas essa era a verdade incontestável, ele estava lá pra escolher sua companhia da noite.
Respirei fundo tentando controlar a voz, o choro e a vontade de vomitar, antes de quebrar o silêncio. Se era isso que ele queria, era isso que ele teria. 
– Cem reais.
A expressão dele, antes indecifrável, passou imediatamente para um choque tão real que eu pude quase sorrir com o efeito que aquilo havia causado nele. 
Seria uma expressão tão engraçada se a situação não fosse tão repugnante.
Vi que ele ia responder. Não sei se ia soltar um palavrão ou falar algo que me agredisse ainda mais, mas quaisquer que tenham sido seus pensamentos, jamais puderam ser ditos. 
Vi uma mulher aparecer de repente na janela mais próxima a ele, no motorista, e eu pude identificá-la como uma das prostitutas que riam de mim enquanto eu tentava respirar há poucos minutos atrás. 
– Oi, bonitão. Parece que a negociação está complicada, né? Tempo é dinheiro, então vou te dar mais opções. Meu programa custa metade do que ela cobrou. 
Claro. A situação não estava ruim o suficiente. Não bastava eu me vestir de garota de programa suburbana, ou usar um perfume barato, ou usar um mini vestido apertado e curto que mostrava mais do meu corpo do que o aceitável. Não bastava eu cobrar para fazer sexo com o homem pelo qual eu era apaixonada e que só me via como uma prostituta mesmo. Não bastava nada disso. Agora eu teria que disputar com outra vadia qualquer pela noite dele. 
Novamente, estava dividida em partes que queriam, cada uma, coisas diferentes. Parte de mim queria entrar correndo naquele Volvo e apertar o acelerador, de modo que nos tirasse o mais rápido possível daquele lugar. Uma outra parte queria esfregar a cara daquela vadia no asfalto. Uma terceira parte queria virar as cosas e ir embora, deixando-o com uma única opção, que não era eu. 
Mas a essa altura, eu já não estava lamentando sobre mais nada que acontecia. Além disso, fazia força para não pensar, então simplesmente esperei.
Ele se virou para sua própria janela, ainda relutante em desviar os olhos de mim e ainda com aquela expressão de choque e horror no rosto, encarando agora a mulher que debruçava, como eu, na janela aberta. 
– Você, cala a boca! 
Ela se levantou rapidamente, parecendo extremamente ofendida com o tom rude de sua voz, e eu bem sabia que ela ia começar a xingá-lo. Mas dessa vez, ele a interrompeu, voltando-se para mim com a mesma expressão de raiva que havia usado com ela. 
– E você, entra no carro! 
Eu queria ter tido um pouco de tempo para pensar no assunto. Será que eu deveria fazer aquilo? Será que eu suportaria as consequências? Será que não acabaria mais machucada do que já estava? 
Mas todas essas perguntas foram feitas com o veículo já em movimento, porque era óbvio que eu havia entrado no carro imediatamente depois de ouvi-lo dizer aquelas palavras, sem nem pestanejar. Era óbvio, porque eu tinha só duas opções: Ficar longe ou ficar perto dele.
E não havia a menor necessidade de pensar nem por um momento naquilo. Embora meu orgulho devesse erguer um mínimo de resistência contra ele, era simplesmente impossível a ideia de negar ficar com ele quando eu tinha essa chance.
Mas agora, dentro daquele carro, sentindo o silêncio incômodo pesar algumas toneladas sobre a minha cabeça, sentindo as ondas de eletricidade que emanavam do corpo do homem ao meu lado se chocarem com brutalidade contra meu próprio corpo, me deixando bastante ciente de sua presença ali, eu me perguntava: O que diabos estava fazendo?
Era uma pergunta que eu não poderia responder. Eu queria saber o que aconteceria a partir de agora, e isso era uma coisa que só ele poderia me dizer. 
E perguntar algo a ele, simplesmente lhe dirigir a palavra, estava fora de questão. Ainda estava muito cedo para fingir que tudo estava normal. 
Ele dirigia rápido. Eu sabia disso porque o único lugar para o qual eu conseguia olhar eram as ruas a nossa frente. 
Ele avançou alguns sinais vermelhos, ultrapassou muitos carros sem poder, fazia curvas fechadas e vez ou outra cantava pneus. O motivo pelo qual eu conseguia processar todas essas informações era que minha cabeça estava tão estranhamente vazia que eu tinha todo aquele tempo livre. 
