Capítulo 3

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Tirou o bauzinho no fundo do guarda-roupa, remexendo fotos e cartas antigas. Pegou a que Otto escrevera quando viajara à Bélgica para terminar sua tese de doutorado. Aspirou o perfume dele no papel. Na ocasião, Alois lhe escrevera zangado e principalmente, preocupado: Klara, então com 16 anos, estava trancada em casa após se recusar a abandonar o filho que gerava. Às escondidas, lhe pedira ajuda. Relutante, levou a espingarda consigo para o caso do pai também estar armado.

Ao chegar, encontrou a irmã pálida, num cubículo sem janelas, enquanto todos acreditavam que ela estava a estudos na Suíça. Por sorte, o pai tinha saído, então só teve de espantar os capatazes e cachorros e a levou embora daquele inferno. Pulou até o fim da carta:

"Meu pensamento está aí com você, Alois. Retornarei assim que tiver feito minha apresentação. Diga à Klara para tomar bastante sol e por favor, não fique pensando tanto sobre tudo isso. Nem todas as coisas, boas ou más, podem ser explicadas. O amor, por exemplo: O dia em que alguém puder explicar por que abrimos mão de coisas inimagináveis por outra pessoa, corre o risco de perder a graça.

Com esperança em dias melhores para todos nós e com muita saudade, seu Otto."

Suspirou. Em meio ao caos, ler a resposta do companheiro fora como se o mesmo estivesse ali, dizendo "vai ficar tudo bem". Ergueu os olhos úmidos. Como podia ter sido tão egoísta? Tudo o que Otto queria era passar bons momentos ao seu lado, mas o que conseguiu foi se aborrecer em público.

Amanhecendo, vestiu o casaco e saiu vasculhando os cafés e livrarias preferidas do companheiro, mas nem sombra dele. Ah, o que não daria para vê-lo de novo, mesmo que ele entrasse no bar vestido de bailarina.

Passava por mendigos se esquentando numa fogueira improvisada quando avistou um bando de crianças jogando futebol, dentre elas seu sobrinho e Gerhard. Ele fez um passe certeiro para Ludwig, que chutou bem rente ao tijolo, marcando um gol. O grupo comemorava, até o sobrinho botar os olhos nele: —Tio!

O menino veio e Alois não teve outro remédio a não ser deixar que ele o abraçasse. —Você viu o que eu fiz, viu?

Sorriu, do melhor jeito que seu ânimo lhe permitia: —Eu vi! Você estava ótimo! — dizia: —Você também, Gerhard. — O ajudante sorriu.

A roupa do sobrinho é que não estava tão boa: se parecia mais com o uniforme de um soldado das trincheiras: —A sua mãe não vai ficar nada satisfeita. Deixa que eu explico a ela. —Caminharam até o apartamento.

Klara quase caiu para trás ao ver o filho: —Ai, o que você andou fazendo, garoto? Já para o chuveiro, mas tira esses calçados sujos antes! Eu falei pra não ir jogar bola com essa roupa! — ela praguejou, largando a trouxa em cima do sofá e Alois não se conteve.

—Pare de rir! ― Ela torceu um pano no balde: — Se fosse você no meu lugar, não acharia tanta graça.

—Me desculpe, irmãzinha. — Ela lhe entregou o pano e Alois passou-o pela a mancha de lama no piso: —Precisava ver o gol que ele fez.

Ela sorriu, retirando um rolo de tecido de cima da cadeira para que ele se sentasse: —Ele é bom nisso. Pelo menos passou de ano.

Se lembrou de algo que a faria rir: —A sua senhoria fez uma cara quando nos viu...

Ela revirou os olhos: —Aquela velha! Vive me cercando pra perguntar porque eu não estou mais de aliança e quando é que o meu "marido" volta. Quase mandei ela pra aquele lugar!

Inspirou fundo: eram mesmo muito parecidos, refletiu. — Tem que pensar no Ludwig também, não quero que fique falada. Vou te comprar outra e você trate de não perdê-la!

Dois PaisOnde histórias criam vida. Descubra agora