Capítulo 49

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Valentina sorriu pela primeira vez no exato dia em que completou dois meses, e, é claro, por causa de Bruno. Ele estava determinado a fazê-la entender seus argumentos sobre música, o que aparentemente a divertia. 
– Então você concorda? - Ele falou animadamente, e ela sorriu outra vez. Estávamos na casa de Hérica e Robert, e os dois pareciam completamente admirados com a cena também. Ela passava a maior parte do tempo encarando Bruno com atenção absoluta, reparando nas caretas que ele fazia e em como mexia as mãos. Com mais algumas semanas, ela não só sorria como tentava imitar suas expressões faciais. Bruno se divertia muito com aquilo, e a desafiava a conseguir fazer as caras mais bobas que conseguia. A cena era adorável, mas frequentemente eu tinha que lembrá-lo de que ele acordava cedo no dia seguinte e que, por isso, o melhor a fazer depois de passar mais de três horas “conversando” com Valentina era dormir. 
Aos três meses ela já sorria tanto que eu não entendia como os músculos do seu rosto não ficavam cansados. Ela fazia isso para qualquer um que resolvesse falar com ela, fosse Bruno, eu, os avós, o pediatra ou alguém na rua. Era como se ela simplesmente adorasse todo mundo. Além de sorrir para as pessoas, Valentina gostava de conversar com elas. Bastava alguém falar algo com ela que se iniciava um debate. Se a pessoa continuasse com seus argumentos, ela se dispunha a balbuciar e fazer sons em resposta até que estivesse cansada. Às vezes, a palavra não precisava nem ser direcionada a ela. 
– Nossa filha é comunicativa, né? - Bruno riu abertamente, observando Valentina responder ao repórter no canal de notícias da tv a cabo. Foi nessa idade que os olhos dela começaram a mudar. Até onde podíamos ver, suas íris pareciam tender para o marrom, o que fez com que Bruno já começasse a cantar vitória, e eu, a me decepcionar um pouco. 
– Mas ela é toda a sua cara. - Argumentei. 
– Mas os olhos são seus. - Ele rebateu - E vão ser os olhos mais lindos do mundo. Mas conforme os dias passavam, algo começou a mudar. Simplesmente não parecia ser como deveria. 
– Amor. - Ele me chamou quando saí do banho - Vem cá. 
Estávamos em um sábado. Eram 9h da manhã, e o dia estava excepcionalmente claro e morno. Caminhei até a cama e encarei Valentina, que se divertia sozinha no colchão com Bruno sentado perto dela. Ela parecia estar conversando e rindo consigo mesma. 
– Que foi?
– Olha pra ela. 
Encarei-a e ela me encarou de volta, já sorrindo e emitindo sons de alegria. 
– Hum… - Soltei.
– Era pra ser assim? 
– Não sei… 
– Será que é a claridade? 
– Acho que não.
Ficamos em silêncio por algum tempo enquanto ela nos ignorava, brincando com os próprios dedos como se eles fossem mágicos. Alcancei um brinquedo colorido que ficava pendurado no seu berço e trouxe até ela. Valentina parou de encarar as próprias mãos e olhou para o objeto à sua frente. Seus olhos brilharam. Movimentei-o de um lado ao outro, como se estivesse hipnotizando-a.
Ela seguiu com os olhos o movimento que eu fazia, parecendo muito compenetrada. Levei uma mão à frente do seu olhinho direito e repeti o movimento. Ela continuou seguindo-o com o único olho destampado. Repeti o procedimento com o olho esquerdo, e mais uma vez Valentina seguiu o objeto com a máxima atenção. 
– Não parece ter problema nenhum… - Concluí.
– Mas… Isso não é normal. 
E não era mesmo. Naquele mesmo dia, marcamos uma visita ao pediatra de última hora. Bruno estava nervoso e, sinceramente, eu também. Quando chegamos lá, explicamos a situação ao médico. Levamos conosco alguns exames feitos logo após o nascimento dela, comprovando que, aparentemente, tudo estava normal. Ele mesmo examinou-a e fez algumas outras checagens para dizer, no final das contas, o porquê daquilo. 
– Vocês já ouviram falar em heterocromia? - Ele perguntou, se sentando à nossa frente. 
– Já. - Bruno falou - Acontece em animais… 
– Não só em animais. - O médico disse calmamente - Ocorre também em seres humanos. É muito mais raro, mas ocorre. 
