Capítulo 29

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Tentava se acalmar. Herman era um homem cruel, mas não imaginava que chegaria a tal ponto. Quem o via passeando com a família não suspeitaria.

Qual! Ele provavelmente já tinha tudo planejado desde o dia em que veio com aquele dossiê até o bar. Se lembrou da forma como ele falava de seu companheiro e compreendeu que não era apenas questão de desprezo, mas também inveja. Se lembrou dos tempos de esquadrilha, e em como o humor dele mudava com Mark por perto. Um calafrio cruzou sua espinha. Pensou em Ludwig sendo levado embora, em Otto avacalhado por aqueles guardas, e em seu pai, baleado no meio da rua. Se imaginou enforcando o maldito até vê-lo se tornar roxo, a língua para fora, nazista miserável...

Seus pés roçaram em algo roliço: pisava no fêmur do infeliz. Desenterrou-o; era comprido, provavelmente de um homem alto. Estarreceu-se imaginando o nível que aquela obsessão teria atingido.

Algemado, não conseguia andar mais rápido que uma gueixa num quimono, então engatinhou com ele até a portinhola. Encaixou o osso como um pé-de-cabra, forçando-o para baixo. Após algum esforço, via pela fresta o bosque ao redor e três cães pastores latindo. Continuou, a madeira rangendo sem ceder. Estendeu um braço para fora, sentindo a terra do quintal sobre seus dedos... Uma barra a mantinha no lugar.

Se voltou para a porta então, procurando algo para arrombá-la. Tantos restos de construção, devia ter um serrote, uma chave de fenda, qualquer coisa! Empurrou pneus e tábuas para o lado. Um bando de ratos guinchou e correu por entre seus pés, vindos do buraco recém-escavado, do tamanho certo para ele.

Sua cabeça girava. Herman poderia estar a caminho. Se pôs outra vez a afastar telhas e cacos. Um cano de metal rolou até seus pés. Agarrou-o, esmurrando a porta com a ponta amassada dele, de novo e de novo... Forçava a tranca até as mãos arroxearem. "Vamos, desgraça, abra! Pelo amor de Deus..." O cano lhe escapou e a dor se alastrou por sua mão. Maldito, por quê? Se pudesse ter adivinhado... Se encolheu. Se pelo menos alguém o procurasse... Mas não. Não tinha Yvette ali para pular na garganta de Herman com uma tesoura velha, nem Klaudia para invadir o chalé com uma metralhadora, ou Irmã Maria para avisar que estavam sem granadas. Nem mesmo Otto devia estar procurando-o agora. Fechou os olhos, o sangue fluindo pelo corte. Se ao menos pudesse ver Ludwig e saber que ele estava bem...

Herman retornou. Ouviu-o girar a maçaneta, o ranger da porta. Escondido ao lado dela, ergueu o cano, pronto para acertá-lo assim que ele entrasse.

O desgraçado, porém, desviou do golpe. Ele agarrou e torceu suas algemas, fazendo-o soltar o cano. Caiu exausto, ouvindo-o: 

―Eu devia te quebrar ao meio, VIADO MALDITO! — E olhou para o chão: ―Desenterrando ossos? Cachorrinho feio! —Herman parou, olhando sua mão ensanguentada e seus olhos aterrorizados: ― O que é isso? Tentou fugir enquanto estive fora? Não negue, seu mentiroso. Sim, olha como se cortou!

De joelhos e enfraquecido, sua altura não fazia a menor diferença quando ele o ergueu pelo pescoço, sacudindo-o. Tudo em si era tremores e medo.

―Espero que tenha visto sua cova! Não sabe como me deu trabalho. —Colocava-lhe outra vez a mordaça e a "coleira".

Conseguiu liberar a boca do pano, num apelo desesperado: ―Não, por favor! Faço o que quiser, não precisa me amarrar!

― Eu te amarro, porque eu posso. — E tornou a amordaçá-lo: —Onde já se viu, um cachorro que fala? Junto! ― ordenou, dando um tapinha na própria coxa.

Sem alternativa, engatinhou, arrastado pelas escadas, os quadros pendurados pelas paredes e fotografias de família como únicas testemunhas. No andar superior pairava o retrato de Hitler que ele enjoara de ver nas ruas. Olhou de relance o piso abaixo, imaginando o quanto doeria jogar-se dali. Antes que concluísse o dilema, o homem retornou com gaze e esparadrapos.

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