O Rei Dragão - parte 5: Biso e Bisa

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No dia seguinte o maesel do Guarda deixado para trás estava tão rebelde que precisou ser preso numa árvore da área externa do Palácio Real. O tratador tentou de toda maneira acalmá-lo sem sucesso. O bicho apoiava as patas dianteiras na madeira e sem força suficiente para romper o largo tronco, conseguia, ao menos, arrancar uns galhos com a tromba e atirar perigosamente nas pessoas. Caso seus relinchos pudessem ser ouvidos do aposento real já estaria morto. Para ele separações sempre foram difíceis de superar, não compreendia o motivo de ter sido trazido sem seu montador e passou aqueles dois dias recusando comer e dormir. Até que um ponto crescente na estrada pôs fim ao seu sofrimento. Finalmente seu montador voltou caminhando com dificuldade, no final de suas energias caiu aos pés do maesel.

O pesado animal delicadamente espetou a garra pontiaguda e rolou o homem de face para cima, percebeu que estava apenas desmaiado. Procurou algo para acordá-lo, sacudiu a cabeça contente de perceber que deixaram água para ele em um balde. Encheu a tromba de água e despejou no rosto do homem. Dessa vez o Guarda não levara um baita susto como das outras vezes que o maesel fizera essa gracinha. O Guarda limitou-se a piscar debilmente e esticou a corrente que prendia sua coleira na árvore. Mesmo exaurido o homem sabia que não poderia negar liberdade ao animal mais leal que teve a honra de montar, procurou a chave entre as roupas, libertou o maesel da coleira e desmaiou outra vez.

Ocupado com a minuciosa revista dos Guardas perfilados no pátio interno do Palácio, Caça Escalpos estava prestes a seguir com a comitiva de inspeção para Tendas, sem sequer pensar na possibilidade de volta do Guarda. Montado em seu próprio maesel, repetiu os detalhes da missão aos Guardas e acenou ao porteiro para abrir o portão principal. Para sua surpresa, uma dupla improvável aguardava-os do outro lado, o maesel, guiado pelo treinamento que comitivas são seu lugar, reuniu-se aos outros animais tendo seu montador inconsciente nas costas.

***

A Bisa ensinou Beatriz e Sabrina a confeccionar as próprias bonecas, foi uma tarde bastante divertida. Sabrina concluiu primeiro e no último detalhe Beatriz percebeu que faltava um botão para ser o olho esquerdo.

- Ah, Bê, tenho um botão aqui na caixa para sua boneca.

- Não tem um botão igual aqui na caixinha, Bisa.

- Esses botões são do meu vestido, ele está no varal lá fora, use um da caixa mesmo, amanhã eu troco para você.

Beatriz começou uma cara de choro e Eduardo se intrometeu:

- Deixa que eu busco.

Eduardo já planejava sair para dar uma olhada na movimentação na rua, esperava ansioso para que dormissem e pudesse andar pela vila sem ser visto. Nada demais, gostava de gastar energia fazendo isso, às vezes. Localizou no varal o vestido da Avó, o cheiro de roupa limpa lembrava a época que ela dividia essa tarefa com a mãe dele. "Que saudades!" pensou e puxou um botão com força fazendo as linhas rebentarem facilmente.

Uma voz masculina despejando ordens chamou sua atenção. O povo de Tendas nunca falava entre si nesse tom autoritário, nem chefes e patrões, o povo dali tem natureza submissa. Chegou perto do muro e viu, algumas ruas abaixo, um homem com uniforme da Guarda montado num maesel escamoso. Por sorte o sujeito estava virado noutra direção, assim Eduardo ganhou tempo de entrar para avisar a família. As visitas da Guarda – embora nos últimos tempos fossem cada vez mais raras - eram sempre surpresa, um decreto proibia a existência de um vigia, sino ou qualquer artifício de aviso à população sobre a aproximação da Guarda Real. Por isso, morar no alto da ladeira era uma vantagem para a família das gêmeas.

- Vós, precisamos nos preparar, a Guarda Real está na cidade e passando de casa em casa.

- Não usaram a trombeta, nem mensageiro anunciando... Estão mal intencionados. – a Avó levou a mão ao peito.

