Legilimênte

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Quando ainda tinha seis anos, apenas alguns poucos meses depois de nos conhecermos, Lagrum me levou em minha primeira caçada. Ele já havia crescido o bastante na época (e se tornada exigente o suficiente) para não aceitar os pedaços duros de carne que eu tirava de meu prato nas esparsas refeições no Santa Maria. Ao pular minha janela pela primeira vez, ele já era um pouco maior do que meu braço e com a força necessária para caçar animais pequenos, como esquilos ou coelhos.

Isso tínhamos de sobra no pequeno bosque aos fundos o orfanato, afinal foi a base de sua dieta durante todos esses anos. Mas, para se alimentar, era necessário pegá-los primeiro. Animaizinhos rápidos e atentos, desenvolvidos em sua evolução para sobreviver e fugir de caçadores. Não foi em uma noite ou duas ou mesmo cinquenta que desenvolvi habilidades boas o suficiente para Lagrum parar de me xingar e me mandar ficar quieta, longe e sem atrapalhar.

Talvez você aprenda alguma coisa.

Eu sempre lhe respondia algo malcriado como "sim, até semana que vem vou conseguir abrir a boca duas vezes o tamanho da cabeça!", mas a verdade era que aprendi, sim. Me recolhi em meu lugar de observadora e não prestei muita atenção no momento do banquete, mas anotei cada detalhe – e o detalhe do detalhe – do bote de Lagrum dentro de mim. Em como deslizava de forma silenciosa e cautelosa pela grama, contra o vento e escondido pelas sombras. Em como parava, observava e o fazia por mais um tempo, imóvel, para a presa (se teve a impressão de ouvir algo), deixar para lá.

Então o ataque. Rápido e certeiro, ele conseguia arrancar o pescoço de pequenos animais de uma só vez e, à medida que crescia, pode o fazer com coisas muito maiores do que coelhos. Menos os dias em que se sentia preguiçoso: se fosse o caso, mordia e deixava a criatura fugir para morrer. Lagrum, porém, não usava muito de seu veneno para caçar – guardava para mim e para minhas necessidades.

Mas a questão é que aprendi. E aprendi bem até demais. A paciência, as etapas e a estratégia. Eu nunca os havia usado fora da floresta, longe da companhia de Lagrum, mas Flint exigia uma exceção. Para ele e seus pensamentos perversos, repugnantes direcionados para uma menina de doze anos. Para seus planos de me assustar, de me fazer arrepender ter pisado neste castelo. Por ele, eu abriria uma exceção. E Dumbledore que me perdoasse, mas sequer tentaria segurar o monstro dentro de mim.

Com cuidado, coloquei os livros no chão da escadaria enquanto fechava os olhos. Eu podia vê-lo sem eles. Podia enxergar sua presença por sua mente, por seu cheiro, pelo coração batendo. Já estávamos muito abaixo para o barulho da chuva atrapalhar de alguma coisa. Com um sorriso rasgado coroado de olhos em vermelho, soprei o ar. Meio pensamento fez com que as tochas e archotes se apagassem, mergulhando a masmorra em escuridão absoluta.

Marcus não recuou, para seu crédito, mesmo que eu sentisse a confusão dele. Não havia vento, só a umidade fria das pedras irradiando o frio do lado de fora. Engoli sua hesitação devagar, as duvidas no fundo de sua mente. Eu não poderia saber que ele estava lá, poderia? Flint havia ficado sabendo do ocorrido com Parkinson, mas eu não poderia fazer nada se ele fosse rápido o bastante, certo? Meus pés quase flutuaram em direção a câmera no meio do caminho até a sala comunal – silenciosos e precisos – onde o garoto espreitava atrás da porta aberta, e ainda parei para olhá-lo.

Negra, escura. Foi o nome que os Lewis me deram. Com certeza não foram influenciados pela minha pele, pálida e branca. Era pior, era mais fundo. Eles sabiam e morreram com essa certeza: havia algo em mim muito escuro, muito ruim. Algo em meus olhos, algo na minha alma, algo que veio comigo para esse mundo – ou era minha própria essência. Deixei que isso saísse de mim, que chegasse até Flint e entrasse em seus ossos. Seu coração batendo e o corte na respiração me disseram que consegui: sua adrenalina estava ativada, seu corpo pronto para correr e fugir.

Corona IIOnde histórias criam vida. Descubra agora