Capítulo 21

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Otto suspirou, pisando no chão do que um dia fora sua sala de estar. Os cacos do vitrô do bar haviam se espalhado até ali, a luz do sol projetando um pequeno arco-íris sobre a parede encardida, ao lado de pichações como "MORRAM, VIADOS" e "COMEDOR DE CRIANCINHAS". Em suas vistas embaçadas elas não eram mais que borrões no papel de parede que mandara instalar quando decidiram viver juntos. Fechou os olhos, se lembrando do dia em trouxera as amostras das estampas para que Alois o ajudasse a escolher. Acabaram se decidindo pelo "Cor de areia". Fazia-o lembrar da praia em St. Tropez. O companheiro concordara na ocasião, sorrindo. "Temos nossa própria praia dentro de casa", ele dissera na ocasião. Riam e se abraçavam, sem saberem como tudo aquilo era frágil.

Voltou a fitar o vazio: o rádio não estava mais sobre a mesinha de canto, bem como a poltrona, o sofá. Nem mesmo o tapete onde Ludwig desenhava estava ali. Subiu, pisando nos cacos da janela com a sola dos sapatos. Afastou a porta arrombada, encontrando o cômodo praticamente vazio: haviam levado o guarda-roupa, as cômodas... Deixaram apenas a escrivaninha, de madeira inferior. Notou algo debaixo dela. Abaixou-se, puxando com cuidado: era uma fotografia. Fungou, as lágrimas fervendo em seus olhos de novo; era a fotografia que haviam tirado no parque de diversões, no aniversário de Ludwig. Levou a mão à boca, contendo o próprio soluço. Por pura sorte, o menino reparara num fotógrafo lambe-lambe e após muita insistência, os convencera.

Apertou a foto contra o peito. Tudo o que ele mais amava, se fora. Por mais que Wilhelm quisesse convencê-lo do contrário, nunca poderia viver sem eles. Não poderia viver sem saber se Ludwig seria um piloto, um cientista, ou um jogador de futebol. Nem sonhar em dias sem poder abraçar Alois, sem ouvi-lo resmungar pelo menor dos problemas para logo depois mostrar que na verdade os amava demais para poupá-los de sua rabugice. Procurou por mais fotos que pudessem ter ficado para trás, até se lembrar de que o companheiro pusera todas na mala. Na pressa, perdera aquela. Agora, era tudo o que sobrara da vida que poderiam ter tido. Desceu com ela até a adega.

Tinham levado quase tudo do bar, deixando apenas as bebidas que nem os alcóolatras mais ferrenhos aguentavam. Apanhou uma, virando-a de vez pelo gargalo. O álcool queimou sua garganta, mas após alguns goles, estava pronto para passar o dia inteiro fazendo aquilo.

Pegou a foto do bolso, a garrafa na outra mão, falando com ele: ―É, Al, aqueles estúpidos levaram até a cama, acredita? E eu pensando que tivessem nojo...

Cuspiu para o lado, tendo um acesso de riso: ―Era assim que você falava, não é? "Estúpido"...Estúpido isso, estúpido aquilo! Eu também sou um estúpido, não sou? Nem mesmo consegui pegar o Ludwig de volta.

Sua visão embaçava cada vez mais: ―É, eu sou um monte de bosta estúpida! Quão difícil era fugir, hein? Nada! Eu podia ter atropelado aqueles merdas, mas eu não fiz isso...Eles quase me caparam, sabia? Me fizeram deitar com uma pobre mulher, e antes, quase me mataram! Mas e daí, eu já estou morto! ― Piscou, sua cabeça pesando sobre o pescoço, os olhos lacrimejando: ―Vocês mereciam alguém melhor...

A terceira já estava pela metade quando sua cabeça doeu. Sentou no chão empoeirado, as garrafas vazias dançando em sua frente. É, talvez não tivesse sido uma boa ideia, refletiu. Foi a vez do estômago reclamar, fazendo-o se encolher. Todo o porão girava. Se viu caindo de bruços, sem forças sequer para manter os olhos abertos. Deixou por fim que eles se fechassem em um misto de náusea e lágrimas. Acordou com gosto de vômito na boca. Instintivamente, passou o dorso da mão no rosto, mas não havia nada a ser limpo ali, a não ser o piso. Estava deitado lateralmente, com a cabeça apoiada numa almofada, na posição que Alois dissera ser a ideal para evitar que alguém morresse asfixiado no próprio vômito, lembrava. Uma esperança aterradora se apossou dele ao pensar no companheiro. Teria sido ele ali, cuidando dele?

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