Deixei que aquela enxurrada de sentimentos me varressem de cima a baixo, e aguentei o impacto da mistura de tudo aquilo dentro de mim. Eu não poderia dizer qual era o sentimento dominante, mas sabia que ansiedade, tristeza, euforia, medo, raiva, alegria e saudade eram só algumas das coisas que eu poderia descrever. 
Os minutos foram passando, e o silêncio que um dia foi confortável ao lado dele tornou-se tão insuportável e incômodo agora que eu estava quase me inclinando para frente e ligando o rádio do carro. 
Não saber o que falar tendo tanto para dizer era uma sensação esmagadora. 
Prestei mais atenção nas ruas à minha volta, e de repente me dei conta de onde estava. Não sabia há quanto tempo ele estava dirigindo - medido pelo silêncio infindável, talvez algumas décadas - mas agora eu tinha noção de que a quilometragem do Volvo estava consideravelmente mais alta, porque eram bastantes ruas a percorrer partindo do lugar em que eu morava para o lugar que ele morava.
Olhei-o do canto do olho, com receio de virar a cabeça em sua direção. Notei que ele mantinha uma postura firme e digna, imponente e controlada, como se tivesse acabado de ter nada além de um pequeno aborrecimento. 
Ele também não desviou os olhos da rua um segundo sequer, mantendo-se rígido mesmo nos poucos sinais em que fora obrigado a parar para não causar acidentes em cruzamentos. 
Invejei-o por sua força e sua segurança, e imediatamente me senti mais patética e ridícula por traçar essa comparação entre nós e notar que agora meu estado estava próximo ao pânico. 
Tudo bem. Ele está calmo, você também deveria estar. 
Não é como se você não soubesse fazer o que está prestes a fazer. 
O carro entrou em um lugar fechado, e eu reparei de repente que estava na garagem do prédio onde ele morava. Paramos bruscamente, então ouvi o barulho suave do motor, já muito silencioso, ser desligado e a chave ser puxada com força da ignição. Algumas frações de segundos depois, ele saía de seu carro, escancarando a porta do motorista sem nenhum cuidado e a batendo com força ao sair. 
Se ele estava furioso era uma pergunta que eu não poderia responder. Eu queria saber o que aconteceria a partir de agora, e isso era uma coisa que só ele poderia me dizer.
E perguntar algo a ele, simplesmente lhe dirigir a palavra, estava fora de questão. Ainda estava muito cedo para fingir que tudo estava normal. 
Com o que, eu não sabia. 
E também não deveria ser da minha conta. 
Não sei o que me levou a fazê-lo, mas imediatamente o segui para fora do carro, batendo a porta com um pouco menos de força e apressando o passo para alcançá-lo enquanto ele caminhava com firmeza pela garagem espaçosa, indo de encontro ao elevador.
Talvez eu devesse me incomodar com o fato de ele não olhar para mim uma vez sequer, ou com o fato de parecer que minha presença ali era tão importante quando a de uma barata morta, mas meu medo latente fazia com que eu recebesse bem essa ausência de atenção. 
Eu sabia que no momento em que ele olhasse para mim outra vez, muitas coisas poderiam acontecer. 
Ele exigiria de mim alguma coisa. 
Eu perderia o pouco do controle que me restava.
Nós acabaríamos nos agredindo ou eu acabaria chorando nos braços dele, como a perfeita mosca morta patética que eu era.
Por hora, ser ignorada era bom. Era mais fácil do que ter que encará-lo e ter que lidar com exigências. 
Além disso, teria que lidar também com toda a tristeza que eu sabia que me tomaria quando nossos olhos se encontrassem outra vez.
Eu sabia que não deveria estar tornando aquilo pessoal. Aquele era só o primeiro programa da minha noite, o primeiro de muitos que eu passaria a ter agora.
Além disso, eu lembrava clara e nitidamente de quão enfático ele tinha sido ao gritar na minha cara que eu era só uma puta. Eu sabia disso, e permitir que aquele encontro me trouxesse de volta tantas sensações era perigoso.
Eu não sabia onde estava me metendo, mas mesmo assim continuei. 
