Capítulo 1

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Alois Kaufman mentia todos os dias, mais que a maioria das pessoas, e tinha bons motivos para isso. Não só por seu trabalho como barman, mas para se defender sempre que um idiota lhe vinha com alguma pergunta estúpida. Foi o caso de Franz Keller.

Era quase meio-dia e os fregueses habituais ocupavam a maioria das mesas: alguém comemorando o nascimento de um filho; outro poeta escrevendo o nonagésimo verso de guardanapo a ser entregue à nonagésima importunada da vez; um grupo de amigos simplesmente querendo relaxar e falar mal dos patrões, dos governantes ou de suas esposas.

Por trás do balcão, Alois contemplava a naturalidade com a qual todos despejavam as maiores infâmias e frustrações de suas cabeças entorpecidas. Sua mente, porém, permanecia na mesma tensão contínua. Com um metro e noventa, ele não era exatamente ágil ao abastecer os canecos, mas com o tempo aprendera a esbarrar menos nas mesas e contratara um ajudante para a função.

Foi então que Franz apareceu, trazendo consigo um pouco da lama e da neve do lado de fora e lançando a pergunta que o atingiu como um raio: ―Ei, quem era aquele que eu vi entrar pelos fundos ontem à tarde? Deviam ver como se desviava das poças, a bailarina! ―O bar inteiro o acompanhou, gargalhando.

Nesses momentos, sentia-se prestes a ter um ataque cardíaco, mas sempre se recompunha; suas vidas dependiam disso. Se pôs a rir também: ―Um baita de um janota, não? Mora de aluguel aqui faz tempo, mas não é de beber igual a vocês.

Como previa, o homem deixou de lado a curiosidade num piscar de olhos: ―Esses malditos! Como se beber café em vez de cerveja os fizesse superiores! ― Ele deu com o punho sobre o balcão.

Os amigos ao redor lhe davam tapinhas nas costas. Todos conheciam a história de como o farmacêutico fora deixado no altar, trocado por um jornalista de Viena. Ou talvez fosse um agiota, ou um gângster; ninguém sabia ao certo.

Alois sorriu ao vê-lo esquecido da pergunta e concentrado em virar o caneco. Logo a seguir, porém, ele continuou, a voz denunciando sua passagem por outro bar antes dali: ―Só de olhar pra aquele maricas me deu vontade de quebrá-lo ao meio!

Seu sangue parou nas veias; em meio a novas risadas, chegaram a lhe perguntar se poderiam cumprir o desejo do corno. Era urgente colocar um ponto final naquela história: ― Devia ter feito isso uns quinze anos atrás, com aquele outro. — comentou com a precisão de um dardo no centro do alvo.

Recomeçaram a galhofa em torno do homem. Franz pagou a conta e saiu batendo a porta. Se pelo menos não fosse tão estúpido, pensou, feliz que o assunto ali mudara para uma discussão sobre qual atriz de cinema era mais adorável, "a tetéia da Ginger Rogers" ou "a perfilada da Joan Crawford". Qualquer que fosse o resultado, pouco lhe interessava.

Atravessou a porta separando o bar do restante da casa. Nem precisou destampar a panela para o aroma do guisado preencher a cozinha. Arrumava os pratos e talheres sobre a mesa, olhando alternadamente para o relógio da parede e para a porta dos fundos.

Diante da demora, voltou ao balcão a tempo de se surpreender com o tal "janota" entrando pela porta da frente. Um arrepio tomou conta dele ao vê-lo, bem ali, em meio à freguesia mais embriagada, aqueles que nem as próprias esposas suportavam.

Mais baixo que ele e definitivamente mais gordo, Otto contornava as mesas com a pasta junto ao peito, pedindo licença e falhando completamente em evitar os cotovelos e pés do pessoal. Com sua barba escura bem aparada e o paletó bem alinhado, seria um bom partido, não fosse o seu jeito delicado e o seu desinteresse por senhoritas. ―Boa tarde. ― Seus olhos castanhos o miraram rapidamente ao passar.

