O Rei Dragão - parte 3: A Guarda Real

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- Bê, abre o olho!

Impaciente com a resistência em acordar, a gêmea tentou abrir os olhos da outra à força. Beatriz ameaçou chorar, mas um sussurro a colocou alerta:

- O Eduardo já saiu, a Bisa e o Biso estão dormindo...

Coçou a areia dos olhos antes de abrir. Encarou olhos verdes como os seus, observando-a num rosto com traços idênticos aos seus. Uma ajeitou para trás a massa de cabelos loura acinzentada da outra. No meio de uma família bronzeada, vibrante, elas tinham em comum esses tons suaves entre dourado e prata. Ter um gêmeo é reconfortante como se a Divindade lhe prometesse nunca deixá-lo só. É ser uno e duo ao mesmo tempo, compartilhando vivências com alguém ao mesmo tempo tão diferente e tão parecido. Como se um corpo tivesse a chance de viver duas vidas. Acima de tudo protegiam-se e tinham a certeza de que sempre uma estaria lá pela outra. Sorriram, sabendo que começaria a peraltice.

Arrastaram-se na cama no sentido dós pés dos Bisavós e ao tocar o chão permaneceram agachadas junto ao móvel planejando como chegar ao muro de casa. Não porque fosse muito alto, ou mesmo que quisessem fugir, isso nunca! Sabrina e Beatriz apenas desejavam ver o povoado.

- A capa da Bisa, com o capuz!

- Ficou suja demais, a gente é pequena, arrastou no matinho! Lembra?

- O forno! Vem Bina!

Engatinharam até a porta e a destrancaram, a brisa fresca da manhã era um evento raríssimo para elas, mas queriam ainda mais, o forno de pedra ficava na parte externa e as crianças descobriam que era fácil esconder-se ali e fizeram isso outra vez. Bê deixou a sapatilha mantendo a porta aberta. O céu ainda estava negro e a Pedra Branca aparecia solitária.

- Taor ainda não acordou, Bina.

- Sabia, que a Pedra Branca foi um dragão? Por isso ela fica dia e noite no céu, não precisa dormir! Uma vez ela veio na Terra e bum!

- Bum!

- Todos os dragões sumiram!

Talvez Sabrina e Beatriz tenham refletido precocemente sobre a finitude das coisas e a necessidade de aproveitar as oportunidades do mundo enquanto ainda se está por aqui, pois de um modo destrambelhado correram na direção do muro baixo. Na ponta dos pés conseguiam apoio para pôr nariz e olhos acima da linha do muro. Vez ou outra que conseguiam escapar para o jardim e ver o povoado, Sabrina tratava logo de conferir se teve alguma mudança na paisagem, Beatriz olhava o céu primeiro, sentia os lábios roçando nas manchas de lodo – a associação cheiro de lodo e liberdade ficou registrada em sua mente – e descia a vista pelos telhados antes de finalmente vislumbrar o quadro todo. A casa, sem dúvida a mais simplória do lugar, situava-se num ponto mais alto e periférico do que as outras, o calçamento lá do centro onde acontecia a feira rareava à medida que o olhar das meninas serpenteava as ruas até chegar a estrada de chão para o portão delas.

Viviam felizes na casa mais simples do povoado mais humilde. Tendas era tão simplório que ao contrário dos outros povoados com diversas vilas, eles se concentravam na Vila do Mercado e só. Haviam algumas centenas de casas, a feira, a praça com o monumento a Ururau – que Eduardo sempre questionava não terem tirado de lá desde a desavença com os dragões –, a casa abandonada do Líder Comum, e a glória dos visitantes: as estradas para sair dali.

Talvez o maior indicador de riqueza não fosse o calçamento, já que a estrada para o castelo também era de chão batido. Tendas era vizinha da Casa Real Humana, nome do povoado que continha as vilas com todos os aparentados da nobreza, funcionários da corte e claro, o Palácio Real e centro do poder político que comandava Dhomini-Dorijan.

Sem dúvidas, o luxo em Dhomini-Dorijan era o telhado da rainha com placas mágicas que recebiam bênçãos de Taor e convertiam em magia para o funcionamento de todo tipo de aparelho e quinquilharia criados pelo Consenso. O início do movimento dessas placas ao refulgir do primeiro brilho de Taor na manhã era o espetáculo esperado pelas meninas. Se pudessem ficar ali testemunhariam o telhado da rainha mover-se de acordo com o andar de Taor, mas já estavam abusando da sorte de não serem flagradas. O rangido da porta de uma casa vizinha lembrou-as do risco e voltaram rapidamente para dentro.

- Não viu não! – riram

***

O salão do trono, repleto de criaturas sonolentas fedia uma mistura de circo abandonado, chiqueiro, pardieiro. O Chefe da Guarda Real entrou no recinto e portas metálicas foram trancadas as suas costas, prendendo-o ali dentro. Acostumado a fingir não incomodar-se com o mau cheiro encheu os pulmões de ar para anunciar:

- Rainha de Dhomini-Dorijan, infelizmente está confirmado nosso temor, o culto a Rosa Púrpura persiste. Devotos fiéis reúnem-se num povoado próximo.

- Qual?

O Chefe Caça Escalpos poderia ter aberto uma das janelas e apontado o povoado, mas conhecendo os procedimentos indicou Tendas no mapa.

- Tendas, o povoado dos feirantes! Certamente os vendedores de lá circulando por Dhomini-Dorijan trouxeram a novidade do culto à Rosa. Eu lhe disse que deveria ocupar a Guarda Real do transporte comercial, mas você mesmo respondeu que treina soldados e não mascates! Quem é o Líder Comum de Tendas?

- O último foi Silvio, desaparecido quando Pedra Branca partiu-se, desde então não há um substituto.

- Jura que não o substituímos ainda?

Prevendo um jorro de fúria da Rainha, o homem tratou logo de acrescentar uma boa notícia.

- Mas já identificamos os membros do culto.

- Então quando fizerem a inspeção de rotina por crianças proibidas no povoado de Tendas acusem essas pessoas de infringir alguma regra e eliminem todos.

Chefe Caça Escalpos assentiu e se retirou ansioso por respirar ar puro.


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