Naquele dia, lembro que pela primeira vez agradeci a qualquer coisa – talvez, a própria sorte. Fui grata por Katherine não ter demorado com Joan, e fui grata pelo silêncio no caminho de volta. Mas, principalmente, por Kate não ter tentando bancar a tutora preocupada ao chegarmos. Ela simplesmente me deixou ir, sem dizer nada quando saltei do carro antes mesmo de parar por completo. Sua mente estava ferida demais com a morte iminente e cada vez mais próxima da abadessa e seu coração, compadecido da minha situação.
Pobre menina – jovem demais, ferida demais, manchada demais. Eu não me via dessa forma, pois isso invocava pena. Eu não era uma vítima. Vítimas não mordem de volta, não sujam as mãos, não fazem pior. Mas assim como todas as vezes antes não fiz nada para mudar a visão da mulher sobre mim: que continuasse me vendo como uma criança traumatizada e quebrada, como algo de idade ainda tão tenra que deveria ser puro e, invés disso, é completamente corrompido. Sua compaixão inata e sua gentileza insensata eram constantemente usados ao meu favor ao me livrar de todas as brigas que me meti, mesmo depois de Greta.
Uma vez mais não faria diferença.
Em uma tarde de julho, a maioria estava do lado de fora. Os corredores e escadas tinham pouco ou nenhum barulho e meus pés conheciam bastante o caminho até o quarto da velha mulher. O que fariam com ele quando ela se fosse? A sala de Greta foi fechada e transformada em deposito – ninguém conseguia passar mais de três minutos ali dentro. Uns por saberem os pesadelos que aquelas paredes sussurravam, outros por imaginar. Seja qual fosse o destino do quarto e da posição de diretora do orfanato, eu sabia que teria a ver com Kate. Isso me tranquilizava. Ela era boa e cuidaria das outras meninas com dignidade.
Mesmo com meses desde que sua moradora se foi, o quarto de Joan ainda cheirava a velhice e doença. Havia algo de errado entrar ali sem a velha mulher na cama, os olhos desfocados e, ainda sim, inteligentes. Não esperavam que ela voltasse, eu já sabia, pois nem a enfermeira nem as costumeiras aparelhagens médicas estavam ali. Era só um quarto, como qualquer outro, como o meu. Uma cama simples, talvez uma janela maior, e um pequeno santuário, como um altar. Lá estava Jesus Cristo e sua mãe, Santa Maria. Ele não estava crucificado e sim em pé, os braços abertos e palmas para cima, tão branco e loiro quanto acreditavam que ele era. Ao seu lado, Maria tinha a feição plácida e amorosa, quase devota, a cabeça coberta inclinada em respeito ao filho. O rosto dela me prendeu mais tempo do que eu gostaria, uma órfã imaginando o amor de uma mãe, então quebrei o sentimento com desprezo e virei o rosto, me concentrando na base do altar.
Minha varinha era um alento constante, escondida dentro do meu coturno. Meus dedos formigaram para puxá-la, mas a lei idiota me faria ser expulsa de Hogwarts se eu fizesse isso. Então fiz pelo método trouxa e corri os dedos pela base, com calma, fechando os olhos para tampar o sentido traiçoeiro. Seria mais fácil sentir alguma fissura ou escutar algum som diferente dos demais e foi justamente ele que me denunciou. Uma pequena gavetinha na base fez um eco mínimo quando tamborilei os dedos ali. Tive que puxar a gaveta pela unha e prender a respiração pela poeira que se soltou das fissuras. Era claro que Joan não abria aquele compartimento a anos, imagino que desde que cheguei por aqui.
A gaveta era mais funda do que parecia, não tanto, mas era. Dentro dela, apenas um pano escuro, enrolado como uma pequena trouxa. O tecido era, notoriamente, uma das coisas mais caras (e mágicas) que eu havia colocado a mão – anos de escuridão não tiraram seu brilho, sua maciez. Sequer estava cheirando mal ou com qualquer sinal de traças ou mofo. A trouxa leve pesou uma tonelada na minha mão, mesmo que seu peso fosse tão pequeno. Aquele tecido havia sido parte de algo maior, isso era nítido pelo recorte desregulado. Uma manta, talvez? Quem sabe eu estivesse enrolada com ele quando cheguei, e Joan guardou um pequeno pedaço para esconder o resto.

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Corona II
FanfictionAlvo Dumbledore havia dito que algumas perguntas devem permanecer sem respostas e, na opinião de Malorie Lewis, ele estava certíssimo. Depois de ajudar a salvar a Pedra Filosofal de Lorde Voldemort (e de ter seu próprio confronto com o bruxo malign...