O clima natalino se pronunciava por todos os ambientes, das praças decoradas às casas com guirlandas e árvores enfeitadas. Na universidade era época de amigo-oculto para Otto, onde pelo menos três turmas o esperavam. Já para Alois, era época de "idiota-oculto", uma invenção dos próprios fregueses do bar em que se sorteavam nomes e o sorteado era obrigado a pagar a conta de quem o tirasse. Ele, é claro, ficava de olho na hora da revelação, não só para o caso de um calote, mas também pela segurança dos participantes:
—O meu idiota-oculto é alguém que foi corno, antes mesmo de casar... eu tô falando do Franz! — O bêbado do Fritz gargalhava com o que restava dos dentes.
Alois deu graças a Deus pelo outro não ter nem aparecido mais desde aquele dia. Preferiria deixá-lo pagar o preço por seus comentários infelizes, mas o covarde nunca ousaria fazer tais provocações cara a cara.
Gerhard chegou de mansinho, provavelmente prevendo a bronca que levaria. Alois não contrariou suas expectativas: —Já não bastava ter ido embora sem terminar de varrer, me aparece atrasado quase uma hora! ― Deu a volta no balcão e entregou a vassoura a ele.
—Perdão, Seu Alois! É que a minha mãe teve um bebê!
Cruzou os braços: —Não me diga.
—Ela é muito boa nisso.
Balançou a cabeça, maravilhado com a coragem do garoto em dizer aquilo. Estivesse ele fazendo troça ou não, resolveu deixar claro que não era cego: —E o torresmo que sumiu? Não me diga que é para o seu irmãozinho.
Até as sardas do menino empalideceram: — E-Eu tava sem almoço, minha mãe não sabe cozinhar direito, ainda mais grávida! Por favor, não me manda embora, tenho mais cinco irmãos em casa, ela vai me matar se eu perder esse emprego!
Alois estendeu as mãos sobre o balcão: detestava o aspecto faminto do ajudante, sempre a lembrá-lo de quando a fome grassava pelas cidades e pelos campos entrincheirados. —Não pode continuar trabalhando desse jeito.
Ele ergueu os olhos, aflito: —Por favor, senhor...
—Espere aqui. — Voltou com um copo de leite, uma maçã, uma fatia grossa de presunto num pão e uma dúzia de biscoitos.
O ajudante arregalou os olhos: —Tudo isso pra mim?!
—Sim, e não quero ver mais nada faltando. — disse, voltando para a cozinha.
Mais tarde, Otto retornou para casa atolado com os presentes que daria aos sobrinhos e Alois pensou na belíssima bicicleta que ele e Klara haviam comprado para Ludwig. Então se lembrou da alegria de Gerhard por um prato de biscoitos e sentiu uma pontada na garganta enquanto jantavam.
Otto, ao contrário, era só alegria: —Wilhelm acabou de telefonar. Falei que estamos ansiosos para amanhã! — Balançou de leve a cabeça, sem vontade de pensar naquilo.
—Devia visitar o seu pai também, Al. Quem sabe o Natal não esfriou os nervos dele?
Encarou-o, incrédulo: —Meu pai atirou uma comadre cheia de mijo em mim da última vez, por que diabos acha que ele ficaria feliz em me ver?
Ele pigarreou, sem graça: —Desculpe. É que você parecia triste, pensei que isso te animaria. —Seu companheiro se calou por um momento, voltando a encará-lo então: —E a Klara? Ela não te convidou para cear?
Hesitou, baixando o garfo: —Hum, não, nem tocou no assunto. O Natal traz recordações boas demais em comparação com a realidade dela agora. — Desviou o olhar, torcendo para ele deixar de lado aquela conversa.
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Dois Pais
Historical FictionÉ 1938 e a Áustria está prestes a se unir à Alemanha nazista em sua cruzada odiosa. Em meio a isso, Alois Kaufman, um barman veterano de guerra, guarda de todos um enorme segredo: seu relacionamento de dez anos com outro homem, Otto Vandenburg, um s...