Capítulo 14

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◇◇◇◇

Resolvi postar mais um, e eu preciso muito que comentem, quero saber o que estão achando.

◇◇◇◇

Bruno POV's

- Senhor?
- Sim.
- Está tudo bem?
- Está tudo ótimo, Eduarda. Não poderia estar melhor.
Notei pela minha visão periférica que ela me encarava com dúvida, mas não fiz menção em me virar e encará-la para tentar mostrar que eu estava falando a verdade.
Primeiro, porque minha cabeça doía demais para que eu tentasse fazer alguma coisa além de falar e respirar.
Segundo, porque eu simplesmente não me importava mais com o fato de Duda acreditar ou não em mim.
Terceiro, porque eu não estava falando a verdade.
- O senhor parece cansado.
Eu também teria pedido que ela me chamasse pelo nome. Quanto mais o tempo passava, mais me irritava a insistência de Duda em ser formal comigo.
Mas até isso exigia de mim uma força de vontade que eu não tinha.
- Eu estou cansado. Cansado e com enxaqueca. Mais alguém quer falar comigo hoje?
- Não senhor.
- Ótimo. Então pode trancar a porta assim que sair.
Duda permaneceu em silêncio por algum tempo. Não abri os olhos para verificar o porquê.
- Tudo bem. Aqui estão as anotações das reuniões de hoje. O senhor está indo bem com as suas decisões.
- Obrigado.
- E aqui estão os três contratos.
Senti os papéis sendo jogados à minha frente, em cima da minha mesa. Ainda assim, continuei imóvel, fazendo movimentos lentos e circulares com os dedos nas têmporas para tentar aliviar a pressão que eu sentia na cabeça.
- Bruno.
Abri os olhos, encarando-a.
- Fale comigo! Eu estou bem aqui!
Continuei fitando-a, enquanto analisava silenciosamente minhas opções.
Eu queria conversar com ela.
No final das contas, ela era minha melhor amiga. Minha única amiga.
Eu queria contar a ela tudo que estava se passando comigo, todas as minhas dúvidas e meu pânico.
Queria pedir conselhos, porque ela sempre tinha algo de inteligente para dizer, e se preciso fosse, escutar calado uma bronca daquelas que só Duda sabia dar.
Eu queria me abrir com ela. Queria dividir o peso que eu carregava nas costas com outra pessoa.
Queria uma luz no fim do túnel.
Qualquer coisa.
- Vou lembrar disso, Duda.
Ela continuou me encarando com preocupação, e eu tentei sustentar seu olhar, embora minha dor de cabeça estivesse praticamente me cegando.
Quando finalmente tirou suas mãos que serviam de apoio da mesa, suspirou e, dando meia volta, saiu da sala.
Fechei os olhos outra vez e abaixei a cabeça nos braços, agora cruzados na mesa em cima dos tais papéis das reuniões as quais eu havia comparecido hoje. Eu poderia dizer que comparecer a reuniões seria uma tarefa impossível, dadas minhas atuais condições, mas era realmente incrível como eu conseguia.
Nos últimos dias, treinei meu cérebro a aceitar problemas e assuntos relacionados aos negócios, então eu conseguia me concentrar nisso quando me empenhava em fazê-lo, quase o tempo todo.
Quase.
Porque havia momentos, até quando eu me forçava a prestar atenção, que a dispersão vinha e eu me pegava pensando em coisas aleatórias.
Na verdade, eu até desejava que fossem pensamentos aleatórios em geral, e não pensamentos aleatórios relacionadas a uma pessoa.
A ela. Sempre ela.
Ela estava transformando minha vida em um verdadeiro inferno. Estava colocando dúvidas absurdas e pensamentos impertinentes na minha cabeça. Estava conquistando um território de importância ao redor da minha vida que não tinha o menor direito de conquistar.
Por causa dela, minhas noites andavam mal dormidas.
E quando conseguia dormir, meus sonhos teimavam em trazê-la de volta para me atormentar.
Por causa dela, Duda me rondava e me perguntava sempre o que havia de errado comigo.
Por causa dela, havia algo de errado comigo.
Algo de muito errado.
Eu a conhecia havia menos de um mês, e já não conseguia parar de pensar nela. Qualquer detalhe, qualquer inutilidade que resolvesse atravessar o meu caminho ao longo do dia, me fazia lembrar dela.
Eu me pegava analisando praticamente todas as mulheres que via e traçando automaticamente uma comparação entre elas e ela.
