O Rei Dragão - parte 9: Alis

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But I set fire to the rain,
Watched it pour as I touched your face,
Well, it burned while I cried,
'Cause I heard it screaming out your name, your name...

Eles não gritaram "caça aos escalpos", porém entraram na jaula tão ferozes quanto os homens da Guarda Real, "posso considerar que nossos Guardiões são ainda melhores que..." Mutemuia estalou os lábios e piscou o olho para Alis, nem precisava completar a frase, seria ilegal tal afirmação. Em pouco tempo Alis havia se habituado a displicência dos membros do Consenso, os chamados Conselheiros, ao se referir a Casa Real. Cada fala, fosse de um Guardião, Honrado, Administrador, Notívago, Pensador, Governança, Pequeno, continha esse tom, nunca utilizado na presença de visitantes.

Começou o treino, uma porta preta foi aberta verticalmente e um tigre passou pela abertura. Alis então perguntou a Mutemuia sentada ao seu lado entre os expectadores em torno da arena:

- É um maesel?

- Oh, não! É uma fera em sua forma pura como foi criada pela Divindade! Veja a bestialidade clara em seu olhar, a força bruta que os move é nosso trabalho conter nos maesel. Uma lástima. Manipulamos os dons dados pela natureza, decidimos o que servirá em nosso projeto e excluímos o restante.

O tigre sentara num pequeno tambor e com orelhas baixas estudava os cinco homens na jaula. Um deles levantou a voz e o animal arqueou o corpo.

- Neste dia nosso Pequeno Gui, Conselheiro da Casa de Rohr, testará sua vocação numa carreira de Honrado! Pode ser que chegue a Pensador, quem sabe o dia que algum desses bichos finalmente consiga revidar-me, ó pá? – os presentes riram e o homem estalou o chicote no ar, o tigre timidamente colocou a pata traseira no chão – Rá! Covarde! Pode ver Gui, se eu permanecer dentro da jaula seria o mesmo que colocá-lo a brincar com um bichano, as surras deixaram o animal meio traumatizado. Lembra-te de usar o chicote, a vara, faça-o cumprir os movimentos básicos e sobreviva ao primeiro contato, o Pequeno que entrará em seguida ficará intimidado se precisar pisar no teu sangue.

A saída do homem foi suficiente para transformar o tigre. Ele retesou o corpo e mostrou os dentes. Alis prendeu o fôlego nunca vira um animal olhar para um humano com ódio. O Pequeno Gui ficou realmente pequeno, ergueu a vara e teve outro rugido e a exibição das garras como resposta.

- Convicção, postura em guarda! – berrou o Pensador.

Gui estalou o chicote duas vezes bem rápido, sua destreza nesse quesito surpreendeu o animal, convenceu-o que era alguém de quem obedecer a um comando ou esperar mais até o momento de uma brecha para atacar. Bateu com o chicote perto do traseiro do tigre e com a vara num tambor à sua esquerda, o bicho rumou de um para o outro ao longo dos quatro tambores que marcavam o formato de um quadrado por dentro da jaula circular. Por fim, voltou ao primeiro tambor e recomeçou o exercício, nessa ronda mal o tigre chegava ao tambor e o chicote era estalado fazendo-o correr em círculo ininterruptamente pela jaula. Ao passar pelos outros homens desviava o curso levemente e eles mostravam o chicote e a vara formando um x, a posição de guarda.

- Parece um maesel, Alis? – sussurrou Mutemuia.

-Definitivamente não, eles têm algo...

- Algo incompreendido para os homens, respeitado pelos dragões, admirado por nós do Consenso apesar de trabalharmos com a reprodução da força animal subtraindo-lhes a selvageria. Pessoalmente, defendo respeito aos animais e acredito na colaboração entre espécies, nasci em Sargos, conhece?

- Centauros, nascem, vivem e morrem sobre cavalos. Seriam ótimos na Guarda se dominassem a rebeldia.

