O Rei Dragão - parte 19: Nízor

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Como acontecera nas cinco manhãs anteriores Mutemuia despertou enquanto o Notívago gago roncava e remexia na cama como uma criança dormindo. Ela sorriu e pensou que precisariam diminuir o ritmo ou prejudicaria a preparação do jovem para progredir de posição no Consenso, tocou os próprios lábios inchados de tanto ser beijada "por outro lado, ele tem aprendido bastante comigo". Seu último relacionamento fora com um Pensador, e ela era a jovem deslumbrada, ele o parceiro experiente. Durante anos de seus estudos iniciais mantiveram o relacionamento, que esfriou com a promoção surpreendente de Mutemuia a Administração, a qual veio dele um dos poucos votos contra. Para evitar a convivência sem deixar o Consenso, ele requereu ser Líder Comum na primeira vila do povoado de Teupos onde surgiu oportunidade de exercer o cargo.

Após um longo período de solidão esses cinco dias já bastavam-lhe como momentos de felicidade, caso durasse apenas isso.

Mutemuia levantou e se preparou para o desjejum da Casa de Rohr, a primeira refeição do dia era feita pela maioria dos moradores exceto os Notívagos, por razões compreensíveis, e os Pequenos que estivessem na vez da escala de tarefas. Escolheu a chamativa capa vermelha, passou rápido pela sala de banho e Alis já havia estado lá, então jogou apenas água no rosto, na cabeça raspada, no corpo e se apressou nas escadas rumo ao refeitório. Como sempre acontecia ao entrar todos os homens e mulheres mais jovens do que ela levantaram-se em respeito ao seu cargo. Há muito Mutemuia já havia abolido os lugares marcados, detestava a monotonia de ficar ao lado de quem não lhe interessava por conveniência, porém foram inevitáveis as senhoras que a abordaram para conversar. Foi uma hora interminável de pedido de verbas para reforma de salas particulares, ao fim do colóquio ao ter que responder sim ou não, disse que necessitaria estudar caso a caso com atenção num momento oportuno. Nisso, Alis, sentada quatro mesas à frente terminava de chupar uma laranja e já estava de saída, indo trabalhar, então Mutemuia cumprimentou-a discretamente. Sua amiga a olhou como se dissesse "E aí, nada?" sem verbalizar respondeu "Nada".

Elas estavam em meio a uma crise de ansiedade, devido ao atraso da liberação a tropa para adentrar o Espinheiro, todos os dias vinham mensageiros da rainha saber notícias e a Administradora enviava sempre a mesma resposta: precisamos concluir a estratégia. Isso servia inclusive de justificativa para o prolongamento da estadia de Mauro na Casa de Rohr. Desse modo submetiam perigosamente a paciência da rainha a teste, porquê enumerando os fatos: a confirmação do culto a princesa exilada, o incidente de Tendas a deixaram sentindo-se ameaçada em sua posição suprema. Além disso, a excursão dos inspetores gerou uma grande insatisfação dos súditos abastados de diversos povoados que pressionaram seus Líderes Comuns com reclamações que por sua vez voltaram-nas para a rainha. E claro, a Rainha Rúbia despejava de volta a Mutemuia.

Para completar África estava demorando muito a responder, ela havia se comprometido em convencer Ri-Tha a utilizar a escama de Córneco em favor da causa e informar o que aguarda por trás da proteção do Espinheiro. Ri-Tha também inclui-se no Culto a Rosa, porém, a beldade de Sargos até então relutava em oferecer tal recurso, nunca por egoísmo, e sim por acatar a responsabilidade sobre o dom da premonição como tem feito cada membro da família que esteve em posse da escama. Cabia à África fazê-la a colaborar com o grupo, que escondido sob o véu do misticismo planejava um golpe para derrubar a Casa Real Humana e restabelecer novas diretrizes para o Consenso em prol da expansão do acesso ao conhecimento, como era feito na sociedade dos dragões, como efeito, uma redistribuição justa de taores e benefícios da tecnologia. Mutemuia lamentava os meandros obscuros da revolução, apesar de acreditar na necessidade de realizá-la, sobretudo sua consciência pesava pelas vidas perdidas em Tendas, aliviando-se em saber que nenhum conflito nos outros povoados resultou em tragédia.

Contudo, crianças em Tendas foi o primeiro boato refutado pela Administradora, quem dera pudesse acreditar! Nem o testemunho de Mauro sob as Reza-a-Taor a convenceu, "impossível, dois homens mortos com veneno de dragão, Mauro teve sorte da quantidade que sobrara ter sido insuficiente para matar, apenas causou essa alucinação". Depois do terror do ano do dragão, sentia uma culpa insuportável. A Casa Real, embora contasse com o talento de Mauro para praticar maldades, não possuía visão estratégica para invadir todos os povoados ao mesmo tempo. O Consenso possuía os registros cartográficos realizados por dragões após seus voos sobre a Terra de Amirtréia, o nome do mundo antes do rebatizamento como Dhomini-Dorijan, em referência ao Tratado com nome dos Reis Dhomini e Dorijan repartindo a Terra entre um continente para cada espécie. Sendo que Oferta, a ilha na extremidade de Dorijan, segundo os dragões, viajaria pelo mar e um dia, integraria-se a Dhomini pelo outro lado da Terra. "Terra de Amirtréia é redonda e viaja no vazio, como Pedra Branca" afirmou o dragão dourado Linus em seu livro.

