O Rei Dragão - parte 10: Pedra Branca

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Sabrina ajudou Eduardo amassando a folha gosmenta numa pedra bem lavada enquanto ele separava gema despejando a clara dos ovos no capacete do falecido guarda. Quem inventou a receita descartou a gema, senão teria um odor característico no creme, por isso entornavam a gema crua na boca. Sabrina fazia uma carinha engraçada de nojo e Beatriz convalescente engolia e voltava a cochilar.

- Aí eu vou ajudar fazer remédio pra Bê, aí você troca o curativo na perninha dela, aí ela vai ficar boa e todo mundo vai brincar com a Abelha! – Sabrina aliviava a tensão tagarelando.

Há alguns dias Eduardo repetia o tratamento iniciado pelo invasor misterioso, a vermelhidão recuou e a pele cicatrizara. Uma parte de Eduardo ainda sentia medo de terem um desconhecido à espreita, embora precisassem de suas ofertas em muitos casos. Por mais que se mantivesse atento era impossível estar em todos os lugares, então, inesperadamente encontravam material para o creme curativo e até comida. Impossível esconder o fenômeno de Sabrina que ficou enlouquecida fantasiando mil soluções para o mistério. A mais repetida só poderia ser...

- Um dragão! Grau! Grau! Brincando de esconde-esconde, aparece dragão! – e sacudia as folhas que Eduardo amarrou nas pontas improvisando asas de fantasia – Eu e a Bê vamos pegar você!

Caso Eduardo soubesse ler, identificaria entre as ofertas um bilhete de apresentação. Estava rabiscado ao lado de uma ilustração infantil: Oi meu nome é Op-Hal e eu ta bem naci no ano do...

***

- Dragão! O oposto do homem? Rival? Quem aqui questionará a intenção da Divindade ao criar duas criaturas portadoras de inteligência e cobiçosas de poder sobre as outras? – Mutemuia questionou, e nenhum dos Conselheiros respondeu – Ninguém? Pois eu o farei.

Estavam no salão dos Notívagos uma classe de Conselheiros em um ciclo de estudos posterior ao ciclo básico dos Pequenos. Podiam atuar como ajudantes de outros Conselheiros de nível mais avançado, e também em projetos próprios, assistiam palestras dos Pensadores e varavam as noites em seus estudos, hábito que rendeu o título na hierarquia. No momento, tinham a honra de assistir uma palestra da Administradora da Casa, o máximo cargo do Consenso. Mutemuia posicionou-se sob a luz diurna que atravessava a clarabóia e abriu dramaticamente os braços. Os bastonetes dos Notívagos riscavam anotações em seus blocos e o raspar do carvão no papel era ruído característico desse ambiente.

- Ó Divindade, um conflito paira sobre minha determinação de acreditar em seu pleno amor, tenho ciúmes dos dragões, confesso. Constituem o dom do pensamento razão e emoção, preencheu-nos um tanto mais de razão e reservou a eles o temperamento passional. Desejei intimamente que a humanidade fosse única detentora de ambos. A ofendi? – voltou o olhar ao público e cruzou as mãos no busto - Da razão advém todas as habilidades propagadas pelo Consenso menos a causa de nossa fundação. Quem é capaz de citar a ciência a que Erasmo Rohr dedicou sua vida?

Ela consentiu a fala de um tímido Notívago que ergueu a mão.

- Erasmo Rohr, dedicava-se a ana ta ta tomia humana, draconiana e animal. Fa fundou o Consenso e convidou colegas estudiosos de várias áreas para que em conjunto, mentes ba ba brilhantes pudessem apontar a fonte da força dos dragões, pois nenhuma parte da estrutura fis... fis... física dos dragões explicava seus da do dotes ma mágicos.

- Magia! Erasmo Rohr procurava uma explicação para a Magia! E até hoje, a propósito de todas as descobertas feitas pelo Consenso, ainda não respondemos a questão primordial. Enquanto nós, com o curto tempo de vida que gozamos precisamos utilizar da racionalidade em busca do aprimoramento de nosso meio de vida, os dragões, que podem viver milênios, possuem magia. Rebatam dizendo que herdamos a terra no final, e eu lanço a inveja maior como uma semente má em seus corações. Dragões foram arrebatados em seu corpo físico pela Divindade, levados a Eternidade pelo irmão degenerado Pedra Branca, então me respondam: nosso quinhão continua suficiente?

