Capítulo 1 (terceira parte)

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Moravam numa das esquinas de frente para a praça Jakomini, no centro de Graz, a segunda cidade mais populosa da Áustria. Perfeita para se passar despercebido. Se mudaram para lá havia cerca de cinco anos, para que Alois pudesse ficar mais perto da irmã. Essa era a desculpa oficial: na verdade, haviam recebido uma carta anônima de um chantagista, que mais tarde se revelara um ex de Otto. Passado o temor, puderam observar o musgo crescer no telhado com a satisfação de quem finalmente encontra um destino estável.

Tendo sempre muito a esconder, restavam pouquíssimas coisas para se vangloriar ― não que fosse dado a isso. Entretanto, sempre que lhe pediam, punha-se a contar sobre sua participação na Grande Guerra. Embora não dissesse claramente em que esquadrilha esteve, nem citasse muitos oficiais, ninguém duvidava de suas façanhas.

Gerhard parou de varrer, apontando a espingarda debaixo do balcão: — O senhor usou na guerra, foi? Parece bem gasta.

Achou melhor trancá-la na gaveta: —Não, comprei depois. Cheguei a usar uma em voo, mas foram substituídas por metralhadoras. Ainda assim, era bem difícil acertar.

—Por quê? — O garoto olhava-o com a curiosidade de um repórter.

Alois fez uma careta, separando outro caneco para limpar: —Porque era, ora essa.

O moleque insistiu: —O que tinha de tão difícil? —disse ele, apontando a vassoura no ar: —Só mirar na cabeça e bang!!!

Afastou a vassoura do próprio rosto: —Não é nada disso, garoto! Pessoas que eu conheci morreram, outras tantas também. Cada família em todo canto tinha ao menos um morto pra chorar. Não faria mal mostrar um pouco mais de respeito.

Ele se calou finalmente. Aproveitou para dar uma tragada no cigarro. O pobre diabo não podia imaginar o inferno do qual escapara. Se virou para ele: — Eu explico, se não me interromper. —O menino se debruçou, atento.

—Imagine que está num carro em alta velocidade.

—Nunca andei de carro, Seu Alois. Só de carroça e bonde.

Inspirou fundo, recomeçando: —Está bem, imagine então que sua carroça está numa via inclinada, na velocidade mais alta possível. Você se aproxima do alvo e precisa acertá-lo, sendo que o seu próprio alvo também está doido pra fazer isso. Parece fácil?

—Não —disse ele, incrédulo: —, e como o senhor conseguiu?

Franziu a testa: — Não sei. Não estava na minha hora, eu acho. —Fitou as cadeiras vazias.

—E como era, digo, o seu avião?

Sorriu com o canto do olho: — Era um Albatros DIII, talvez o melhor avião que já inventaram. Aguentava qualquer tranco. O Barão Vermelho voou num desses uma vez, pelo que eu soube. Já a metralhadora, era a porcaria de uma Schwarzlose MG, com um tacômetro enorme no cockpit que os engenheiros, sinceramente, deveriam ter enfiado no cu.

Gerhard gargalhou, mas logo se conteve. — Se aquela merda funcionasse mesmo, impediria a filha da puta de acertar as minhas próprias hélices.

—Nossa! Mas por que não faziam ela disparar um tiro por vez? Seria mais fácil.

—Por que daí seria qualquer outra coisa, menos uma metralhadora! Não fossem as travas, ela ficaria atirando até que as balas acabassem. Já as hélices quando giram, tem momentos em que não se encontram na frente da mira, mas são poucos e calibrar isso era complexo. Se bem que, no nosso caso, parecia até que o engenheiro tinha bebido. As pás ficaram pela metade.

—Então o senhor caiu?!

—No meio do território inimigo. Assim que Mark disparou a primeira rajada, lá se foram as hélices. Não lembro quase nada da queda, só de ter me agarrado ao manche, o avião girando... — Gesticulou, imitando o movimento: —Não sei como, mas consegui um impulso em direção a umas benditas árvores e foi isso. Enquanto nos recobrávamos do choque, uma tropa inimiga já se adiantava para verificar os destroços e meter bala caso não estivéssemos mortos o suficiente. Eles odiavam pilotos, mais que todos os outros combatentes.

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