A essa cultura rechaçada os covardes da realeza recorreram no intuito de impedir o retorno da espécie que a produziu. O incrível mapa da localização e extensão de todos os povos produzido pelo Consenso, só foi possível com base na cartografia draconiana. Então foi feito, e usado para exterminar crianças sem dar chances de escapatória, infalível.

Esses pensamentos guiaram os pés de Mutemuia ao centro do pátio interno da Casa, ali foi feito um belo projeto paisagístico valorizando uma gloriosa escultura de Erasmo Rohr, bem no centro. Passou direto pela figura e foi admirar uma menor, feita de metal. A obra de arte consistia de uma esfera de bronze lustroso e avermelhado representando Taor, cercada de criancinhas que a adoravam como uma mamãe amada, um monumento às crianças que morreram naquele lugar.

Na ocasião do ataque da Guarda Real, algumas famílias correram para as sedes dos líderes comuns e lógico a Casa de Rohr, em busca de refúgio na neutralidade dos Conselheiros. Desrespeitando os acordos, os guardas invadiram as propriedades do Consenso espalhadas pelos povoados e derramaram o sangue inocente sem fazer cerimônia. Na Casa de Rohr, aconteceu um pouco diferente, os pais cercados por Guardiões não foram tocados, no entanto a imparcialidade deles não parecia menos apavorante, pois eles não os machucavam, mantinham o cerco e impediam a fuga. Escoltados caminharam até o pátio externo da Casa de Rohr com os filhos nos braços. Um Guarda da rainha flagrou a cena, disse que não seria uma missão com prisioneiros e foi atrás. No caminho outros Guardas da realeza juntaram-se a ele, e chegando ao pátio, a discussão beirava a violência, entre Guardas e Guardiões, com as famílias entre eles implorando misericórdia aos bebês. Os guardiões não queriam matar tampouco repassar prisioneiros. Quando as lanças se chocaram, um dos pais berrou a regra dos Conselheiros de que o que pisasse o chão da Casa pertenceria a ela.

- Melhor criados pelo Consenso do que mortos!

Juntos arrombaram a porta e deitaram os bebês no mármore branco, formando uma barreira de pais e mães fechando a abertura com seus corpos. Haviam vencido, os Guardas da rainha não poderiam tocar os bebês, a menos que sacrificassem sua posição de Guardas. Nízor, da Guarda Real, habilidoso com lanças livrou-se dos Guardiões com que lutara e sem dificuldade matou os quatro pais e as três mães. Todos estacaram esperando o que ia acontecer, Nízor teria que tomar uma decisão.

Deu um passo adiante, pisou o mármore branco e cumpriu a terrível missão. Aquilo foi candidato a Conselheiro assassinando candidatos a Conselheiros, o homem foi preso pelos Guardiões e levado diante de Mutemuia. Ela quis condená-lo a morte, porém, em tese, Nízor nada fez de errado, já que veio como um cumpridor de ordens, e tinha direito de acesso ao Consenso mediante teste. O caso gerou uma grande polêmica no Consenso, porém, nem mesmo algo tão grave poderia invalidar a primeira regra da Casa, ou seriam desmoralizados. Todos se reuniram para testemunhar a Administradora inserindo os cogumelos na boca do preso. Ele ficou vermelho, salivou um bocado, sem perder a consciência e alucinar sequer um instante, venceu uma enorme quantidade da substância provando seus dotes de foco e concentração. Infelizmente foi aprovado e levado a julgamento interno como Conselheiro, o que redimia tudo o que fez na vida pregressa.

Tiveram que aceitá-lo. Cinco anos passados, ela sentiu as lágrimas escorrerem tão condoídas quanto naquela ocasião, ao ver o sangue manchar o mármore branco e a história de uma geração.

- Administradora?

Tirou-a do devaneio justamente a voz de Nízor. Parado ali, como se tivesse esquecido sua correlação com a escultura próxima e eles. Teve vontade de dar-lhe um tapa e respondeu:

- Sim.

- Sem querer ser intrometido, muito se especula a respeito do atraso da missão ao Espinheiro. Venho solicitar – fez uma mesura antiquada e mais apropriada no trato com nobres – permissão para estar com eles, posso ajudar e rogo que me permita participar.

"Não você não pode, a única ordem que tenho é que suma! Desapareça!" ela pensou que tanto ele quanto Mauro eram monstros sem coração. Porém para completar a revolução precisaria confiar na própria intuição sobre a capacidade de mudança pela sabedoria, que a faziam ter esperança de que, diferentemente de Nízor, aquela sua recente amiga Alis e Caça Escalpos teriam salvação.

- Não teria tempo de preparar-se, vá até um mensageiro e peça que avisem ao Chefe Mauro que acabei de permitir a invasão.


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