Ela.
Porque ela estava mexendo demais com a minha cabeça, e isso não era normal.
Ela não devia ter esse grau de importância na minha vida. Não devia estar em uma posição tão privilegiada na minha lista pessoal de prioridades.
Eu não devia pensar tanto nela, e quanto mais me conscientizava disso, menos eu conseguia tirá-la de meus pensamentos.
Quanto mais eu sabia que devia esquecê-la, mais difícil era não lembrar dela.
Mais difícil era não querê-la por perto.
Eu a queria por perto.
Todos os dias. Toda hora. A qualquer momento que fosse.
E isso também estava me matando.
Primeiro, porque eu não devia querê-la.
Segundo, porque eu não podia tê-la por perto quando quisesse.
Ela não era minha. Ela não era de ninguém.
Ela era uma garota de programa, e isso era tudo o que realmente importava.
E era o que doía.
Doía, porque ela era especial.
Ela era importante. Eu a tornei importante sem nem me dar conta, e agora pagava pelo preço.
O preço de ser ingênuo, de ser dependente.
O preço de ser covarde demais para assumir tudo isso.
Assumir o que eu me negava a acreditar, mas já sabia.
O que eu negaria até estar perto da morte.
Até não aguentar mais.
- Desculpe!
Levantei a cabeça lentamente, tentando lidar com a dor ainda presente que fazia minha testa pesar algumas toneladas.
- Desculpe, senhor! Eu pensei que não havia mais ninguém no prédio.
Uma mulher de meia idade carregando um aspirador de pó um pouco maior do que ela tentava desenrolar seus pés dos fios do aparelho e sair da sala, me deixando sozinho outra vez.
- Que horas são?
- Passam das 23h, senhor. Me desculpe, eu não sabia...
- Tudo bem. - Comecei, um pouco tonto. - Eu já tinha que ter ido há muito tempo.
A mulher não pareceu se tranquilizar, ainda me encarando com culpa.
- Vou deixá-la trabalhar. Só pelo amor de Deus não ligue essa coisa enquanto eu estiver aqui.
Dizendo isso, juntei sem cuidado todos os papéis jogados em cima de minha mesa e os guardei em uma das gavetas, trancando-a em seguida.
Levantei-me, testando meu equilíbrio devagar, então me apressei a deixar a sala livre para a mulher e seu aspirador barulhento.
Fui irresponsável o suficiente para dirigir até em casa nas condições em que me encontrava, e agradeci ao meu anjo da guarda por me proteger durante o percurso.
Ao chegar, tomei um banho quente e demorado, traçando o plano que eu vinha arquitetando havia algum tempo.
O plano era simples, mas exigiria de mim uma força que eu não tinha.
Ainda assim, levaria minhas decisões até o limite. O limite de mim mesmo.
Eu manteria distância dela. Não a veria por algum tempo, até que minha cabeça voltasse um pouco ao normal.
Até que eu voltasse a me sentir seguro para estar com ela outra vez, até que eu parecesse de novo comigo mesmo.
Até que eu voltasse a me conhecer e me entender, eu manteria distância dela.
Porque sempre que ela estava perto demais, eu tendia a esquecer coisas importantes sobre minha própria personalidade, e sobre o certo e o errado.
Então eu não a veria hoje. Não a veria essa semana.
Eu sabia que isso talvez me fizesse um mal maior do que toda a confusão da qual eu fugia, mas eu tinha que tentar voltar a ser o que eu era. Porque perto dela eu era outra pessoa.
Eu me afastaria.
Uma distância que poderia ser considerada como segura.
Eu estaria seguro. Eu estaria bem.
Mas, primeiro, eu precisava me convencer disso.
Minhas últimas noites não poderiam ser classificadas como boas. Eu consegui dormir algo como duas, no máximo três horas por noite. Mesmo que o cansaço estivesse sempre presente, minha cabeça simplesmente não conseguia relaxar, e então eu passava o resto das horas pensando.
Pensando em tudo o que não deveria pensar.
Por isso, não era de se espantar que hoje, segunda-feira, quase todos os funcionários me olhassem como se eu fosse um zumbi ambulante enquanto passava pelas baias, até chegar à minha sala.
Entrei e encontrei Duda com uma cara que devia ser usada quando um de seus filhos fazia algo de ruim.
Ignorando seu olhar fuzilante, fui me sentar à mesa, já arrumando alguns papéis.
