Alois coçou a lama seca em seu rosto. Mantinha a pequena fogueira sob vigilância, para que a fumaça não chamasse a atenção. Mais do que nunca, entendia como Robinson Crusoé se sentiu ao chegar naquela ilha desconhecida. Nem mesmo os guardas deviam se atrever a andar ali, pensou.
"E agora? Estou livre, mas nem tanto..." Para começar, mal sabia onde estava: o município de Peggau devia ficar a uns 30 quilômetros de Graz, mas não tinha certeza. A julgar pela posição do poço, devia ter saído ao norte do campo, mas isso não ajudava muito a se localizar. Se andasse pela estrada, corria o risco de ser pego e, quem sabe, morto... Seu estômago roncou alto. Com as chuvas da noite anterior, os guardas poderiam querer espiar o poço, esperando encontrar seu cadáver flutuante. Em seu lugar, encontrariam a saída secreta e chegariam até ele.
Ficar ali poderia ser tão perigoso quanto voltar e precisava comer. Caminhou pela neve do degelo, cada passo uma mordida gelada. Sacudia as barras das calças quando escutou água correndo. Encontrou o riacho descongelando a metros adiante. Sorveu a água e limpou o rosto, o frio estremecendo-o. Se levantou, observando um cardume de trutas. Perseguiu-as com um galho bifurcado, mas só o que conseguiu foi congelar os pés na água gelada. Levou mais de meia hora para capturar uma truta entre as pedras, içando-a com a forquilha. Espetou o peixe no galho, virando-o conforme a cor mudava do prateado para o marrom. Assim que pode, enfiou-a na boca, queimando os dedos e a língua. Nunca apreciara tanto comer algo quanto aquele peixe. Passou o tempo revezando entre se aquecer e pescar, pegando e devorando mais duas trutas. Quase vomitou de tão cheio.
As montanhas e colinas se erguiam à sua frente, um pouco além da floresta. Imaginava se poderia chegar até elas. Fugiria sozinho e esqueceria tudo. Esqueceria os rostos magros de Yvette e todos os outros, comendo batatas podres e passando fome, sem saberem que a saída daquele inferno estava bem ali, debaixo de seus pés...
Descartou a espinha na pilha. Mesmo se tivesse êxito, mesmo que por um milagre encontrasse Ludwig, como viveria com aquilo?
Por outro lado, não sabia se o túnel tinha sido descoberto. O sol da manhã aparecia fraco por entre as árvores e as nuvens. Não demoraria a chover outra vez, concluiu, olhando aflito para a entrada da mina: o caminho poderia ruir a qualquer momento. Abocanhou um pouco mais do peixe, guardando pedaços nos bolsos e retornou. Desceu com cuidado usando os dormentes como escada. Em pouco tempo, estava de novo no ponto de partida. Espiou dentro do poço: a tampa continuava no mesmo lugar. Se ia mesmo ficar ali e esperar que o tirassem como se nunca tivesse saído, precisaria tapar aquele rombo. Empilhou as pedras e os tijolos soltos, usando o lodo como cimento. Enquanto trabalhava, ouvia vozes perto. Reconheceu a de Yvette:
― O castigo não dizia nada sobre matá-lo! Têm que tirá-lo daí, já!
―Não tem a menor chance de ele estar vivo. ― Era Beleza falando. Teve vontade de escalar o poço só para mostrar àquela bicha folgada quem...O som de pancadas e gritos interrompeu-o. Eram os guardas. Se apressou, encaixando as pedras. Estava pela metade, quando ouviu:
―Acha que ele sobreviveu?
― Só se aprendeu a respirar debaixo d'água... Pode ser que esteja agonizando.
―Então vamos acabar com o sofrimento dele. ―disse o próprio Zoller.
A tampa foi arrastada. Encaixou o último tijolo e fechou os olhos, rezando. As faces de espanto dos guardas surgiram emolduradas pela luz de fora. Encarava-os de volta, abraçando os próprios joelhos.
―Você perdeu, Hans! — disse o outro guarda. Zoller o encarava, parecendo ainda mais maligno. Lhe estenderam uma corda.
Assim que terminou de subir, amarraram suas mãos e cobriram sua cabeça com um saco. Por entre as fibras do tecido, via apavorado as sombras deles e principalmente o revólver, encostado em sua nuca.
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Dois Pais
Historical FictionÉ 1938 e a Áustria está prestes a se unir à Alemanha nazista em sua cruzada odiosa. Em meio a isso, Alois Kaufman, um barman veterano de guerra, guarda de todos um enorme segredo: seu relacionamento de dez anos com outro homem, Otto Vandenburg, um s...