Perto da viagem de carro, o tempo necessário para que o elevador subisse todos aqueles andares e chegasse na cobertura havia sido consideravelmente rápido, mas o silêncio que insistia em pairar no ar entre nós continuava extremamente desagradável. Mesmo assim, me convenci que seria bom me acostumar com ele, já que talvez aquele silêncio pudesse ser a melhor coisa daquela noite. 
Ele saiu do elevador sem hesitar, com as chaves já nas mãos. 
Momentos depois a porta já estava aberta, mostrando um apartamento grande e arejado, num estilo clean e minimalista. 
Os poucos móveis se misturavam em contrastes, uns brancos e outros negros. Tudo era muito limpo e de muito bom gosto. 
A parede oposta da sala era nada mais além de vidro, estendido de cima a baixo, com portas de correr do mesmo material que se abriam para a grande varanda. 
Mesmo em crise, não pude deixar de notar que seu apartamento era aquele tipo de lugar que só se vê em revistas.
Aquela seria a página que eu marcaria como? Apartamento dos sonhos?
Voltei à realidade quando o senti esbarrar em mim, quando terminou de trancar outra vez a porta e rumou para um corredor estreito.
Segui-o sem questionar, entrando na porta que ele havia também entrado, e pude notar que agora estávamos no quarto dele.
Assim como na sala, a parede lateral trazia por toda sua extensão placas grossas de vidro. Notei que uma delas estava pouco aberta, constatando que eram espelhadas. Tão perfeitamente espelhadas que eu duvidava poder ser visto algo dentro daquele quarto por qualquer um que estivesse do lado de fora. 
O chão trazia um carpete escuro, que combinava com o edredom negro que forrava a cama. As paredes eram extremamente brancas e o armário que envolvia a cabeceira da cama, marfim. A forma como as cores contrastavam em, pelo visto, todos os lugares da casa, era de uma elegância invejável, e eu tinha certeza que estaria admirando muito mais aquele ambiente caso estivesse em condições de fazê-lo. 
Mas a verdade era que, naquele momento, eu mal tinha condições de me manter em pé. 
Encarei suas costas, enquanto ele olhava pela parede de vidro a cidade lá fora. Eu podia ouvir sua respiração mais pesada do que o normal, e constatei que ele também não devia estar muito bem. 
Ótimo. Era bom saber que eu não era a única pessoa angustiada naquele lugar.
Me perguntei o que deveria fazer. 
Não que eu tivesse esquecido de como agir em situações assim, mas aquele caso era uma exceção, porque ele não era um cliente normal. Ele era ele, e eu simplesmente não sabia como proceder. Se estivesse em um programa com um homem qualquer, eu sabia que já teria que ter tomado uma iniciativa de aproximação e sedução, porque grande parte dos clientes pagava também para sentir a sensação de não ter que correr atrás. Era óbvio que quem tinha que começar qualquer coisa seria eu, mas como? 
Não estava tudo bem. 
Eu não conseguiria agir naturalmente, porque minha natureza era péssima quando se tratava de atuação. Mas parecia que tudo que eu tinha que fazer agora era muito mais difícil do que o normal, primeiro porque nós estávamos frente a frente depois de tanto tempo, depois de tantas coisas não ditas, o que naturalmente nos prendia em uma gaiola de tensão e nervosismo. 
Além disso, eu não tinha muita certeza do que ele queria.
Era difícil, mas eu tinha que fazer isso. Eu tinha que desempenhar meu papel, porque, em primeiro lugar, foi por isso que ele me escolheu. Não adiantava ficar lembrando do passado. Não adiantava tentar vê-lo como mais do que um cliente. Não adiantava tornar aquilo pessoal, porque só aumentaria meu sofrimento depois que tudo passasse.
Mas era impossível não sentir aquilo. 
Eu poderia fingir para ele, mas não para mim. Para ele seria um programa, para mim seria um pouco mais que isso. E não adiantava tentar ver as coisas com objetividade, porque nada ali era objetivo. Nada ali era fácil. Não para mim. 
Foi só quando ele se virou, evitando propositalmente meu olhar, que eu percebi que havia dado alguns passos em sua direção. Seu movimento me fez parar imediatamente, então como não sabia o que fazer, esperei.
Sua expressão era dura e fria. Era a mesma expressão que eu lembrava ter visto da última vez, há meses atrás. Uma expressão carregada de raiva, rancor e, quase imperceptivelmente, um pouco de confusão. Mas eu tinha experiência com aquela expressão, então sabia o que esperar.
