Capítulo 20

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Otto olhou o reflexo no espelho: suas roupas pendiam pelo corpo e ele começara a apertar o cinto. Cada tostão era poupado, mas de modo geral, a comida já não o interessava. Comia apenas o necessário para se manter de pé. À noite, quase não dormia. As lembranças de sua antiga vida voltavam com tanta força que acordava pensando que talvez nada daquilo tivesse realmente acontecido, mas não: Alois estava morto. Nunca mais veria o brilho em seus olhos quando falava de suas proezas, nem teria o toque de sua pele, ou o franzir de sobrancelhas toda vez que ele se aborrecia, nem seu sorriso. Quanto ao Ludwig, não tinha a mais remota ideia de onde ele poderia estar.

Ao mesmo tempo em que lutava contra os fatos, Wilhelm parecia se ater a eles: desde que tinham se hospedado num albergue nos limites do distrito, mandara três telegramas para a família em Yorkshire. A resposta não demorou muito: o primeiro era da madrasta deles: —"Por favor, retornem imediatamente―ponto―seu pai está muito preocupado―ponto." — O irmão limpou a garganta, lendo o outro: ―"Wilhelm, se não estiver morto, eu mesma o matarei―ponto". Pode imaginar quem mandou este.

Se debruçou sobre a janela estreita, a pequenez do quarto aumentando ainda mais seu desânimo: ―Não quero que sofram por minha causa, mas eu tenho que encontrar o Ludwig.

―Bom, no abrigo do convento, ele não está. Sorte sua que a diretora se lembrou daquele meu favorzinho durante a epidemia de tifo. ― Ele tirou do bolso o papel onde ela anotara meia dúzia de opções: ―O mais provável é que ele esteja num lar provisório. O novo governo se importa bastante com crianças, especialmente se forem loiras de olhos azuis. Pra piorar, nosso combustível acabou. Ah, Otto, se esse menino tivesse criado asas e voado, seria bem mais fácil encontrá-lo!

―Eu sei. É por isso que você deve voltar para a Inglaterra. Eu fico.

O irmão protestou: ―Nada disso! Jurei ao pai que voltaríamos juntos. Não senhor, isso não vai acontecer!

―Não pode ficar mais tempo aqui! Logo o dinheiro vai acabar, e depois...

―Depois o quê? Você usaria até o último tostão procurando, mas mesmo se achá-lo, não terá como voltar! Cada dia que passa os preços das passagens aumentam. Posso conseguir passaportes falsos com alguns contatos, mas não podemos esperar muito.

―Fale por você. Só irei embora com ele. Posso até roubar, mas vou encontrá-lo! ― Estremeceu ao dizer aquilo. Não parecia ele mesmo, mas outra pessoa que tivesse se esgueirado e entrado em sua pele. Apanhou o casaco: ―Qual o endereço?

Wilhelm baixou os ombros, lhe entregando o papel: ― Fica perto da linha do trem. Podemos ir a pé, mas é uma bela caminhada e alguém pode nos reconhecer...

Otto olhou novamente o espelho à frente deles: o que mais saltava aos olhos era a profusão de pelos castanhos da barba e as costeletas grisalhas do irmão.

Ele logo entendeu o que pretendia, dando um passo para trás: ―Espera aí! Não vamos ser radicais! Sabe quanto tônico usei pra conseguir esse resultado?

Buscou a lâmina no banheiro. Quando terminaram, sentia a pele levemente ardida, mas a imagem refletida não poderia ter ficado mais distante da anterior.

Caminharam até o relógio da cidade. Mais alguns quilômetros e a estação de trem apareceu diante deles, mas ainda faltava um bom pedaço a percorrer. Olhou para a plataforma de embarque e desembarque: tinha sido ali onde vira Alois tão esperançoso com Ludwig. Se perguntava como teria sido se tivessem alcançado a estrada, se tivesse sido mais rápido... Wilhelm o interrompeu:

―É aqui. Então, qual vai ser a história?

Hesitou, ainda desligado do ambiente ao redor. Ele bateu na própria coxa, impaciente: ―Daquela vez a diretora me conhecia e por isso não me negou nada. Na melhor das hipóteses, somos dois esquisitões procurando uma criança, e na pior, somos dois criminosos.

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