Eu continuava encarando-os como uma tapada, tentando entender do que eles falavam. O doutor, entendendo meu desespero silencioso, se apressou em me explicar: 
– Heterocromia é uma anomalia genética que faz com que uma pessoa tenha olhos de cores diferentes. Sua filha tem isso. 
Encarei Valentina no meu colo outra vez. Seu olho esquerdo tinha uma tonalidade marrom, da mesma cor dos meus próprios olhos, e o direito era mais claro. Parecia um pouco com a cor dos de Bruno. 
– Ela tem uma anomalia genética? - Perguntei um pouco angustiada com como aquilo soava.
– É uma anomalia, mas não precisa se preocupar. Eu fiz os exames, e sua filha não tem nenhuma síndrome, o que, aí sim, poderia trazer problemas. Ela enxerga bem dos dois olhos. É provável que esteja envolvido algum fator genético. Talvez alguém na família tenha tido isso. 
Eu não sabia responder aquilo. Minha mãe tinha olhos castanhos e meu pai olhos azuis, mas meu conhecimento sobre meus ancestrais paravam aí. 
– Eu não sei. - Bruno falou quando o encarei - Realmente não sei.
– Procurem saber. - O médico completou - Mas não se preocupem. 
Respirei fundo. Eu não gostava de ouvir conselhos como “não se preocupe” quando estava visivelmente nervosa. 
– O que isso quer dizer, na prática? - Perguntei. 
– Na prática, sua filha terá olhos de cores diferentes. E só. 
– Só? - Bruno se certificou. 
– Só. Ela será uma criança tão saudável quanto as outras. Mas seus olhos serão só um pouco mais interessantes. - Ele pontuou com um sorriso tranquilo. 
Valentina soltou um gritinho agudo e começou a brincar com a própria língua. 
– Então está tudo bem! - Bruno soltou aliviado, se levantando e puxando-a do meu colo para agarrá-la. 
– Ok, doutor, obrigada… Mas nós vamos acompanhar isso, não é? Pra ver se continua tudo bem conforme ela cresce…
– Claro. Vamos cuidar dessa boneca.
A próxima coisa que vi foi Valentina mexendo os braços tão violentamente que acabou puxando sem querer a touca de frio que vestia na cabeça. O pano cobriu seus olhinhos e a deixou momentaneamente confusa. O escuro a assustou e ela começou a chorar, e foi só quando Bruno resolveu socorrer a pobre criança e ajeitar sua touquinha que ela voltou a sorrir ao ver o rosto do pai. 
Mais tarde, ficamos sabendo por Robert que sua bisavó havia também apresentado a tal da heterocromia, o que confirmou as suspeitas do médico quanto aos fatores genéticos. Felizmente, a “anomalia” que minha filha apresentava não a prejudicava de nenhuma forma. Era, na verdade, até interessante notar como, com o passar dos dias, um dos olhos de Valentina ia se firmando no tom castanho enquanto o outro clareava mais. 
As pessoas que não estavam acostumadas sempre se viam meio hipnotizadas pela minha filha. Ela despertava uma imediata simpatia nos amigos de trabalho de Bruno que eventualmente nos visitavam, ou nas pessoas que passavam por nós na rua. Não havia como negar que, apesar de causar uma certa surpresa à primeira vista, essa peculiaridade dela a tornava muito mais bonita.
Isso porque ela já era linda por si só, e essa minha opinião não tinha nada a ver com o fato de eu ser mãe dela (o que, consequentemente, me fazia achá-la linda de qualquer jeito). 
Minha filha era um daqueles bebês de capa de revista, aquele tipo de criança que parecia um anjo e que fazia com que os outros sorrissem inconscientemente. Mas não havia como ser diferente disso: Sendo praticamente uma xerox de Bruno, era humanamente impossível ela não ser linda de doer. 
– Nem os olhos são meus. Um olho é. - Constatei sem conseguir deixar de rir. 
– Pelo menos alguma coisa ela puxou de você.
– É. 5% da minha filha é meu. 
– É o 5% mais bonito dela. 
Nossas divagações foram interrompidas por um choro estrondoso e repentino. 
– Mas você acabou de mamar! - Falei surpresa, pegando-a no colo. 
