Alois baixou o capelo sobre o rosto, o sol do meio-dia fervendo seus ombros. Se aquelas roupas não fossem escuras... Pelo menos, finalmente usava o crucifixo sem ser incomodado. Tinha percorrido cerca de treze quilômetros quando avistou as primeiras casas de alguma aldeia ao longo do rio. Deixou Tempestade descansando e sentou-se com a trouxinha que os monges haviam feito. Devorou depressa o pedaço de pão e o queijo, encarando a correnteza do Mur. "Continua igual", pensou. Quem dera pudesse dizer o mesmo de sua vida. Esperou o animal saciar a sede e prosseguiu.
Algumas camponesas acenavam para ele e os homens tiravam seus chapéus de palha. Podia ver como a religião ainda era importante ali. A visão de soldados da SS o fez congelar na sela. Esquadrinhavam casas e um beco próximo:―Não estão vestidos como prisioneiros, mas como guardas!
Contornou as árvores, tentando manter o ritmo. Uma vez dentro da cidade, um coelho seria mil vezes mais fácil de apanhar do que ele. Bateu de novo nos flancos do cavalo.
Avistou as casas de telhados vermelhos e ruas estreitas, com suas praças, jardins e cafés: estava de volta em casa. Diminuiu o ritmo, conforme trotava pelos ladrilhos da cidade. Uma multidão se reunia no cemitério. Reconheceu a insígnia nazista sobre o caixão e se atentou para a quantidade de oficiais ali. Baixou o capelo, puxando as rédeas na direção contrária. Toda a alegria que sentia se transformou em estranhamento. Estava ali, mas que diferença fazia?
Cavalgou pela praça Jakomini e avistou seu bar isolado na esquina, as janelas e vitrines quebradas, tudo pelo que lutara nos últimos anos, completamente depredado. Engoliu em seco, balançando a cabeça. Encontraria Ludwig. Fugira de um campo de concentração, por que não haveria de tirá-lo de um simples abrigo? Isso se ele ainda estivesse num, pensou.
Calculava qual rumo tomar, quando um jovem veio até ele. Segurou rédeas, pronto a buscar seu revólver, enquanto ele pedia: ― Preciso me confessar, padre!
Olhou para os lados, procurando guardas escondidos, mas não encontrou nenhum. Respondeu na mais pura canastrice: ―Sinto muito, as confissões estão fechadas por hoje. ― Continuou andando, mas o rapaz o seguiu.
―O senhor tem que me ouvir! Estou prestes a perder minha inocência!
Deu o melhor conselho que podia: ―Faça o que fizer, use uma camisinha!
―Não é esse tipo de inocência, padre. Tirar a vida de alguém, isto é...
Puxou as rédeas, vendo o rapaz com as mãos nos bolsos. Crescera com homens cujos rostos foram destroçados por tiros e explosões, os olhos queimados por gás mostarda, pernas e braços devorados por minas terrestres. Gostaria que alguém tivesse lhe dito o que estaria para ver quando aceitou participar daquilo.
―Venha. ― Deixou o cavalo amarrado numa estaca perto da calçada e andou com ele em direção ao confessionário. Rezou para que o verdadeiro padre não aparecesse, mas a julgar pela quantidade de pessoas do lado de fora, não corria esse risco. Fitou o rosto do rapaz por entre os entalhes do biombo, ouvindo:
― Não me entenda mal, padre, respeito tudo o que Hitler fez por nós, mas... Se tenho que invadir uma casa, prender alguém... Os gritos deles não me deixam dormir. Então eu penso em todas as glórias da Alemanha, mas mesmo assim, nem sempre dá certo. Se souberem disso, vão me humilhar e me expulsar. Entende o meu problema?
Fez sinal para que ele continuasse.
― Estão todos loucos com a rebelião num campo perto daqui. O chefe botou toda a tropa para procurar os foragidos. Eu queria ir porque só teria criminosos e gentinhas... ―Ele fez uma pausa, franzindo a testa: ―Mas aí, ele disse: "Tenho uma missão pra vocês no asilo municipal." não entendi, então ele explicou: "Ajudarão o país a se livrar de indesejáveis. Todos devem contribuir para um futuro melhor e os que não puderem, melhor que não atrapalhem, não acha?" Eu fiquei sem palavras. É meu dever, mas eu não concordo, padre! Não sei o que fazer...
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Dois Pais
Historical FictionÉ 1938 e a Áustria está prestes a se unir à Alemanha nazista em sua cruzada odiosa. Em meio a isso, Alois Kaufman, um barman veterano de guerra, guarda de todos um enorme segredo: seu relacionamento de dez anos com outro homem, Otto Vandenburg, um s...