O Rei Dragão - parte 2: Ururau

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O aventureiro admirou a beleza que ainda via em sua envelhecida esposa enquanto ela delicadamente recolocava a escama verde numa espécie de altarzinho. Antigamente, era comum as mulheres renderem tais homenagens a Ururau, padroeira do amor materno incondicional. Hábito recriminado pela Casa Real humana, que passou a indicar que se adorasse apenas Taor, representada pelo círculo.

Preso à cama, sem poder andar há alguns anos, ainda sentia-se um aventureiro na vida. Às vezes tentava lembrar de seu nome, onde nascera ou qualquer coisa antes de cair de cara na areia com uma presa de dragão escondida na barriga. O passado resumia-se a névoa branca, mistério.

O melhor era pensar que renasceu para a felicidade, nunca mais voltou ao continente dos dragões, preferiu trabalhar como feirante, ser marido, pai, avô, numa vida honesta e essa virou sua aventura.

Contudo, Eduardo carregava algo dele, uma coragem inata aos rapazes de vinte anos. Se quisesse descobrir quem foi antes, bastava observar o neto. Da avó o rapaz herdou o gosto por histórias, divertia-se contando "sua versão" para as meninas. Eduardo contou:

- Dragões tem visão muito boa, mas o olfato não é dos melhores, nós humanos, por exemplo, somos bem melhores nesse sentido. Apenas os dragões verdes são bons farejadores, coisa que herdaram da Ururau.

Sabrina apontou para a escama que a Bisa pendurara de volta na parede antes de vir deitar-se também.

- Aquilo era da Ururau?

- Oh, não... aquilo pertenceu a um dragão verde comum, Ururau é apenas uma lenda, nunca realizou os feitos que lhe creditam! – a voz do Bisavô era tão rouca que parecia que ele mesmo incorporava um dragão.

Eduardo fez careta e prosseguiu:

- Quando Taor desceu sobre o mar a história diz que ela dormiu, e isso explica porque humanos tem períodos de sono regulares enquanto dragões podem dormir ou ficar acordados durante o período que quiserem. É o que nossa religião prega que Taor fez após envolver sua primeira cria numa casca, e que essa criatura aguarda num lugar elevado para retornar à Terra no fim da raça humana. E sendo meio humana, meio dragão, advogará a Divindade por todos nós. Mas, uma nova religião propõe uma nova questão: e se Taor trouxe o ovo para cá? Ela pode ter o escondido antes de adormecer, no dia seguinte, Taor voltou a brilhar no céu.

Beatriz, que piscava pesadamente, cheia de sono, arregalou os olhos e confirmou com a cabeça e Sabrina ainda mais sonolenta apenas copiou mecanicamente a irmã e voltaram a cochilar. O assunto ainda era complicado demais para a idade das meninas.

- Assim que Taor trouxe o ovo, o olfato de Ururau percebeu a presença de um mestiço aqui na Terra, e na noite seguinte quando voltou a procurar sua cria, o encontrou sendo chocado por Ururau. As duas firmaram um pacto de lealdade e o grande dragão verde será a guardiã do ovo até o dia que a criatura meio humana, meio dragão vier estabelecer a paz entre homens e dragões.

Dormiram antes do fim. O Avô aproveitou para censurar o neto:

- Desaprovo que conte essa história às meninas, Eduardo! São lendas, besteiras.

- Se julga besteiras, Avô, devem ser inofensivas. E o filho de Taor é o tipo de lenda que toda criança do povoado conhece.

- Mas você sabe que nenhum delas tem a mesma idade das gêmeas, justamente por causa de lendas como essa, tão perigosas que nos obriga a viver desse jeito. Eu espero que suas ausências em casa não tenham relação com a Rosa Púrpura!

- Ora, a Rosa existe? – a luz fraca iluminou uma expressão irônica no rosto de Eduardo.

- A Rosa morreu logo após o nascimento, esse livro da Rosa Púrpura foi inventado por gente que desacredita no amor da Mãe Taor!

- Como desacredita, Avô? A Rosa Púrpura prega que Taor ama tanto a homens e dragões que permitiu que seu ovo permanecesse entre nós!

- Chega! Parem essa discussão, já é tarde e as meninas estão dormindo. Querem que eu me arrependa de ter falado na Divindade?

Eduardo e o Bisavô se calaram, então o neto sentou na beirada da cama. Olhou ao redor, a casa de cômodo único onde viviam testemunhava a bondade daqueles dois idosos, pois cuidaram do neto desde pequeno e quando surgiram Sabrina e Beatriz não se pouparam mais sacrifícios. O pior cabia ao Bisavô, passar dias e noites fingindo estar num grau de doença pior do que o que realmente possuía, na verdade protegendo o esconderijo das meninas em revistas da Guarda Real. Os dois trocaram um olhar que resumia as pazes, o Bisavô compreendia também como devia ser difícil para o neto ficar ali cuidando dos avós e das meninas adotadas, enquanto sua natureza combinava mais com sair para lutar contra o governo opressivo da rainha.

De repente, o idoso agarrou o pulso do neto.

- Preciso que prometa uma coisa.

- O quê?

- Que cuidará dessa família.

- Prometo! Eu já não cuido?

- Sim, mas preciso ouvir que protegerá todos haja o que houver, será por elas.

- Sim, Vô, por elas e pelo senhor.

- Não! Eu e sua avó, não! Nós já vivemos tudo, quero que as proteja, as gêmeas. Sei que não são suas filhas...

- Sequer questiono tal coisa Avô, são nossa família, eu amo assim. E prometo a você, vou defendê-las de tudo.

- Fico em paz, confio em você.

Silenciosamente, o homem iniciou a rotina de massagens para diminuir as dores do Avô, antes de deitar-se no colchão de feno no chão, e entregar-se ao sono, ou como diz o povo, ao Feitiço da Rosa.

***

Longe dali, ao contrário do que se acredita, pelo menos um humano sobrevive no Espinheiro. O incrível é que ele seja apenas uma criança, da mesma idade das gêmeas. Op-Hal acostumou-se a escuridão do Espinheiro e enxerga tão bem com a luz da Pedra Branca quanto de Taor. Assim foi fácil identificar a gorda lagarta entre os galhos. Com destreza, pegou o bicho e comeu.

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