– “Mas eu estou com fome de novo”. - Bruno disse em uma voz fina e ridícula, falando por ela. 
– Certo. Se não couber mais leite dentro de você, vomite no papai dessa vez, ok? 
Embora o tempo passasse e eu estivesse até ciente disso, não foi o frio ou qualquer decoração brilhante nas ruas que me avisaram em que época do ano estávamos. A notícia do Natal chegou juntamente com hóspedes que, sem o menor aviso, resolveram fazer uma visitinha. 
– Ninha! 
Quando Hérica me ligou perguntando se “eles” podiam me fazer uma visita, eu havia imaginado que Robert tinha saído do trabalho mais cedo e fosse acompanhá-la para dar um alô para a netinha. O que eu não imaginava era que Jhulie, Diego e um bebê muito gordo e com carinha de mau viessem junto.
– Jhulie! 
– Feliz Natal! - Ela falou, entrando no hall entre um pulinho e outro e me dando um abraço.
Desejei Feliz Natal de maneira mecânica, pela primeira vez fazendo as contas mentalmente e chegando à conclusão de que estávamos no dia 23 de dezembro.
– Quando vocês chegaram? - Perguntei ainda um pouco desnorteada. 
– Hoje. - Diego respondeu, dando um sorriso largo e sincero, e pela primeira vez notei o quão vivo e brilhante o sorriso dele era. Talvez porque ele raramente sorria - Como vai? 
– Bem, eu vou bem… - Olhei para baixo e encarei a bolinha rosada que Diego carregava em um tipo de bolsa presa ao seu torso. A bolinha estava completamente encasacada e embrulhada em panos azuis, mas dava para ver duas perninhas que pendiam para os lados, assim, como dois bracinhos gordos. 
– Ninha, Jackson. Jackson, Ninha. - Jhulie fez as apresentações - E sim, ele é um bebê muito sério.
Jackson me encarou pela primeira vez com curiosidade. “Quem é você?”, “Onde eu estou?” e “Por que você está olhando pra mim?” deviam ser só algumas perguntas que estavam passando pela cabeça dele. Sua expressão era muito, muito séria, como se eu estivesse dizendo coisas de uma importância absoluta. 
– Ora, olá lindinho! - Falei não conseguindo deixar de rir, levando o indicador até suas mãozinhas cobertas pelo macacão de lã. Elas estavam cerradas em punho, mas senti, mesmo por debaixo do tecido, que ele as tinha aberto ao meu toque. E então, como se não tivesse nada melhor para fazer, ele lançou um sorriso tímido e torto. 
– Diego. - Jhulie falou, e sua voz tinha um tom alarmante. Me assustei, mas em seguida entendi que era só uma ironia - Ele sorriu. Você tirou foto disso?
– Ele não ri pra mim. - Hérica parecia meio triste - Nunca sorriu. Estou quase me fantasiando de Papai Noel pra tentar de alguma forma…
– Ele quase não sorri. - Diego explicou, interessado no filho que agora já tinha voltado a ficar sério. 
– Mas ele tem um sorriso tão bonito. E tão… Vivo! - Concluí, chegando à conclusão de que o brilho que emanava de Jackson quando ele sorria tinha sido herdado do próprio sorriso de Diego. 
– Pois é. Mas ele nunca mostra o sorriso que tem. Acho que é por isso que quando isso acontece todo mundo fica meio abobalhado. Parece que ele consegue controlar o humor das pessoas quando faz isso, sei lá. 
Era verdade. O sorriso dele tinha mesmo deixado o clima mais aconchegante ali. A sensação era esquisita, mas muito boa. 
– Mas e a sua filha? - Jhulie falou em uma vozinha esganiçada. 
– A minha só tem olhos pro pai. - Fingi uma cara meio puta. Jackson achou isso engraçado e riu de novo. Continuei com um tom de abandono na voz - Pelo menos o filho de vocês gosta de mim. 
– Ah, não seja ciumenta, querida. - Hérica falou divertida - Valentina gosta de todo mundo. Até do carteiro. 
– Ouvi dizer que ela é o oposto de Jackson. - Diego se pronunciou. 
– Bom, é verdade, ela ri até de fratura exposta… 
– Ouvi dizer que ela tinha uma peculiaridade. 
– Mas eu não falei qual era. - Hérica se apressou em dizer. 
