Capítulo 16

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Otto dobrou o mapa, a galinha na brasa o fazendo considerar uma sorte ter sido escoteiro na infância. Mordeu a coxa, limpando um filete de água e gordura que escorria até sua barba.

Wilhelm chupava um osso, rindo: ―Achei que você rezaria pela alma da penosa antes ― ele brincava por ter vomitado ao vê-lo torcer o pescoço da ave.

―Não tem graça. ― respondeu. ―Eu penso, toda hora. Penso no desgraçado do Herman lendo aquela sentença... Bateram no Ludwig, na nossa frente. E depois, zombaram até o limite da paciência dele. ―Fez uma pausa: ―Eu devia ter ódio, mas não consigo. Só sinto raiva de mim mesmo, por ter deixado isso acontecer.

Ele suspirou: ―Não tem que odiá-los pra provar que estão errados, mas também não precisa ter raiva de si mesmo. Não é culpa sua.

Balançou a cabeça: ― As coisas poderiam ter sido diferentes se eu o tivesse convencido a fugir enquanto havia tempo. O condenava por pensar que podíamos continuar com aquela farsa, mas no fundo, eu também acreditava nisso. ― É difícil duvidar de algo que se quer tanto, pensou. —Sou um covarde.

― Você covarde? Imagine se fosse corajoso...

Franziu as sobrancelhas: naturalmente ele se referia a sua insistência em acompanha-lo até o gabinete do prefeito. Após uma negociação quase interminável, conseguiram a lista dos campos de concentração para onde Alois poderia ter sido mandado. Sua vontade de encontra-lo era tanta que nem pensara nos riscos ao adentrar o prédio agora adornado de símbolos nazistas. Seria essa a impetuosidade que tanto admirava no companheiro?

―Tenho medo do que me espera. ― Baixou o rosto. Ele poderia estar... E seria tudo por sua culpa, já que nem fora capaz de se defender. Limpou as lágrimas com o dorso da mão. O céu estava limpo, diferente do dia anterior. Fitava-o em silêncio até seu irmão voltar a falar:

― "O que não enfrentarmos em nós, encontraremos como destino."

―Quem disse isso?

―Carl Jung. Pode perguntar à Nelly.

Assoou o nariz: ―Pensei que achasse psicologia um monte de besteiras.

―Acho. Exceto quando fazem sentido. ―Riram um pouco. Ele apagou a fogueira. Antes de irem, Otto recolheu o que sobrara do almoço num saco de papel: ―Ele pode estar com fome.

A estrada parecia interminável. De tempos em tempos, olhava para trás, imaginando se alguém os seguia. Abriu o compartimento do carona, apanhando o revólver do irmão.

―O que está fazendo?

―Alois me ensinou a atirar. Não sou muito bom, mas sei que consigo.

―Melhor guardar, tem muito desnível nessa estrada... Desça com ele quando chegarmos.

A neve mudava do branco quase puro para o cinza conforme deixavam o vilarejo e se aproximavam do campo. Desceram do carro e o mau cheiro os atingiu antes mesmo que se aproximassem. Pela cerca, viam centenas de cabanas miseráveis, praticamente coladas ao chão. Um arrepio percorreu sua espinha ao avistar a multidão esquelética obrigada a marchar sob gritos dos guardas. Como ele poderia sobreviver naquelas condições?

Guardas os abordaram, exigindo que se identificassem. Obedeceram e logo outro guarda armado apareceu: ―O que querem?

Otto não receou; Wilhelm fora instruído pelo prefeito sobre o que responder: ―Localizar uma pessoa. Estamos prontos para pagar pelo trabalho dele. —Ainda tremia pensando no absurdo que era "alugarem" seu companheiro, como se fosse um objeto.

Houve um momento de hesitação, até que eles concordaram. Um deles puxou um bloco de anotações do bolso: ―Nome?

Passou os dados, suando frio: ―Alois Junior Friedrich Kaufman. Ele tem 41 anos, 1,92 de altura, cabelo loiro grisalho e...

O soldado o interrompeu: ― Só nome e origem.

―Graz; ele é de Graz.

O soldado atravessou o portão, enquanto o outro permaneceu. Perdiam a noção do tempo quando ele retornou: ―Ele entrou sim, mas não apareceu mais nas contagens desde ontem. Talvez tenham mais sorte ali. ― O guarda apontou para um barranco ao lado, com um sorriso.