- Quantas reuniões tenho hoje?
- Nenhuma.
Olhei-a interrogativo.
- Como nenhuma?
- Você não vai trabalhar nesse estado.
Eu estava muito cansado para discutir, principalmente àquela hora da manhã. Por isso, tentei manter minha voz tranquila e cordial.
- Você não manda em mim.
- Pois é. Não mando. Talvez seja disso que você precise, alguém que mande em você.
- Certo. Já acabou? Pode me dar os horários das reuniões agora?
- Não vou te dar horário nenhum. Eu já cancelei todas as reuniões. Imaginei que você estaria desse jeito hoje quando o vi na sexta.
- E com ordem de quem você cancelou as reuniões?
- Com ordem de ninguém, senhor. E se fiz mal, me demita.
Encarei-a com raiva, algo que eu pensei não poder sentir nas condições em que me encontrava.
Ela estava sendo extremamente arrogante para uma secretária, mas o problema era que Duda sabia que podia fazer aquilo, porque no final das contas eu não a demitiria.
Além disso, minha raiva crescente me dominava porque ela havia tirado de mim a única coisa que conseguia me manter ocupado e, portanto, livre de pensamentos indesejáveis.
- E você pode me dizer o que espera que eu faça a porra do dia todo sem ter algo para me ocupar?
- Vá pra casa e durma. Você está horrível.
Ótimo. Era mesmo tudo o que eu precisava.
Podia explicar a ela que minha aparência horrível se dava justamente pelo fato de eu não conseguir dormir, e que se eu conseguisse, ela não precisava ter desmarcado as benditas reuniões.
- Por que vocês mulheres adoram se meter nas nossas vidas?
- Não seja estúpido. Só nos metemos nas vidas de quem gostamos.
- Eu não pedi conselho nenhum! Por que não me deixa em paz?
- Porque se eu te deixar em paz, Bruno, você se perde de vez.
Eu odiava quando ela estava certa, e isso acontecia com bastante frequência.
- Por favor... Por favor, vá pra casa.
- E o que eu vou fazer em casa?
Repeti, tentando manter minha voz baixa.
- Se não consegue dormir, tente achar um pouco de paz de espírito em alguma coisa.
Paz de espírito. Era exatamente disso que eu precisava, mas não sabia como conseguir.
E o pior de tudo era que eu tinha uma ideia do que poderia me trazer um pouco dessa paz, mas por alguma ironia do destino, era exatamente a coisa da qual eu fugia.
- Tudo bem, eu vou. Mas você está proibida de fazer isso outra vez, entendeu? Quero minhas reuniões de volta amanhã, e não estou brincando.
Empreguei um tom mais sério na voz para que ela entendesse que eu realmente precisava voltar ao normal no dia seguinte.
Duda assentiu com um suspiro.
Levantei-me contrariado e me preparei para ir embora.
- Me promete que vai cuidar de você?
Encarei-a por algum tempo, decidindo se realmente poderia prometer isso a ela.
- Eu vou tentar.
Não dei tempo para que ela falasse outra vez, e imediatamente saí da sala.
Eram quase 20h agora, e estava perplexo como aquele dia havia sido tão improdutivo e degradante.
Duda me pagaria por aquilo.
Tentei ocupar meu tempo com tantas coisas quanto me fora possível lembrar, mas nada adiantou. Busquei em meus arquivos culinários a receita mais difícil que consegui encontrar e me preparei para o desafio.
Lembrei que antigamente essa era uma forma de distração ótima, mas devia imaginar que "antigamente" não se encaixava em nada no meu "ultimamente".
Escolhi com cuidado um livro da minha biblioteca não muito grande, prestando atenção para não pegar qualquer coisa relacionada a drama, ou romance, ou qualquer coisa que me fizesse lembrar de coisas que eu queria deixar de lado, mas esqueci que nenhuma leitura conseguia me prender quando eu não estava em paz comigo mesmo.
Arrisquei desenhos engraçados na televisão, tentei arquitetar mudanças na disposição dos móveis no meu quarto, comecei a arrumar alguns armários, mas nada foi o suficiente.
Eu ainda pensava nela.
Eu ainda sentia sua falta, e por algum motivo idiota, quanto mais eu tentava esquecê-la, mas eu lembrava dela.
Dito isso, como eu estava há praticamente uma semana tentando arrancá-la à força da minha cabeça, era óbvio que agora eu estava em um estado tão deplorável de auto-flagelação que sequer conseguia pensar direito.