– Ela está lá em cima. Vamos. - Concluí, chamando-os para o andar de cima.
Quando chegamos no quarto, Valentina estava dormindo tranquilamente. 
– Ela é linda! - Diego sussurrou - Realmente linda! 
– Ela é a cara do Bruno! - Jhulie o seguiu, parecendo realmente espantada. 
– É, pois é. 
– Ela parece normal pra mim. - Diego voltou a falar, provavelmente procurando a peculiaridade a qual Hérica havia se referido.
Nesse momento Jackson soltou um gritinho de repente, e o barulho foi suficiente não só para assustar todo mundo ali como para fazer com que Valentina acordasse assustada.
E obviamente, quando ela abriu os olhos, Jhulie e Diego reagiram da forma que eu já tinha me acostumado a ver as pessoas reagirem. 
– Uau! 
– Os olhos dela são diferentes!
Eu ia falar alguma coisa, mas como as primeiras coisas que Valentina havia visto depois de ter acordado assustada foram os rostos desconhecidos de Jhulie e Diego, ela começou a chorar ensurdecedoramente.
– Ei, calma! Eu estou aqui! - Falei um pouco alto, pegando-a no colo e balançando-a, tentando fazer com que ela parasse de chorar - Calma, amor… Você tem até um amiguinho pra brincar agora… 
Não adiantou. Seu choro agudo era estrondoso, como se alguém tivesse arrancado à força seus dedos um a um. E então, como um super-herói ou algo esquisito assim, Bruno surgiu pela porta (sem capa) com um inconfundível ar de “Isso é um trabalho para o Super-Bruno!”.
– Calma, amor… - Ele repetiu as minhas palavras, puxando-a para o seu colo e balançando-a da mesma forma que eu havia feito - Pronto, pronto… Passou… Shhh… 
E é claro, em menos de quinze segundos, ela começou a se acalmar. 
– Como eu estava dizendo - Recomecei a falar fingindo naturalidade -, ela só tem olhos pro pai. 
– Oi, Jhulie. Oi, Diego. - Ele falou sorrindo, abraçando a irmã como podia e estendendo a mão livre para apertar a do cunhado enquanto ainda balançava Valentina quase como se ela fosse uma batida de limão sendo preparada. - E você deve ser o Jackson, não é? Jackson, que àquela altura já estava entediado com toda a situação, encarou Bruno como se ele fosse só mais um grão de poeira no quarto. 
– É, ele prefere a Ninha. 
– Bom, alguém tinha que preferir… - Brinquei, observando se Valentina estava mais calma. Bruno virou-a no colo, colocando-a de frente para Jackson. Ao encontrar os olhos do primo ela parou de chorar completamente, encarando-o como se ele fosse o brinquedo mais interessante que ela já vira na vida. Ele também se interessou por ela, mais do que por Bruno, e passaram-se alguns segundos - talvez minutos - até que algum dos dois fizesse alguma coisa. Jackson então levou a mãozinha até o braço de Valentina e ficou ali, fazendo absolutamente nada em particular, só reconhecendo-a com o tato. Quando ela sorriu abertamente para ele, talvez porque estivesse achando-o muito engraçado, ele retribuiu o sorriso e “falou” alguma coisa, que foi prontamente respondido por Valentina. Jackson rebateu o argumento da prima e ela riu do que ele disse, e então éramos cinco adultos idiotas assistindo a crianças de três e cinco meses conversando em uma linguagem desconhecida sobre algo que, aparentemente, era muito interessante.
– Ai, meu Deus! - Hérica soltou um gritinho - Que coisa linda! 
– Os olhos dela, cara… - Diego começou - São demais!
– Eu, particularmente, prefiro o esquerdo. - Bruno sorriu. 
– Se não fosse esse olho esquerdo eu diria que ela não é filha da Ninha. 
A brincadeira de Jhulie levou Bruno a dizer que eu era a mãe com certeza porque ele havia presenciado Valentina saindo de mim, o que, consequentemente, levou ao assunto do parto complicado, do susto que eu dei em todo mundo e da minha quase experiência de morte.
Era um bom jeito de começar o Natal.
Arthur chegou no dia seguinte, agarrando todos os bebês que encontrava pela frente. E como consequência de sua personalidade meio explosiva, tanto Valentina quanto Jackson foram imediatamente com a cara de Arthur. Era inegável, mesmo àquela altura, que ele sempre seria o “tio favorito”: Não havia como não se divertir com ele. Eu me divertia com ele.