Sabia que nada de bom poderia vir dali. 
Ele respirou fundo, enquanto visivelmente tentava não explodir, e enfim quebrou o silêncio. 
– Tome um banho. Tire essa roupa vulgar e esse perfume de puta barata. Lave o rosto para que eu não sinta nojo de falar com você. 
Certo. Era mesmo um pouco daquilo que eu esperava, no final das contas. 
Mas é quando você ouve todas as palavras que a dor verdadeira te atinge, então mesmo esperando por aquilo, suas palavras me atingiram como um chicote outra vez. 
Exatamente como na última vez. 
Eu poderia mandá-lo ir a merda e sair dali imediatamente. Poderia me negar a receber ordens dele, ou então ignorá-lo e exigir dele uma explicação por todo esse tempo em que esteve ausente. Mas eu estava tão machucada, dominada por uma exaustão mental tão grande, tão intensa, que simplesmente aceitei. 
Meu orgulho agora me deixava para sempre, e em seu lugar uma aceitação patética surgia com tanta intensidade que eu não tinha forças para nada. Não tinha forças para discutir, ou para lutar pelo pouco de dignidade que ainda existia em mim.
Ele queria me ver como eu era antes, mas isso não seria possível. 
A Anne de antes havia morrido justamente aquela tarde, e morria mais a cada segundo que passava, a cada palavra que saía da boca dele. O que me restava então? 
Me movi em direção à porta a minha esquerda, usando o resto da minha força de vontade para me manter em pé. Ao entrar, tranquei a porta e automaticamente tirei a roupa e os sapatos que usava. Segundos depois, estava embaixo de uma ducha de água morna, que me molhava enquanto minha cabeça finalmente optava por parar de pensar. Agora que a euforia em reencontrá-lo havia ido embora, tudo que restou foi o vazio ao constatar que o Bruno de agora era um homem que fazia questão de esquecer que um dia me conheceu e que parecia se importar comigo. 
O choro veio rápido demais para que eu pudesse contê-lo, então as lágrimas se misturaram com a água que escorria pelo meu rosto. Deixei que elas saíssem, como se fossem um pouco da tristeza que eu sentia indo embora de dentro de mim. Fechei os olhos e senti a força da água bater na minha pele, como se pudesse me deixar mais forte e mais viva. Alcancei o sabonete e esfreguei com força todas as partes do meu corpo. Sentia uma dor quase física no peito, e lutei contra o choro para que ele não atingisse níveis maiores e me fizesse soluçar. 
Eu não deveria ter aceitado o programa. Onde estava com a cabeça? Por que eu achava que poderia sair bem dessa situação? Por que achava que minha vida ia ficar um pouco melhor do que toda aquela merda que eu estava vivendo? 
Quanta ingenuidade.
Me sequei com a toalha branca ao lado do box e, sem pensar se poderia fazê-lo ou se seria adequado, alcancei o casaco branco pendurado atrás da porta e o vesti.
A peça de roupa ficava enorme em mim, cobrindo todas as partes necessárias. O moletom tinha o cheiro dele, e senti uma raiva profunda de mim mesma por me permitir gostar daquele perfume. 
Me olhei no espelho e constatei meu atual estado. Não era bom. 
Havia manchas da maquiagem escura borrada remanescente do banho que agora desciam pelas maçãs do meu rosto, me dando uma aparência gótica-suicida. 
Meu nariz e meus olhos estavam incrivelmente vermelhos e marcados pela recente crise de choro, e meus cabelos estavam embolados.
Limpei a maquiagem restante espalhada de forma caótica pelo meu rosto e penteei o cabelo com os dedos. 
Peguei as roupas que eu usava e pendurei onde há pouco estava o casaco de moletom agora em mim. Não sabia se o perfume ainda estava entranhado na minha pele como antes, mas não me importei. 
Saí do banheiro sem emoção alguma, e o vi agora apoiando uma das mãos no vidro, novamente de costas para mim. 
Sua postura parecia tensa, e pela carga tão grande de energia que emanava dele, eu poderia até dizer que ele estava odiando aquela situação tanto quanto eu. 
Mas ninguém poderia estar pior do que eu naquele momento. Nem dentro daquele quarto, nem fora dele.