Usando essa desculpa para mim mesmo - o que não diminuiu minha culpa - me vesti de qualquer jeito e tomei a atitude mais desesperada e imbecil que podia tomar.
Eu iria até Anne outra vez.
Eu insistia para mim mesmo que o que iria fazer não era nada demais.
Eu não pagaria pelo programa dela.
Tudo o que eu queria era vê-la, dizer um oi.
Era ridículo, mas eu tinha certeza que no momento em que a visse e simplesmente trocasse meia dúzia de palavras com ela, eu me sentiria muito melhor.
E era só o que eu queria.
Era muito pouco para me crucificar.
Mas mesmo assim, eu me crucificava. Eu era um fraco, e nunca duvidei disso, mas era revoltante saber que minha fraqueza não me permitia seguir com um plano tão bem pensado.
De qualquer forma, essa era a hora de escolher entre meu orgulho e a dor que atravessava e rasgava meu peito de um lado a outro, a dor que diminuiria se eu a visse.
Eu não conseguia mais lidar com aquela dor.
Quando atravessei a porta da frente da Casa de Rayana, senti meus nervos à flor da pele.
Não era normal aquele nervosismo todo, mas eu não quis pensar sobre isso, então apenas continuei andando um pouco apressado para o lugar mais escuro do ambiente.
Sentei-me na mesa vazia mais ao canto, enquanto olhava em volta para ver se alguém havia reparado em mim.
- Nossa, estávamos preocupadas com você!
Virei-me surpreso e vi Manoella sentada ao meu lado. Quando foi que ela chegou ali?
- Ah, oi.
- Olá. Então, por onde esteve?
- Ocupado.
Minha atenção agora estava voltada para o ambiente, mais precisamente para a busca de uma certa garota que trabalhava naquela casa.
- Nós estranhamos você ter ficado tanto tempo sem vir ver a Ninha.
Olhei para ela sem entender o que ela quis dizer com aquilo.
- Quê?
- Bom, ela parece ser sua favorita, né? Todas nós ficamos surpresas por você ter ficado tanto tempo longe dela. Quer dizer, só quem pareceu não dar muita importância pra isso foi ela.
Encarei-a sem saber o que falar.
A verdade era que até eu mesmo estava surpreso de conseguir ficar tanto tempo longe dela, então não poderia julgá-las por sentir a mesma coisa. Mas agora, estava passando por um pequeno dilema.
Por um lado, fiquei aliviado porque, se Anne não havia dado importância ao meu desaparecimento repentino, isso talvez significasse que ela não tenha ficado chateada comigo.
Por outro lado, por que ela não havia dado importância? Ela não tinha dito que me queria por perto? Será que ela não fazia questão da minha presença?
Será que não sentia tanto a minha falta quanto eu sentia a dela?
- Bom, você parece ainda estar se decidindo quem vai escolher hoje, então vou te deixar em paz. Ah, eu estou livre.
Dizendo isso, piscou para mim e saiu rebolando da forma vulgar que eu bem me lembrava ser dela.
Voltei minha atenção para o ambiente outra vez.
Me sentia seguro estando em um lugar particularmente escuro e escondido, mas era uma questão de tempo até Manoella contar às outras meninas que eu finalmente havia aparecido, e meu esconderijo seria descoberto.
Por isso, me permiti aproveitar ao máximo o tempo que tinha comigo mesmo.
Eu deveria procurá-la? Será que ela estava ali?
Talvez já estivesse acompanhada no andar de cima, e o pensamento fez com que uma dor me atingisse como um soco.
Eu queria vê-la. Queria que ela estivesse sozinha e bem. Queria que nenhum filho da puta a tivesse machucado, e outra vez senti uma dor angustiante ao constatar que, se ela estivesse ferida, eu seria o culpado.
Comecei a procurar em volta com mais urgência, enquanto tentava enxergar entre o numeroso grupo de homens no recinto.
Alguém me ofereceu um whisky, mas como notei que a voz não era da pessoa que eu procurava, neguei a oferta sem dar muita atenção.
Duas meninas tentaram me seduzir para que eu pagasse pelo programa, mas eu nunca estive tão pouco afim de uma transa como naquele momento - o que era estranho, visto que eu estava há um tempo razoável sem sexo - então neguei.
O problema era que toda a minha atenção - toda ela - estava voltada para a missão de encontrar Anne e falar com ela.