A ceia e a reunião familiar foram, como de costume, na casa de Robert e Hérica. Aparentemente ela tinha se dado uma máquina fotográfica, com o único propósito de registrar os netos. Para onde quer que se olhasse, lá estava Hérica disparando um flash. Uma rápida olhada nas fotos salvas mostravam, em sua grande maioria, Valentina, Jackson, Valentina e Jackson. Valentina, Jackson e Arthur juntos. Poucas mostravam, de vez em quando, Jhulie, Diego, Bruno, Robert e eu conversando ou fazendo qualquer outra coisa.
E isso era tudo que se tinha registrado daquele Natal. 
Felizmente, todos haviam decidido não dar presentes naquela ocasião. Eu achei ótimo, primeiro porque não ligava para presentes, e segundo porque não tinha comprado nada para ninguém. Diferentemente do Natal anterior (em que todas as atenções estavam voltadas primeiro para mim - a nova namorada de Bruno - e depois, para a gravidez de Jhulie), nesse não se tinha qualquer outro assunto que não fosse relacionado aos bebês.
Eles eram, realmente, as coisas mais interessantes ali. 
Infelizmente, as visitas natalinas dos membros internacionais da família Coolin eram sempre rápidas, então já na manhã do dia seguinte nos despedimos de Jhulie, que insistiu que fôssemos visitá-los na França o quanto antes, e Arthur, que prometeu voltar no próximo Natal com uma namorada. 
Uma semana depois já estávamos nos despedindo daquele ano. Não tínhamos planos para o Reveillon, o que, sinceramente, não me importei. Ao meu ver, não havia no mundo nada melhor do que terminar um ano e começar outro junto da minha família. Passar aquele momento com Bruno e com a nossa filha tinha um significado ainda mais especial: Me lembrava que havia aproximadamente um ano que estávamos juntos. Um ano desde que nos reencontramos, desde que eu me sentia estupidamente feliz.
E então só um ano me pareceu muito pouco tempo. Muito pouco tempo para sentir o que eu sentia por ele. Muito pouco tempo para que eu conseguisse ser feliz daquela forma. 
– Tudo bem. - Uma vozinha falou dentro da minha cabeça - Você ainda tem o resto da vida com ele. É só o começo. 
… 
Aos quatro meses Valentina desenvolveu a capacidade de dar gritos agudos e muito longos de excitação. Ela fazia isso quando algo a agradava muito, o que significava que toda vez que Bruno chegava do trabalho minha dor de cabeça aumentava, porque nossa filha parecia uma tiete do próprio pai. 
– Eu também estou feliz em ver vocêêê…
Como recomendado pelo médico, comecei a parar de amamentar depois que Valentina completou seis meses de vida. Embora eu não quisesse, e me achasse uma péssima mãe por negar algo que ela visivelmente queria (e esperneava quando não tinha), tive que me manter firme quanto à essa decisão. Era um vínculo forte que tínhamos, mas que precisava ser diminuído aos poucos, ou pelo menos adaptado de alguma forma. Foi também nessa idade que ela aprendeu como demonstrar a falta que Bruno fazia. Se antes Valentina só chorava quando sentia fome, agora, ao se dar conta de que já estava muito tempo sem ver o pai, ela abria o berreiro. O pediatra havia nos explicado que, com o tempo, a criança tendia a sofrer um pouco mais quando se via separada dos pais, porque passava a existir nela essa noção. 
Seus olhos se definiam cada vez mais, cada um da sua cor. Ela passou a entender e reconhecer quando alguém chamava o seu nome, e vê-la reagir a isso era adorável. A intonação das palavras que falávamos era imediatamente repetida - ou, pelo menos, tentada. Tivemos que redobrar os cuidados quando sua mais nova mania passou a ser agarrar tudo que ela via pela frente e colocar na boca. 
– A aliança do papai não! 
Encarei Bruno esparramado no sofá com Valentina em cima dele, lambendo sua aliança como se ela fosse feita de chocolate. 
– Bebês… - Ri. 
– Quando ela vai começar a falar? 
Como resposta, Valentina soltou um barulhinho na tentativa de imitar o que Bruno havia dito. 
– Perto dos oito meses talvez. 
