O Rei Dragão - parte 1: Taor

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Esta história começou em Terra de Armitréia e pretende relatar os fatos tidos como causa do proclamado e trágico Ano do Dragão, também suas históricas consequências.

Na memória da anciã, o tempo recuou algumas décadas ao alisar a grande escama verde. Teve num curto momento a impressão de rever as próprias mãos ainda jovens, como da primeira vez que examinou aquele fragmento do extinto dragão verde que nunca chegou a conhecer. Passada a ilusão, a realidade ergueu novamente ao seu redor a sua morada atual, no povoado de Tendas, tão pobre quanto a velha casa onde cresceu no litoral.

Na época, o pai dela e outros malandros como ele atravessavam de barco o estreito Mar de Somoho-Goji, que separava a terra dos humanos do antigo continente abandonado pelos dragões. Lá no continente de Dorijan, eles passavam alguns dias nos barracões improvisados se ocupando em transformar resinas naturais em escamas falsificadas para vender como relíquias. Iam apenas homens sem medo de suportar adversidades num trabalho em condições impróprias e totalmente desonesto. À noite no litoral, à esquerda e à direita, quem olhasse veria uma série de pontos luminosos das chamas que aqueciam os caldeirões e o cheiro da mistura fumegante prevalecia vencendo o odor da maresia. Ao amanhecer punham-nas em formas para secar, era como se deixassem as escamas falsas para "bronzear". Assim, elas adquiriam o brilho cintilante e natural que era o ganha-pão dos vigaristas.

Era certo que, alguns bravos teimavam em avançar continente adentro rumo a exploração dos antigos palácios draconianos em busca de relíquias verdadeiras e morriam sob as lanças da Guarda Real Humana que as mantinham longe do homem comum. Outros se aventuravam pelas terras selvagens do continente draconiano, Independência, e encontravam outros tipos de mortes azaradas. Ou, se realmente encontrassem algo perdiam no momento da revista antes de retornar para casa e retornavam de mãos vazias e planejando novas estratégias para burlá-los na próxima viagem. A Guarda Real era reconhecida pela recusa de compaixão, eram incentivados e treinados para serem cruéis, ajudavam a Realeza Humana a manter seu poder com o selo da violência.

Segundo o que o pai da anciã lhe contou, um dia ele estava acocorado na areia fumando e esperando a mistura chegar ao ponto certo de adicionar corante, quando o mato começou a chacoalhar e de lá saiu um homem cambaleando até cair de costas para o chão. Sacou um pequeno canivete e foi ver de perto o estado do sujeito: estava ensopado de suor e ao verificar por baixo da blusa suja de sangue conferiu que na barriga havia um grande corte com profusão de pus. Ia morrer "sem jeito de evitação", melhor arrastar o sujeito de volta para o mato e ir cuidar da própria vida, então foi o que fez.

No caldeirão, a mistura chegou na temperatura certa para a etapa da coloração. Decidiu que faria escamas verdes primeiro, pois era o corante com odor menos intenso, os demais o deixavam enjoado. Com a adição do corante, a mistura começou a produzir lindas bolhas verdes estalando de tão quentes, as escamas ficariam bonitas e renderiam um bom lucro, a noite seria perfeita sem os lamentos de dor vindo do moribundo na moita. O homem demorava a morrer, e o pai da anciã não adiantaria o processo, nunca foi assassino.

Distante dali, seguindo pela faixa de areia, ao redor de outra fogueira, que só percebia como um pontinho alaranjado bem distante, seus dois camaradas foram beber com outros aventureiros que sempre bebiam, jogavam e brigavam para passar o tempo. Passaria a noite atado a expectativa "agora ele morreu... suspirou, ainda vive o palerma!" Resolveu buscar um lampião no galpão e voltou à moita, o moribundo gemia coisas incompreensíveis ardendo de febre, ao iluminar seu rosto percebeu que apesar da barba, tratava-se apenas de um rapazote. Apalpou os bolsos e por cima da roupa sem encontrar nenhum documento ou sequer uma pista de sua origem. Nesse momento o rapaz pareceu apontar para o mato, podia nada significar, visto seu estado pouco lúcido, mesmo assim foi conferir.

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