O que exatamente eu falaria, ainda não sabia, mas na hora algo me viria à cabeça, nem que fosse um pedido de desculpas.
Nem que fosse uma confissão da saudade angustiante que eu sentia dela.
Então, eu a vi.
Em um canto distante da sala, ela parecia não pertencer àquele lugar, assim como no dia em que nos conhecemos.
Talvez fosse impressão minha, mas algo em sua aparência me dizia que ela estava cansada ou triste.
De qualquer forma, não pude deixar de admirar sua beleza óbvia, e me perguntei outra vez como não havia percebido isso no momento em que fomos apresentados.
Talvez eu só estivesse mesmo muito animado por vê-la, mas mesmo com roupas casuais, completamente diferente de todas as outras mulheres, ela estava mais bonita do que eu me lembrava.
Ignorei a ponta de raiva que percorreu meu corpo ao imaginar o motivo das roupas compridas, que mostravam poucas partes de seu corpo, e continuei encarando-a como se tivesse acabado de achar um tesouro.
Agora que ela estava ali, tão perto, mesmo sem saber da minha presença, um alívio repentino me tomou completamente, e me dei conta de que aquele momento tinha sido, até agora, o melhor momento da minha semana.
Mas seria o suficiente só admirá-la de longe?
Meu corpo começava a responder a essa pergunta, se levantando sem que eu percebesse, mas parou imediatamente quando viu um homem aproximando-se dela e falando, com um sorriso no rosto, algo em seu ouvido.
É verdade.
Ela era uma garota de programa.
A presença dela realmente me fazia esquecer de certos detalhes.
Sentei novamente, com mais ódio do que achava ser possível sentir por um estranho, mas toda essa raiva irracional foi bloqueada por um interesse mórbido na reação de Anne.
Ela não havia reagido como eu pensava.
Eu a conhecia suficientemente bem para esperar ver nela um sorriso falso e uma aceitação contrariada, mas ao invés disso, vi uma garota agora com tanto medo que mal conseguia se mexer.
Por que ela estava daquele jeito?
Por que olhava para os lados com tanto desespero, como se quisesse se proteger em alguém?
E por que aquele homem a segurava pelo braço, impedindo-a de ir embora?
Que merda era aquela?
Levantei-me outra vez, agora mais rápido, mas me mantive no lugar. Alguma coisa dentro de mim, loucura ou instinto, gritava e me fazia recuperar uma lembrança esquecida.
Uma lembrança que eu fiz questão de esquecer.
Uma lembrança que me apavorava, mas que, ao mesmo tempo, despertava em mim um instinto assassino.
Um desejo de vingança esquecido.
- Resolveu aparecer por quê?
Era Júlia. E pelo pouco que pude dar atenção a ela, vi que estava com raiva.
E pelo que parecia, era de mim.
Talvez eu pudesse entender o motivo, mas antes tinha que me certificar de uma coisa.
- Júlia, quem é aquele homem?
Pude ver pela minha visão periférica que ela ainda mantinha uma postura ofensiva para mim, mas tomada pela curiosidade, se virou para a direção que eu apontava.
Me virei para encará-la e vi nela a reação que eu temia.
Eu nunca havia visto Júlia em pânico, mas podia dizer que aquela era exatamente a expressão que encontraria nela.
E eu sabia o motivo daquilo.
Ela conhecia aquele homem.
Aquele filho da puta.
E eu sabia quem ele era.
Mesmo sem nunca tê-lo visto, eu sabia só de ver o desespero de Anne.
Ela não reagiria assim a um cliente qualquer.
- Pedro...
Consegui ouvir a voz fraca de Júlia enquanto ela se movia para a frente, na direção em que nós dois olhávamos, mas ela não seria mais rápida do que eu.
Muitos vultos passavam por mim rapidamente, mas eu não prestava atenção em nenhum deles enquanto andava até o casal que eu observava.
Eu não prestava atenção em ninguém, e se não fosse pelos esbarrões que eu dava em um corpo ou outro, poderia dizer que no momento só se encontravam três pessoas ali:
Anne, eu e ele.
Duas delas sairiam vivas.
O tempo necessário para atravessar a sala foi rápido, e por uma fração de segundos, a dois metros de distância entre nós, pude ver os olhos dela se encontrarem com os meus.
Mas eu já não estava raciocinando.
Com todo o ódio que havia acumulado em minha alma, empurrei-o para longe do pescoço dela, onde ele parecia estar se divertindo, e um segundo depois estávamos os dois no chão, eu por cima dele, socando-lhe cada centímetro do rosto.