Ele a encarou novamente. 
– Que tal ir treinando? Sua primeira palavra vai ser “papai”, não vai? 
– “Aaah” 
– “Paaa-paaai” 
– “Aaah- aaah” 
– Quase lá. - Ele concluiu, dando um beijo nela. Suspirei. 
– Que foi? - Bruno perguntou, me olhando pela primeira vez. 
– Vocês. 
– O que tem a gente? 
Valentina abocanhou o nariz dele, fazendo-o gargalhar surpreso. 
– São uma dupla e tanto. - Respondi, indo me sentar ao lado deles. Para minha surpresa, ao me ver ali perto, ela se arrastou da maneira que pôde até mim e parou no meu colo, quando parecia confortável o suficiente. Era a primeira vez que Valentina me preferia a Bruno. 
– Ei. Cansou de mim? - Ele perguntou, chegando mais perto também. Ela esfregou o rosto no meu braço e bocejou, e eu tive que me controlar para não agarrá-la e enchê-la de beijos. 
– Ela teve um dia muito duro. Brincou mais do que podia. Não exija mais nada dela. - Falei em tom de brincadeira, pegando-a no colo e passando os dedos na sua cabecinha. 
– Hum. Isso é uma ótima estratégia. 
– Que estratégia? 
– Deixá-la cansada. Assim ela dorme cedo. - Ele concluiu, passando o indicador com leveza pela minha perna e me olhando com cara de maníaco sexual - E assim a gente pode ir dormir tarde. Sabe?
Eu gostava quando ele insinuava que queria alguma coisa comigo (além de conversar sobre Valentina). Nossa rotina como casal, embora não tivesse voltado completamente ao normal ainda, caminhava para isso. Eu já estava tomando as pílulas certas e Bruno já tinha jogado os preservativos no lixo, mas ainda tínhamos um bebê muito pequeno para cuidar. O que significava que sexo não podia ser feito assim, sempre que quiséssemos.
– Pára! 
– Quê? 
– Pára! Agora! 
Ele parou de se mexer. Estávamos encaixados em concha na cama, cobertos e, até aquele momento, aproveitando o clima. 
– Por quê? - Ele perguntou ofegante contra o meu ombro, não conseguindo conter a decepção na voz. 
– Ela… Está… Acordada! 
Valentina estava deitada no berço com a cabecinha virada para nós, a mão na boca, os olhos arregalados e uma cara de quem achava o que via muito interessante. Aquilo era perturbador.
– Nós estamos cobertos! Ela não está vendo o que estamos fazendo! - Ele concluiu rindo ao pé do meu ouvido, voltando a me penetrar. 
– Ela está olhando! 
– E mesmo que estivesse vendo… Ela não sabe o que é… 
– Não! Pára! 
Me afastei dele à força, procurando minha calcinha em algum lugar e vestindo-a. 
– Nãããão… 
Ele tentou me puxar de volta, mas me desvencilhei dos seus braços. Porra, eu não ia conseguir transar com a minha filha assistindo! Por mais que ela não fizesse a menor ideia do que estava acontecendo. 
– O que foi, meu amor? Por que está acordada? - Perguntei bem baixo enquanto a tirava do berço - Quer dormir no colo da mamãe? Depois de algumas sacudidas costumeiras e um pouco de chamego, Valentina dormiu. Às vezes parecia que tudo que ela precisava era de um pouquinho de mimo. 
– Pronto! Missão cumprida. Agora volta aqui… - Bruno falou com voz de choro. Como ela já não acordava berrando como antigamente, achamos aceitável voltar com o berço para o seu quarto. Assim não precisaríamos sair e ir para outro lugar da casa sempre que quiséssemos ficar juntos, porque Valentina tinha pegado a mania de acordar no meio da noite e ficar silenciosamente observando as coisas no escuro como uma psicopata. 
O primeiro tchauzinho que ela deu foi, obviamente, para Bruno. Saindo do quarto em uma manhã de quinta-feira, ele acenou histericamente para ela, e ela retribuiu. Ele ficou tão fascinado com o feito que chegou atrasado no trabalho. Da mesma forma, Valentina também engatinhou para ele, assistindo-o chegar em casa em um dia qualquer. Ela ainda estava aprendendo a coordenar os bracinhos e as perninhas, e por isso foi aos trancos e barrancos para o pai - mas foi. 