Na fileira abaixo delas um Pensador ocupante de uma cátedra diferente do grandalhão que dirigia o treino na jaula pigarreou demonstrando desconforto de ouvir Mutemuia em reminiscências do passado a recém-chegada. Superior, ela ignorou e disse:

- Lembre, antes que houvesse maesel, eram os nossos cavalos que transportavam a Guarda Real. Contrariando meu prognóstico Gui realizará o último exercício, vejamos.

O tigre estava outra vez no tambor inicial, Gui andou entre duas linhas brancas pintadas no chão. Diante do tigre, o Pequeno começou a girar os braços desenhando um oito no ar ora fazendo a posição de guarda com a vara e chicote, ora deixando o peito exposto. O movimento foi ficando cada vez mais lento, o que aumentava o tempo de vulnerabilidade de Gui e os batimentos cardíacos de Alis. Ele começou a andar para trás e Alis sentiu um breve alívio antes do tigre descer do tambor e caminhar na direção de Gui. O chicote sem velocidade não sibilava, o novato parecia a presa cansada, o bichinho mais fraco da manada, então o tigre agachou e impulsionou o corpo num salto fenomenal. Os outros três homens soltaram uma rede e prenderam-no. O Pensador voltou e ajudou a recolher o animal, Gui auxiliou, foi brevemente parabenizado e o treino recomeçou com outro candidato, dessa vez uma moça e um leão.

Mutemuia ergueu-se e estendeu o braço para Alis, os Conselheiros levantaram para abrir caminho e reverenciar a Administradora da Casa de Rohr em sua saída da sala em formato de arena.

- Chega de emoções fortes por hoje, Alis, pode voltar aos seus aposentos na Governança. – Alis fez uma expressão como se perguntasse por que ficaria sem participar da ceia, e Mutemuia acrescentou – Excepcionalmente, sua ceia foi preparada lá.

Alis ficou satisfeita, gostava quando não havia um visitante para acompanhar e podia ficar sozinha na Governança. Ao contrário dos salões e corredores extremamente iluminados por taores, o quarto privado mantinha escuro ao seu gosto, como fora acostumada numa vida sem luxos. Galgou os degraus sem pressa, ficava sozinha na Governança, sua função era atender os hóspedes da Casa de Rohr, e no momento, a única que havia estava dormindo, recuperando-se de um procedimento cirúrgico. Havia no andar debaixo outra Governança, responsável por todas as necessidades domésticas de Rohr. Contava com um maior quatitativo de pessoas, além de muitos Pequenos para auxiliá-los. Desde que Alis ocupara seu cargo, cada qual mntinha-se em seus andares sem meter-se no serviço alheio, mesmo tendo sido treinada para trabalhar em equipe na Guarda, agora achava esse isolamento um bom arranjo.

Assim que abriu a porta de seu quarto, o cheiro de comida denunciava que alguém já estivera ali trazendo sua ceia, a pedido de Mutemuia. Checou o ambiente e seus olhos nem precisaram readaptar-se a pouca luz para identificar a silhueta recortada contra a janela.

- Acreditei que não o veria novamente.

- Aproveito os privilégios concedidos a quem ajuda manter os segredos das pessoas certas. Vejo que também tem os seus benefícios, está aprendendo a escrever. – aproximou-se dela – Mostre o meu nome.

Com a mão trêmula segurou o bastonete de carvão e escreveu.

- Mauro.

- Meu nome na Benção de Taor, às vezes é bom me lembrar dele.

-Só isso veio fazer aqui?

Ele afundou o rosto no pescoço de Alis, respirou profundamente. Soltou-a e retomou a pose de comandante:

- A Casa de Rohr colaborará em uma missão da Casa Real, entre as funções solicitadas para a comitiva consta a Governança.

- Quem levaremos que necessitará de escolta?

-Ninguém, essa missão serve para buscar. Ou, como eu prefiro, caçar escalpos.


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