Devido o atrofiamento dos músculos, o Avô logo pediu:

- Me ajudem aqui, as meninas precisam entrar no esconderijo!

Eduardo segurou o Avô enquanto a Avó as ajudou a passar pelo buraco. Antes de descer cada uma abraçou e beijou a Bisa e o Biso.

- Vai dar tudo certo como das outras vezes, só precisam ficar bem quietinhas, certo magrelas? – disse Eduardo antes de recolocar a tampa do esconderijo.

Lá embaixo era escuro abafado e assustador. Não choraram ali dentro como foi ensinado. Permaneceram abraçadas, sentindo os corações baterem acelerados, de olhos fechados, só esperando acabar e ganhar colo. Era impossível ouvir o exterior.

Ainda terminavam de reacomodar o Avô quando a porta foi arrombada e entraram Caça Escalpos com dois Guardas.

- Por compaixão e cuidado com seu povo, a Rainha envia sua Guarda Real em busca de crianças da geração ruim e demais perigos, assim como faz o plantador que arranca com as próprias mãos as ervas daninhas em benefício de todos que banquetearão o alimento benéfico. – o Guarda anunciou como de praxe.

- Uma cena bonita, o neto cuidando de seu avô! Lembro-me de ter estado nessa casa, cheguei a pensar que não o veria novamente, ancião. Com tanto zelo, durará para ver bisnetos! Hein?

- Precisamos mudar a posição dele, às vezes sente dores. – disse Eduardo.

Um dos Guardas raspou a ponta da bota num tubo sob a parte da cama ocupada pelo Avô.

- Seu penico é chique, velho.

- É uma fossa profunda, tem um barril lá embaixo e quando o Avô acumula muita... eu puxo com cordas e despejo no lugar para onde vai a mesma coisa do resto do povo. Quer que eu abra?

O Chefe sempre dispensa situações com odores incômodos, basta-lhe a sala do trono real.

- E brincar de bonecas ele precisa também?

Eduardo sentiu um calafrio, mas sua Avó manteve a calma.

- Sinto falta de minha falecida filha, assim eu recordo da época que ela era menina.

Caça Escalpos mirou os olhos de predador na única decoração nas paredes, ficou de costas para o objeto e perguntou:

- Isso é culto àquele dragão verde?

- É uma relíquia falsa, vendida na feira aos montes. Estava no mesmo lugar em todas as inspeções sem que houvesse censura. – comentou o idoso, então Caça Escalpos o esbofeteou enquanto guardas continham Eduardo.

- Se tivesse visto alguma vez que se cultua a Ururau aqui, já teriam queimado há muito tempo!

- Eduardo, resista. – aconselhou o Avô com sua voz rouca.

Caça Escalpos trespassou o Avô com sua lança e surpreendentemente a Avó reagiu agarrando a cabeça do invasor e jogando seu corpo por cima começou a sufocar o homem no colchão. Os Guardas esperavam que o Chefe se desvencilhasse com facilidade de uma senhora, o que não aconteceu. Um deles soltou Eduardo para forçar a Avó a deixar o Chefe respirar. Uma das mãos livres era apenas o que Eduardo precisava.

Pegou a arma da família, escondido atrás da escama, havia o dente de dragão preso a um cabo de punhal. Um único arranhão no braço do Guarda que o prendia foi suficiente para morte instantânea. Um segundo golpe nas costas do outro Guarda provocou o mesmo resultado, porém Eduardo não foi rápido o suficiente para poupar a Avó do mesmo ataque sofrido pelo marido. Eduardo fincou o dente de dragão na axila de Caça Escalpos que tombou convulsionando em espasmos de dor. Mesmo imobilizado pelo veneno, ele ria, gargalhava.

- Falsas anh? Pena que gastou o veneno antes da minha vez, encontrar a morte num dragão depois de inúmeras eras seria uma honra!

Eduardo rapidamente velou os corpos dos Avós com a coberta, empurrou o casal para a outra borda da cama, ergueu o colchão e puxou as gêmeas do buraco. Vê-las encerrou a crise de riso de Caça Escalpos, que gritou mil maldições e xingamentos enquanto o trio escapava da casa.

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