Como o chão era coberto por um carpete fofo, ela não se machucava quando se desequilibrava e caía, o que nos permitia achar seus trejeitos tortos muito engraçadinhos. Valentina engatinhando significava o dobro de cuidados. Se ela podia chegar onde quisesse, nós tínhamos que impedi-la. 
Sua aparente hiperatividade me fazia acreditar que um belo dia, ao voltar do banheiro, eu a encontraria brincando com o conjunto de facas que ficavam na cozinha ou tentando ir para o andar de baixo no meio da escada.
Em contrapartida, eu fui a primeira a vê-la ficar em pé sozinha no berço. Eu estava ao telefone com Hérica, e Valentina queria desesperadamente o meu colo. Como optei por pegá-la assim que finalizasse a ligação, ela perdeu a paciência e se equilibrou com a ajuda das grades, ficando de pé e se esticando toda para que eu a tirasse de lá. É claro que me emocionei e a peguei no colo no mesmo minuto, enchendo-a de beijos. Quando contei a Bruno, ele sentiu inveja de mim. 
Seu primeiro dentinho nasceu, enchendo todo mundo de orgulho. Acho que Hérica chorou. A piscina se tornou um dos seus lugares favoritos no mundo, o que me fez desenvolver uma compulsão em checar sempre se todas as portas que davam para aquela área estavam devidamente trancadas. 
Bater palmas havia se tornado seu passatempo preferido, assim como rolar no chão e balbuciar coisas irreconhecíveis para si mesma. Se não fosse pela social que minha filha adorava fazer com qualquer estranho na rua, eu diria que ela podia ser autista. Mas não, Valentina só se entretia sozinha mesmo. 
Bruno comprava livros coloridos, instrumentos musicais para bebês (um pianinho, um tamborzinho e um xilofonezinho) e brinquedos cheios de formas e cores. Ela passava horas colocando coisas dentro de um balde e tirando-as de novo, e quando cansava disso, seus próprios dedinhos gordos pareciam ser suficientes para deixá-la hipnotizada por um bom tempo.
– Viu só como você é linda? - Bruno falou, apontando para o reflexo dela no grande espelho do hall de entrada. Ela se curvou para frente e colocou as duas mãozinhas ali, abriu a boca e lambeu o vidro. 
– Que bom que eu limpei esse espelho há dez minutos atrás. - Concluí, organizando as coisas na bolsa. Estávamos de saída para um almoço na casa de Hérica e Robert.
– Graças a Deus. - Ele suspirou, observando-a parar de “se” lamber e notar o reflexo dele mesmo logo ali ao seu lado. Quando seus olhinhos encontraram com os dele no espelho, ele falou outra vez - Oi. 
Ela gargalhou. 
– Quem eu sou? - Ele perguntou. Ela continuou encarando-o com curiosidade. 
– “Paaa-paaai”. 
– “Paaah”. 
– “Paaa-paaai”.
– “Paaah pppp”.
– “Paaa-…” 
– Eu espero. - Concluí.
– “Paaah-paaah”. 
– ELA FALOU! 
Valentina riu do berro que Bruno deu. 
– Ela não falou papai…
– Falou sim! 
– Ela falou “pa-pa”. 
– É a mesma coisa!
– “Paaah-paaah”.
– Ok, ela é um gênio. - Ele falou de um jeito sério, deixando-se levar pela histeria - Vou matriculá-la na faculdade! 
– Ela já falou “mã” antes. - Respondi em minha defesa. 
– E daí? Ela podia estar tentando falar “mão” ou “mamão”. 
– Ela estava tentando falar “mamãe”! 
– Prove.
– “Paaah-paaah”. 
– Tá bem, já chega! - Falei sem conseguir conter o riso, pegando-a do colo dele e abrindo a porta para o jardim. Bruno levantou as mãos como um boxeador vitorioso.
– Minha filha falou “papai”!
Eu sabia que essa seria a primeira palavra que Valentina diria, primeiro porque Bruno passava pelo menos meia hora todos os dias tentando fazê-la falar, e segundo porque entre “mamãe” e “papai”, bom, eu simplesmente sabia o que viria primeiro de qualquer forma. Mas mesmo assim, ouvi-la dizer alguma coisa pela primeira vez era realmente maravilhoso.