Conforme se aproximaram, porém, o mau-cheiro se tornava mais evidente. Recuaram em horror: era uma enorme cova, com centenas de corpos nus e amontoados. O solo sumiu debaixo de seus pés. Se desvencilhou do irmão, correndo em direção à floresta.

Parou numa clareira, o revólver pesando no bolso do casaco. Trêmulo, levou o cano até a têmpora. Ludwig, pobrezinho, nunca mais o veria, nem ao tio... Talvez fosse melhor assim. Alois estava certo: não havia lugar no mundo pra gente como eles. Wilhelm alcançou-o e se jogou sobre ele, torcendo seu braço, quase como numa de suas brigas na infância. Soltou a arma e ele a arremessou longe.

Ajoelhou na neve, soluçando. Um longo silêncio se fez. A princípio, preferia conservá-lo, mas a culpa era atormentadora demais. Murmurou: ―Me perdoe, Wil...

Ele balançou a cabeça, calado.

Queria dizer a ele, perguntar o que achava de perder alguém, mas ambos já sabiam o que isso significava antes mesmo de serem adultos. E agora, quase o fazia passar por aquilo de novo. Voltou o rosto para a neve.

―Você acha que eu não entendo o que vocês sentiam um pelo outro, mas eu sei sim. Se fosse Aninka ali, eu também ficaria louco. Eu ia querer que cada um dos infelizes pagasse e só então afundaria na tristeza, mas com você, é o contrário: você se mata primeiro e espera que todos eles caiam mortos também!

Ergueu as sobrancelhas. Não havia parado para pensar por aquele ângulo. Sempre fora mais voltado para o raciocínio, não para ação. Seu mundo interior era tudo o que conhecia e agora estava em ruínas. Soluçou: ―Me sinto tão incapaz. Não tenho forças pra continuar.

―Tem, eu estou aqui. ― Wilhelm o abraçou, retirando-o da neve. Alois... pensar que ele se fora, que não o teria mais, nunca mais...

―E o menino? ― A pergunta pairou no ar. Ele o encarava, sua respiração formando pequenas nuvens de umidade.

Por mais que gostasse de Ludwig, sua preocupação com ele ficara embaçada em meio aquele tormento. No fundo, o sobrinho era a pessoa mais importante na vida de seu companheiro, ainda mais após a morte de Klara. ―Precisamos voltar. Ele ainda deve estar lá.

O irmão balançou a cabeça: —E se te prendem de novo? Devemos partir agora e depois mandamos alguém buscá-lo.

Encarou-o, em lágrimas: ―Acabou de dizer que entendia o meu amor por Alois. Se é capaz de entender isso, então entende o que eu preciso fazer. Aquele menino, ele é tudo o que me resta!

―Pense bem, vocês nem conviveram tanto tempo assim...

―E Rosa, Kurt e Max? Como se sentiria se os tirassem de você?

―É diferente! Aquele menino, ele não...

Seu irmão se esforçava, mas só conseguia pensar em todas as vezes que ajudara Ludwig com o dever de casa, ou quando brincavam juntos e até mesmo da vez em que precisara colocá-lo de castigo. Suspirou: ―Ele não é meu filho, mas eu morreria por ele! Sei que ele amava a mim e ao Alois tanto quanto você e eu amamos o nosso pai. Não posso abandoná-lo. ―Ofereceu a mão para se despedir: ―Sinto muito, Wil.

Ele pôs o chapéu, caminhando em direção ao carro e Otto entendeu que o convencera. Precisava ser forte, como o companheiro seria se estivesse ali. Tinham de encontrar aquele menino e afundar na melancolia não ajudaria nisso. Se despediu, prometendo a ele: não descansaria até ter Ludwig a salvo.


~~***~~

Por conta do finalzinho com o Otto recebendo a notícia de que Alois não constava na lista (porque ele estava preso no poço) e tendo essa reação que quase o levou ao suicídio, eu precisei colocar um alerta na sinopse. 

E vocês, o que acharam? Será que o Otto vai descobrir o paradeiro do Ludwig? E quanto ao Alois, será que ele suportará o castigo por ter salvo Yvette?

Votem, comentem e bom fim de semana pra todos!😘

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