Me mantive de pé, encarando sem vida suas costas, enquanto esperava que ele me dissesse o que queria de mim. Se antes o fato de ser ignorada não me incomodava, agora eu queria atenção. Só queria fazer o que tinha que fazer logo e ir embora dali o mais rápido possível.
– Senta. 
Fui surpreendida por sua voz rouca, rasgando o silêncio do quarto bruscamente, mas me recuperei do susto rapidamente e fui sentar na beirada da cama alta.
Ele se virou para me encarar, e embora sua postura continuasse controlada e rígida, houve um vacilo bastante óbvio em sua expressão indiferente quando os olhos dele encontraram os meus. Sentindo que seu muro de resistência poderia estar começando a ruir, ele se apressou em falar. 
– Por que saiu da casa de Rayana? 
– Porque não podia mais continuar lá. - Respondi imediatamente, me surpreendendo com a calma e a falta de vida em minha voz. 
– Por que não? 
– Por que está tão curioso? 
– Quero saber o que de tão grave assim aconteceu para te fazer sair de lá e preferir fazer programa com qualquer um em qualquer esquina. 
– Preferir? Você acha que eu prefiro? Acha que eu estaria dessa forma se tivesse opção? 
Eu deveria estar gritando com ele, pelas suas conjecturas absurdas e estúpidas, e porque ele não sabia de nada. E porque ele não tinha o direito de querer saber nada sobre a minha vida. Não depois de me abandonar. 
No entanto, minha voz continuava calma e fraca, como se eu estivesse tendo uma conversa agradável sobre as estações do ano
– Então por que saiu? Por que estava naquela esquina imunda, daquele jeito? Por que se prestou a esse papel? 
– Porque eu sou uma puta.
Pela segunda vez naquela noite, vi minhas palavras atingirem-no em cheio, e pela segunda vez o choque tomou conta de sua expressão. Mas dessa vez, além de choque, havia também um inconfundível traço de culpa em seus olhos, e eu sabia o motivo. Meu objetivo não era atingi-lo, mas foi impossível não lembrar que aquelas mesmas palavras foram as últimas coisas que eu ouvi dele antes que me abandonasse. 
Era bom saber que eu também conseguia despertar alguma reação nele. Assim não me sentia em desvantagem pelo fato de que quase tudo que ele falava me atingia com uma força quase insuportável, fazendo com que eu mal conseguisse me manter de pé a cada pancada. Era bom saber que ele não estava tão bem, tão indiferente e tão controlado como parecia. 
– Você não era assim… 
A postura dele estava mudando aos poucos. Agora, ele não parecia tão seguro, mas sim alguém que quer convencer, principalmente a si mesmo, que tudo está sob controle. Os olhos dele eram menos frios e pelo modo de não saber onde colocar as mãos, eu poderia dizer que ele estava nervoso. 
– Eu mudei. 
– Estou vendo. 
– Não ouse me julgar. - Falei, ainda muito calma, e senti uma lágrima descer pelo rosto antes que eu pudesse evitá-la. Desviei o olhar dele mecanicamente, olhando agora para o chão. 
– Não estou te julgando… Só não quero te ver desse jeito… 
– Não me venha com essa palhaçada. - Minha calma agora estava começando a assustar a mim mesma - Você não dá a mínima pra mim, ou pro que eu faço. 
– Você não sabe de nada! 
– Não, você não sabe de nada. Nada do que eu tive que passar por sua causa. Você não tem o direito de se preocupar comigo, de forma alguma, depois do que fez. 
– Não importa se eu tenho ou não o direito, eu me preocupo! 
– É mentira. 
Ouvi sua respiração inconstante, como se ele estivesse perdendo o controle que fingia ter durante todo esse tempo e fosse explodir. E eu estava torcendo para que isso acontecesse, porque só assim tudo o que não foi dito seria colocado para fora por ambas as partes naquela discussão. 
– Não é ment… 
– É mentira. Sabe há quanto tempo você desapareceu? Sabe há quanto tempo eu estou por aí, sem ninguém nem saber que eu existo? Como você ousa dizer que se preocupa comigo? 
Eu não vi sua expressão, porque não estava olhando para ele. Minhas lágrimas agora caíam livremente, escorrendo pelo queixo e caindo no casaco dele, e eu não queria encará-lo para que ele visse nos meus olhos toda a fragilidade que eu tentava esconder. 
– Você não sabe das coisas! Não sabe pelo que eu também passei! 