A partir daquele dia, Valentina parecia uma metralhadora, atirando “papapa”s para todos os lados. Bruno se divertia horrores, e agora tentava fazer com que ela se aprimorasse na palavra “papai”, dizendo-a com todas as letras certas. Ao invés disso, dois dias depois, ela chamou por mim, o que, tenho que confessar, quase me fez chorar de emoção. 
Nesse meio tempo, tivemos o aniversário de 1 ano de Jackson. Não era preciso Jhulie nos ameaçar de morte caso não comparecêssemos à festa: Robert e Bruno conseguiram tirar alguns dias na empresa para que todos pudéssemos dar “um pulinho” na França.
Àquela altura eu já tinha passaporte - coisas de Bruno e seus pauzinhos mexidos, que optei por não perguntar e só agradecer. A viagem foi tranquila. Como a distância entre os países da Europa era realmente pequena, em pouco tempo aterrissávamos em Paris, o que foi ótimo por não dar tempo a Valentina de se entediar com o interior do avião e começar a gritar palavras irreconhecíveis, tirando a paciência dos outros passageiros. 
Paris era realmente estonteante. Ficamos lá por três dias, mesmo que o aniversário de Jackson só tivesse sido no primeiro. Passeamos um pouco e conhecemos pontos turísticos, aproveitando o clima agradável do verão. Valentina pareceu gostar particularmente dos jardins coloridos, e eu tinha certeza que se Bruno não estivesse segurando-a durante todo o tempo, ela teria brincado e se esfregado na terra e na grama à primeira oportunidade. 
Bruno ganhou um presente fora de época de Diego: Uma camisa básica preta com os dizeres “Ne plaisante pas avec ma fille”. 
A piada tinha sido ótima para todos ali que sabiam falar francês, o que me deixou com cara de idiota até que Arthur e seu lado gentil resolvesse traduzir a sentença para mim: “Não mexa com a minha filha”. 
E então eu tive a oportunidade de ver uma das cenas mais adoráveis que já tinha visto na vida: Bruno com cara de gângster nos seus óculos escuros, usando aquela camisa “ameaçadora” com Valentina no colo em seu esplêndido vestidinho roxo de babados, dando risinhos de alegria por causa das borboletas que passeavam por ali. 
Vomitei arco-íris a viagem inteira, e antes que pudesse me recuperar, nossas “férias” já tinham chegado ao fim.
De volta à Inglaterra, porque nada estava tão bom que não pudesse melhorar, Valentina decidiu que queria começar a dar os primeiros passinhos. Suas perninhas estavam começando a criar firmeza: Ela andava quando alguém a segurava pelas mãos, mas nunca tinha caminhado por si só até um dia que, convencida de que já estava apta a mexer as próprias pernas como um atleta profissional, resolveu correr até Bruno assim que ele entrou no quarto. 
Ela estava em cima da cama e, obviamente, caiu no colchão. Mas não se importou. Achou inclusive a queda muito engraçada. Fiz menção em ajudá-la a se levantar, mas ela conseguiu fazer isso sozinha, se apoiando nas minhas pernas, e quando já estava de pé de novo, saiu andando outra vez. E outra vez caiu.
E a queda foi repetida muitas vezes, e em todas as vezes Valentina achava muito engraçado cair. 
– Ah, vamos lá. Você consegue! - Bruno encorajou-a esperando do outro lado do colchão. 
Ela tentou de novo. E de novo. Os braços abertos de Bruno eram um estímulo, e talvez por isso Valentina não desistisse. 
Demorou um tempo, mas não muito: Quando ela finalmente ficou de pé e deu mais passos do que já havia conseguido, se concentrando na tarefa de caminhar em linha reta - ou quase -, Bruno e eu torcemos em voz alta como pais corujas que éramos, e isso deve tê-la animado. Mas fizemos a festa mesmo quando ela alcançou os braços do pai e se jogou de qualquer jeito, como se fossem sua recompensa por um trabalho árduo tão bem feito.
– Minha atleta linda! - Ele soltou todo feliz, abraçando-a e beijando-a com tanta força que era difícil acreditar que ela estivesse respirando direito. 
O tempo foi passando, nossa filha foi crescendo e ficando cada vez mais linda e sorridente. Ela era sociável, feliz e cada vez mais idêntica a Bruno. 
A vida, definitivamente, não poderia ficar melhor.

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