O Rei Dragão - parte 11: Tairone

281 23 3
                                    

A Casa Real humana desconhecia o fato, mas o extermínio dos nascidos no ano do dragão criou uma rede secreta de informantes formada pelos pais das crianças mortas por toda Domini-Dorijan. Apesar da proibição de sinalizadores, o boca a boca entre informantes dos povoados fora útil em algumas ocasiões, embora o plano tardio não tenha evitado o sofrimento dos familiares das crianças. Eles preveniam sobre inspeções, viagens através do terreno de conhecidos ou visitas a povoados com objetivos de obter recursou materiais.

Numa trilha pouco usada, nos limites de Sargos, um centauro procurava uma palavra, murmurando como se sua égua Ava pudesse compreendê-lo "filhos cujos pais morreram são chamados órfãos, nenhum nome define pais que perderam seus filhos", Tairone não possuía uma explicação para si mesmo, para sua solidão.

Cumprindo sua parte, Tairone obrigou sua égua a nadar para outra margem do rio que separava os povoados Sargos e Bordo da Terra. A travessia causava-lhe dor fantasma no braço ausente, porém Tairone sabia que era o reflexo das memórias dolorosas despertadas por ter de levar o aviso. Quase três dias após o encontro com África, localizou Nemo em sua casa, remexendo ferragens recolhidas de objetos do Consenso. A esposa do bordês observava sentada num barril e parecia divertir-se com a criatividade do marido. Assim que avistou o centauro, mandou-a se recolher no interior da casa.

Nemo recepcionou Tairone com seu modo expansivo e simpático.

- Resgatei essa coisa duma carcaça de embarcação do Consenso! Era uma porcaria, claro, sabe-se lá como navegava! Agora se eu conseguir consertar e instalar num dos nossos do Bordo...

- Isso deve precisar de um taore para funcionar, dificilmente liberarão que você utilize algum taore do Bordo para mover uma embarcação pequena. – Tairone respondeu enquanto estendia uma garrafa de seus vinhos como presente – A propósito, provavelmente a Guarda Real vai recolher ou destruir se flagrá-lo, melhor esconder.

Nemo entornou quase metade da garrafa direto na garganta, limpou a boca nos pelos do braço e estreitou os olhos preparando-se para ouvir. Nos últimos anos Tairone e Nemo ficaram amigos. Após oferecer como presente vinho e azeite trazidos de suas terras, o centauro começou a repetir as notícias sobre a movimentação da Guarda Real.

- Aconteceu uma ofensiva em Tendas, famílias inteiras foram mortas.

- Por que Tendas? É um povoado pacífico e muito pobre, tem uma única vila lá onde tem o mercado, o resto é desértico ou estrada.

- Nunca estive em Tendas, mas sei do que fala. Quando fecho negócio com um mascate de Tendas no lugar de um grande vendedor de Porto Seco, acredite, é mais para ajudá-los. Povo sofrido, terra ruim, seca. E próximos demais da Casa Real, tudo de mau eles sofrem primeiro, pra dar exemplo.

- O que o Líder Comum alegou a população?

- Desde o ano do dragão eles estão sem. Soube que um feirante enfrentou a Guarda, chegou a matar uns deles inclusive.

- Espero, por Taor, que tenha sido o Chefe.

- O informante disse que o feirante roubou um maesel, fugiu na direção Espinheiro onde foi cercado e morto pelos guardas. Tem mais, primeiro comentaram que ele não estava sozinho, depois negaram por medo. Uma acompanhante de cabelos louros amarrados com fitas e bastante pequena.

Nemo ficou profundamente consternado. Expirou todo ar dos pulmões e arrastou os pés no chão como se procurasse o chão que lhe falta ao ouvir a declaração de Tairone.

- Uma menina! – Nemo chorou – Esse tempo todo ele escondia uma menina... E agora... Tairone, quem sabe existam outros em qualquer lugar?

- O mesmo pensamento da Casa Real. Organizaram-se por um dia e saíram varrendo cada vila e draquel2* pelo caminho, avançando com maesel de terra, maesel voadores e balões. Já devem estar sobre a fronteira de Porto Seco dispersando em direção a diversas vilas, eles tem pressa. Proteja os seus.

Um típico habitante do Bordo, Nemo era muito alto de pele curtida e escura, olhos verdes claríssimos marcados por cílios grossos, bateu a mão magra na janela, a esposa não precisava ouvir escondida a sua resposta ao centauro.

- Não! Após essa notícia, eu grito não! Se um simples feirante ousou enfrentar a Guarda, eu recuso me esconder, chega! Se o poder da realeza advém da Divindade, eu recuso a Divindade também! O que ofereceríamos para ter de volta o que perdemos naquele ano? Essa menina de Tendas era minha, era sua, de todos nós e a perdemos, aconteceu outra vez. Cresceu por cinco anos, já começo a sonhar com o que ela deve ter visto... – colou o rosto ao da esposa – Tinha fitas no cabelo, como você teria gostado de amarrá-las, querida! Vou para Tendas, quero percorrer seus últimos passos com meus pés, se a Guarda Real não vier atrás de mim baterei à porta da rainha e a enfrentarei!

Assustada, a esposa respondeu num fio de voz:

- E morrerá! De que adianta, nada traria de volta...

- Se formos discretos, não nos perceberão. – a fala de Tairone surpreendeu Nemo, que não esperava que o amigo ousasse seguí-lo nessa empresa – Podemos viajar como mercadores.

Em seguida combinaram os detalhes da viagem, Nemo desceria o rio com seu barco para transmitir a informação ao próximo membro da rede, assim que voltasse viajariam para Tendas.

Centauros são pouco sociáveis e evitam ser vistos com os pés no chão, por isso Nemo acomodou-o na casa do barco. Logo que ficou só apeou e esticou o corpo, andou de um lado para o outro esperando as ideias cessarem e o sono vir. Por fim deitou no chão duro e sonhou que Ava trotava lentamente entre suas parreiras e em seu colo Tairone tinha uma garotinha que arrancava uvas e ria enquanto o sumo lhe escorria pelo queixo.

*2draquel – é o nome dado a unidade territorial ocupada por um ser racional que opta pelo estilo de vida selvagem. Draquéis independentes são uma herança do modo de vida dragão. Uma montanha, mata, caverna podem servir como um draquel, por exemplo.

O Rei DragãoOnde histórias criam vida. Descubra agora