41 - O diário

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Maio de 1911.

Enquanto escrevia ela cantarolava baixinho uma canção, até que a porta do seu quarto foi aberta bruscamente.

Quando Catarina viu quem era, fez uma careta.

— Onde estão suas boas maneiras, Michele?

— Desculpe! Não queria lhe incomodar... Já terminou?

— Ainda não! Lembra? A senhorita estava no meu quarto ontem a noite, pouco antes das luzes se apagarem.

— Então? Já terminou?

A insistência da amiga lhe arrancou um sorriso.

— Estou quase no fim! Tive que escrever sob a luz da minha lamparina...

— Durante a noite toda?

— Boa parte dela, Michele, pois acabei cochilando sobre a minha mesa de estudos.

A Srta. Harrison, ainda trajando sua roupa de dormir naquele sábado nublado, abriu a porta do quarto, espiou pelo corredor, depois comentou.

— Acha que o diretor aprovará o roteiro?

— O senhor meu tio quer ler o conteúdo após o desejum de amanhã. Se aprovará ou não, não faço ideia, só estou seguindo suas orientações...

— Mas o que pensa a respeito? Conte-me, por favor.

— Michele, tudo que eu penso sobre assunto e sobre muitos outros, está escrito aqui — disse Catarina apontando para o seu diário.

— Então me deixe ler...

— Esse é um pedido muito deselegante da sua parte, minha cara amiga, mas combinemos o seguinte: caso algo venha a me acontecer, saberá onde encontrá-lo e então poderá saciar todas as suas curiosidades sobre os meus pensamentos...

A Srta. Harrison ficou branca e Catarina rapidamente a segurou pelos ombros.

— Calma Michele, só estou brincando...

Sua amiga suspirou profundamente algumas vezes, como se o ar lhe faltasse.

— Não brinque com essas coisas, por favor! Já lhe contei que venho tendo pesadelos terríveis e a senhorita está em todos eles...

— É tudo fruto da sua imaginação fértil, minha amiga. Devia fazer como eu: registrar em um diário, para um dia rir do que escreveu ou quem sabe até compor um livro.

— Está bem, está bem! Me deixe ler o roteiro.

— Ainda não está pronto. Volte a noite e lhe deixarei ler tudo.

— Promete?

— Prometo, Michele, agora vá e me deixe trabalhar.

Assim que a Srta. Harrison a deixou, Catarina deixou de lado o roteiro e abriu o seu diário. Após fazer várias anotações, colocou roupas mais apropriadas para fazer o desejum e saiu do quarto com o diário em mãos.

Não avistou ninguém no corredor e então o colocou num esconderijo que somente ela e Michele conheciam.

Encontraram o local há mais de um ano, por pura curiosidade, quando verificavam as inscrições em alguns quadros e lá dentro encontraram outros objetos, como manuscritos antigos e objetos pessoais, provavelmente de outro aluno da MES cuja a identidade desconheciam.

Imediatamente ela passou a esconder o seu diário lá dentro, sem saber porque tomava tal atitude, pois tudo que escrevia nele eram pensamentos sem importância, de uma órfã que morava de favor numa escola.

Mas algo lhe dizia que isso era algo que deveria fazer e que algum dia, no momento certo, traria alguma luz para alguém. Nunca entendeu direito essa ideia que lhe vinha a mente, mas se soubesse que um dia um retrato seu seria  pintado e afixado naquele lugar, entenderia perfeitamente a mensagem que a escola repetidamente lhe contava, mas que Catarina ainda não compreendia.

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Abril de 2013.

Catarina realizava seu passeio noturno pela MES, próximo ao corredor que dava acesso ao seu antigo quarto, quando parou defronte a uma moldura antiga e por um longo tempo a ficou observando.

Sua atenção só foi quebrada ao ouvir uma voz conhecida.

— O que está fazendo?

— Matando a saudade...

— Do que? — questionou a voz feminina.

— Não é de que, mas de quem...

— De quem então, Catarina?

— De mim mesma! Sabia que eu ficava neste retrato?

— Sabia! O vi várias vezes. Sua imagem estava muito linda ali...

— É uma pena ter que estragar uma obra de arte...

— Não me explicou ainda por que está fazendo isso.

— Não parece óbvio? — disse Catarina sorrindo.

Ela se aproximou da moldura e fazendo gestos de quem repintava o retrato com as pontas dos dedos, foi contornando a mesa que um dia sustentara sua lamparina, um antigo presente de seu pai.

Aos poucos a imagem da sua mesa de trabalho foi desaparecendo, até que a tela ficou vazia e ela ficou satisfeita.

— Para onde o móvel foi, Catarina?

— Eu não sei ainda, mas tenho certeza que vamos descobrir.

— Será que agora eles vão entender o recado?

— Eu também não sei. Só nos resta esperar...

Catarina se virou para ir embora, mas a voz feminina ainda queria conversar.

— Tenho saudade deste mundo e das pessoas...

— Não se esqueça que entre eles está a pessoa que lhe enviou para cá — respondeu Catarina secamente.

— Todos pagam por seus erros, não é mesmo?

— Todos pagam, minha linda, Inclusive nós mesmas, que pagamos com nossas vidas...

— Mesmo assim sinto saudades, Catarina.

— Tudo bem, minha linda, mas não se aflija muito, pois sinto que logo teremos mais uma companhia para nossas longas noites...

— Já imagina quem seja?

— Ainda não, mas não vai demorar muito agora, eu sinto...

— Como pode ter tanta certeza?

— Foi a mesma coisa que senti antes da sua alma chegar aqui, Emilly...

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