Sua voz já tinha atingido um tom de desespero inconfundível, e me deliciei em fazê-lo perder o controle enquanto minha calma atingia um nível assustador. Mas não acreditava que ele estava mesmo comparando nossas situações.
Sorri, mesmo sem a menor vontade, ainda encarando o chão e sentindo toda a vida que ainda existia e mim se esvaindo com o que eu estava prestes a fazer. 
No final das contas, a única coisa digna que eu faria aquela noite era contar a ele a verdade. Meu orgulho seria praticamente assassinado, mas se ainda havia algo nobre em mim, em tudo que eu sentia, então eu diria a ele. Mesmo sabendo que nada mudaria, que nada melhoraria. 
Mesmo sabendo que provavelmente eu me sentiria ainda menor. Mesmo sabendo que ele poderia reagir de uma forma que me humilhasse ainda mais. 
– Você quer saber o que aconteceu comigo? Aconteceu você. Desde que você apareceu na merda da minha vida eu vinha me sentindo melhor, um pouco mais feliz. Você me fez acreditar que era um cara legal, que se importava um pouco comigo. Você me fez querer a sua companhia cada dia mais, e me sentir vazia quando eu não estava com você. Você foi tão adorável e atencioso, mesmo com suas mudanças bruscas de personalidade, que eu não tive como não me apaixonar completamente por você. E eu sabia que não tinha a menor chance de fazer isso dar certo, porque sabia qual era o meu lugar e qual era o seu. Mas então você resolveu frisar isso daquela forma, me humilhando na frente de todo mundo, deixando claro que eu nunca seria nada além do que eu era. Além do que eu sou. E então você sumiu, simplesmente desapareceu, e isso doeu muito, porque além de eu nunca querer ter tido controle algum sobre você, eu acreditei em você quando disse que estaria por perto. Mas você mentiu. Então eu tive que continuar com a minha vida, mas eu simplesmente não conseguia parar de pensar em você. Por isso não consegui mais fazer nada com ninguém desde que você foi embora. A simples ideia de ter um programa com um homem que não era você me fazia muito mal. Pedi pra Rayana me permitir ficar na casa dela mesmo sem trabalhar. Tive que pagar meus próprios programas, mas era óbvio que eu não poderia ficar muito mais tempo lá. Aluguei um apartamento e tentei dar um jeito na minha vida. Tentei arrumar qualquer emprego que fosse, mas parece que eu não sirvo pra nada além do que você sabe que eu faço. Não consegui arranjar nada que pagasse meu aluguel, então antes que acabasse não tendo onde morar, resolvi fazer a única coisa que me dava dinheiro. Eu sei que não é uma profissão muito agradável, mas sinceramente, ultimamente não tenho ligado muito pra isso. Hoje foi minha primeira tentativa, mas é claro que você tinha que ser o primeiro a aparecer pra me ver nesse estado. E durante todo esse tempo, tive que lidar com o fato de estar completamente sozinha, e com a sua maldita lembrança que insistia em me atormentar a cada merda de dia. E sabe o que é o mais triste? Que mesmo agora eu não consigo deixar de gostar de você. E mesmo que eu me arrependa depois, mesmo que minha vida piore consideravelmente depois dessa noite, ainda assim está sendo melhor estar aqui te contando isso do que se eu simplesmente tivesse me negado a vir com você. E isso me torna lamentável. A verdade é que você me fez ver o quão patética e fraca eu era, e eu posso até me odiar por gostar de você, por ainda estar apaixonada por você do mesmo jeito, senão mais, mas não há nada que eu possa fazer. Porque se eu não consegui te esquecer em tantos meses na sua ausência, não vai ser agora que vou ter algum sucesso. Então, você passou por maus momentos durante esse tempo? Não sei o que aconteceu, mas posso apostar que você não esteve pior que eu. Posso apostar que a minha vida está muito mais difícil que a sua, porque você nunca vai saber como é se sentir da forma que eu me sinto agora. Nunca vai se sentir tão ridículo, tão digno de pena. Mas se você quiser fazer algo por mim, termine logo com isso. Você me trouxe aqui por um motivo, então vamos logo ao assunto, pra que eu possa ir embora de uma vez. E por favor, por favor, me deixe em paz depois disso. Eu tenho que arrancar você da minha vida, nem que seja à força, antes que enlouqueça de uma forma irreversível.

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