- SEU FILHO DA PUTA!
Tudo pareceu passar em câmera lenta, então pude aproveitar cada murro que aquele desgraçado levava.
Ele tentava reagir, e talvez fosse mais forte do que eu, mas naquele momento, nem os músculos de Mike Tyson poderiam parar meu ódio borbulhante e explosivo.
Eu o odiava. Eu queria matá-lo lentamente, e não era força de expressão.
Nunca na vida desejei tanto ver alguém morto, espancado, estraçalhado, por isso não parei um segundo sequer de socá-lo com toda a minha vontade.
Os golpes eram dados com tanta força que, em certo ponto, minhas mãos começaram a doer, mas a dor foi ignorada.
Notei que agora, o rosto embaixo de mim estava banhado em sangue, mas ignorei isso também.
Tudo que importava era a morte daquele desgraçado. A morte pelas minhas mãos.
Pela primeira vez desde que ouvi Júlia pronunciar o nome do sujeito, notei que haviam mais pessoas no local. Muitas mais, porque senti muitos braços me puxando para trás, tentando me afastar do homem agora desacordado no chão, enquanto eu tentava me soltar da gaiola humana em minha volta e continuar minha deliciosa vingança.
- Pára! Pára, rapaz!
- ME LARGA!
- Você vai matá-lo!
- É O QUE EU PRETENDO! ME LARGA!
Eu agora me debatia em mais braços que surgiam, me impedindo de continuar a feri-lo com as mãos.
Então resolvi chutá-lo, também com muita força, mas os homens em volta foram rápidos e me puxaram completamente para longe dele.
- ME SOLTEM, PORRA!
- Não!
Eu estava exausto, puto e inconformado.
O ódio que existia dentro de mim, ao invés de esmaecer apenas tornava-se maior e mais explosivo.
- Bruno, calma! Por favor!
Olhei, ainda aturdido em volta, e a vi ali, parada, um pouco ofegante e corada, sem saber muito para onde ir.
A presença de Anne tinha aquele poder sobrenatural sobre mim até quando ela mesma não sabia o que fazer.
Aquele poder que simplesmente surgiu do nada e, sem que eu deixasse, me tornou extremamente vulnerável.
Eu estava definitivamente exausto.
Exausto de tudo aquilo, de toda aquela confusão de coisas que explodiam dentro de mim, enquanto tentava pôr ordem na minha própria vida.
Estava cansado de fingir que não estava perdido, que não estava desesperado, e que não estava completamente apaixonado por uma garota de programa.
Eu estava cansado, com raiva, com medo de tudo o que viria a seguir, e explodi sem nem ter noção do que estava falando.
O ódio dentro de mim fez com que eu simplesmente cuspisse todo o rancor e covardia, todo o orgulho e toda a porra de culpa que me perseguia durante todo aquele tempo em que eu a conhecia.
Em que conhecia a pessoa que virou minha vida do avesso.
- ME DEIXA EM PAZ! VOCÊ É SÓ UMA PUTA, E EU NÃO PERMITO QUE SEJA MAIS DO QUE ISSO! EU NÃO TE PERMITO TER QUALQUER MERDA DE PODER SOBRE MIM!
Meus gritos foram seguidos de silêncio. Um silêncio mórbido.
Tudo o que eu podia ouvir era a música do ambiente que ainda tocava baixo ao fundo e minha respiração ofegante pelos gritos e pela luta.
Tudo o que eu podia ver era ela, à minha frente, olhando dentro dos meus olhos, enquanto tudo o que eu disse ainda ecoava nas paredes e entrava, palavra por palavra, na cabeça dela. Aquilo a feriria, eu sabia disso. Sabia também que se desse tempo a mim mesmo, me arrependeria mortalmente de cada palavra dita, e simplesmente imploraria por suas desculpas. Mas já estava feito, tudo já havia sido dito.
Então, sem pensar em mais nada, quebrei a ligação entre nossos olhares pela última vez, me dirigindo para a saída e não olhando outra vez para ela.
Eu fui embora. Havia terminado tudo o que tinha que ser terminado. Eu não voltaria a vê-la. Desapareceria, me internaria em um hospício se preciso fosse. Mas eu manteria distância dela. Eu precisava manter distância dela.
Para o meu próprio bem.

De repente, Amor.Onde histórias criam vida. Descubra agora