Esperou até que os mais sóbrios (ou menos bêbados) tivessem ido embora e se virou para o ajudante: ― Fique aí, preciso resolver uma coisa.

Gerhard arregalou os olhos, as orelhas de abano despontando dos cabelos avermelhados: ―Não posso, senhor! Vou me atrasar para a aula! ― Ele tirava o caderno surrado debaixo do balcão.

Dispensou-o, indo à cozinha. O companheiro terminava de almoçar.

―Qual a sua desculpa desta vez? Por que não bateu na porta? ―falava o mais baixo que podia, mas sua expressão facial valia por si.

Otto desviou o olhar, limpando a boca com o guardanapo: —Eu bati, mas você não escutou. E olha — Se levantou da mesa, puxando o bolso da calça: ― Pedi desde ontem pra você costurar, agora...

―Não diga mais nada! ― Afastou a lata de farinha, tirando a cópia da chave. Entregou-a: ―E não me perca esta, pelo amor de Deus.

Seu companheiro o fitava com languidez: ―Querido, o que eu faria sem você? —Ele veio devagar e quando viu, já estava pendurado em seu pescoço lhe cobrindo de beijos.

Aceitou o carinho, mas não escondeu sua preocupação: ― O Franz te viu ontem; tive que dizer que você é um inquilino. ― A fome se fez presente em mais um ronco. Queria brigar com ele por atrasar seu almoço, mas aqueles olhos tão meigos... Suspirou: ― Agora que eles te viram entrar assim, vão assumir que temos muito mais intimidade.

Ele ergueu as sobrancelhas grossas: ―E não temos?

—Seu estúpido —Alois disse, se abaixando para beijá-lo nos lábios. Foi se servir do guisado e Otto repetiu o prato para acompanhá-lo.

—Ei, Al, estive pensando: e se você fizesse um desses cursos por correspondência? Vi um muito bom a caminho da faculdade; mecânica...

—Não tenho tempo. Klara perdeu a aliança de novo, sabia? Nem sei o que o Ludwig quer de Natal ainda... — O companheiro insistia na conversa enquanto Alois comia em silêncio, aquelas risadas ecoando em sua mente. Largou o garfo, a azia a atacá-lo. Então ele veio se despedir antes de pegar o turno da tarde:

―Não demoro, amor.

Lembrou então: ―Ei, pegou as provas?

―Ah, é! Obrigado! ― Ele voltou correndo, dando-lhe outro beijo ao sair.

"Só não esquece das calças por que não entra sem elas no bonde", refletiu. Guardava os pratos, pensando em seus planos para o dia seguinte. Geralmente não tinham tempo para essas coisas, mas aquela data era importante e ele desejava torná-la inesquecível. Que surpresa ele teria! Maquinava aquilo quando Barão subiu na janela à sua frente como uma grande bola de fogo peluda.

―Gato imbecil! —Se recuperou do susto, jogando o que restara do almoço numa vasilha para ele. Não tinha muito tempo até que a freguesia retornasse em peso após seus expedientes. Agasalhado, juntou o dinheiro da caixa registradora e caminhou até a floricultura. 


~~***~~

E aí, amados e amadas! O que acharam deste começo, estão gostando?

Esta história eu venho escrevendo desde 2016, mais ou menos. O booktrailer que eu postei no começo é de quando eu publiquei na Amazon por um breve período, mas retirei a edição pouco tempo depois para revisá-la.

A versão que você lê aqui é fruto de muita revisão e ajuda dos meus betas, pessoas muito especiais às quais eu agradeço do fundo do meu coração pela atenção e ajuda que me deram. ❤

Quanto à frequência de publicação, acredito que teremos dois capítulos por semana, todas as quartas e sextas-feiras! Se você gostou, por favor, comente, vote e adicione esta história a sua biblioteca para ser informado sempre que houver atualizações!

Obrigada! 🥰

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