Um silêncio desconfortável abafou o ambiente, dragões significavam polêmica, mesmo extintos. Uma garota perguntou:

- Administradora, numa opinião pessoal, crê que Pedra Branca tenha capacidade de condenar almas ao limbo? A lenda diz que ele abre um buraco no céu e lança os condenados, todos nós já vimos Pedra Branca em seu disco celeste, e sabemos que a variação no formato do disco deve-se a posição deste em relação a Taor. O sombreamento do disco nunca foi a "porta do limbo" sendo aberta!

- Querida, sabemos porque pertencemos ao Consenso, qualquer outro em Dhomini-Dorijan afirma que navegar na direção do horizonte resulta na queda em um precipício sem fim, desde que os ensinamentos dos dragões foram refutados pela realeza humana. – a garota que perguntou enrubesceu e Mutemuia prosseguiu – Acreditamos com base nos conhecimentos que sussurram "isto é verdade" ou "não procede" em nosso consciente. Recordem que Pedra Branca possui magia, e desconhecemos a extensão desse dom. Pode sim, haver dentro da mente de Pedra Branca um portal entre o mundo material e imaterial, e ele discerne entre quem lançará do outro lado. Um sabido da vida de Pedra Branca antes de tornar-se o ser que acostumamos a vislumbrar no céu é que foi um dragão vermelho irascível e voluntarioso, discordava da aproximação de seus parentes e humanos, quanto mais essas espécies se uniam essa rejeição aumentava. Pedra Branca na época chamava-se Higé, e foi convocado por Darouix o Rei dos Dragões na época para ser advertido sobre seu comportamento. Higé manteve a opinião e o Rei ordenou que procurasse um território longínquo para a humanidade onde não causasse atritos entre os reinados. Assim, ele exilou-se em Pedra Branca, o corpo celeste que observamos no céu com nossas parafernálias telescópicas. Higé foi rebatizado com o nome do lugar, Pedra Branca, ao transmutar num singular dragão branco, que mesmo a olho nu conseguimos observar movimentando em seu terreno distante. Agora, faça a pergunta que eu quero ouvir!

A Notívaga sentiu novamente a face arder ao falar:

- A senhora menciona que observamos Higé ou Pedra Branca no céu, e na verdade ele está desaparecido desde o ano do dragão. Os Pequenos, inclusive nós, Notívagos somos jovens demais para a plena compreensão do que ocorreu nesse período. Poderia agraciar-nos com sua versão?

- Pare de tremer, estou satisfeita com a proposição. Jovens demais, mas aposto que recordam a barriga roncar de fome como fosse ontem! Se o povo não tivesse ideias criativas para vencer a recessão, a Casa Real teria exterminado a humanidade em nome de uma rixa! – modulou para um tom de narrativa impessoal – Antes de partir, Higé profetizou que homens verteriam sangue draconiano e ele seria a última bandeira em defesa da espécie. As palavras confirmaram-se na desavença entre os reis Dorijan e Dhomini que iniciou o período de caça aos dragões. Antes que fossem exterminados Pedra Branca, em nome da Divindade arrebatou os sobreviventes para a Eternidade e por conta própria jurou vingança. Algumas vezes retornou aqui para incendiar plantações até a Casa Real proibir as festas de colheita que pareciam atraí-lo. No ano que chamamos o ano do dragão, ele fez diferente, não cuspiu fogo pelo contrário! Previu fartura e anunciou que tudo que nascesse naquele ano seria para a glória dos dragões. Temendo o retorno dos rivais a Casa Real ordenou que quaisquer crias de animais, colheitas e sobretudo crianças nascidas no ano do dragão teriam que ser sacrificadas.

A curiosidade deu lugar a uma atmosfera pesada, Mutemuia sabia que essa seria a conclusão da palestra, então deixou o recinto e os Notívagos imersos em lembranças e reflexões.

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