Capítulo 23

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Mirabela acreditava que aquele fora o almoço mais estranho que já tivera. Depois de sua resposta, Marcel apenas acenou com a cabeça e disse que entendia e aquelas foram as últimas palavras pronunciadas durante todo o almoço, com exceção de quando pediram a comida -que por sinal estava delicioso, destoando totalmente do clima em que era saboreada.

Eles não se demoraram muito e em menos de quarenta minutos todos tinham terminado de comer. Simons fez questão de pagar a conta, mesmo quase tendo que brigar com Eliza por causa disso. Seguiram silenciosamente para o carro, enquanto Marcel se dirigia para o lado oposto, indo para seu "compromisso".

Apenas quando entraram no automóvel aquele ar silencioso se dissipou e todos começaram a comentar suas observações.

-Realmente acho que ele não tem nenhum compromisso -Começou Jonathan.

-Compromisso ou não, isso não faz diferença. A grande questão é: devemos contar com a ajuda dele ou não? -Foi a vez de Mirabela.

-Bem, achei que você já tivesse respondido isso quando acabou com o clima do almoço- Seu irmão ironizou.

-E o que mais queria que eu dissesse? E mesmo se eu tivesse respondido qualquer outra coisa, o clima não teria sido muito diferente disso.

-Bella, sabemos que você está certa, não se estresse com seu irmão, por favor. Ele só quer te irritar -Falou a mãe, com a voz arrastada, sinônimo de que estava com dor de cabeça. Sem querer piorar a dor da mãe, Mirabela ficou em silêncio, olhando de cara feia para Jonathan, que retribuía com um sorriso de vitória, o qual a menina daria tudo para tirar daquele rosto, de preferência com dor. Mas sabia que Eliza estava certa, e se odiava por sempre cair nas "armadilhas" de seu irmão. Maldito temperamento.

Por um momento ela se pegou observando o menino ao seu lado. Há quase dois meses atrás, Willian perdera tudo o que tinha em um atentado à sua casa, que com certeza aconteceu por causa de Robert. Perdeu seus pais, sua casa, suas coisas... sua vida como conhecia. Fora obrigado a morar com eles na cidade, viver com uma família que não era a dele e também nada parecida com a dele. E próximo mês teria que frequentar ao colégio local junto com os gêmeos.

Mirabela se lembrava do dia em que encontraram Willian escondido em sua casa, sujo se sangue e barro e pedaços de madeira, com medo e assustado. Naquela ocasião ele não conseguira controlar-se e, na viagem até sua casa, o menino não parara de falar até se entregar completamente às lágrimas. Isso era uma coisa perceptível agora: Willian quase não falava mais. Estava sempre silencioso, quase tímido, totalmente diferente do menino que os irmãos conheceram quando pequenos, junto do qual passaram tantos verões.

Mas lembrou-se que ela também mudara. Não poderia culpa-lo por isso. Todos estavam mudando, uns mais rápidos que os outros ou mais perceptíveis, mas estavam. Quando tudo isso acabasse, será que eles se reconheceriam?

Notando que já o encarava a muito tempo e que provavelmente já começara a ficar estranho, ela vira rapidamente o rosto, as bochechas corando com a vergonha, e passa a encarar a rua lá fora. Os carros passam rapidamente por eles -ou talvez sejam eles passando rápido-, nuvens escuras começam a surgir no horizonte, junto com um ar abafado, sinalizando chuva. Hoje será um ótimo dia para se chover. Chuva a ajuda a pensar e ela tinha muitas coisas para pensar e organizar e decidir.

Normalmente Mirabela não gostava muito de dias cinzentos como esse. Mesmo não saindo muito de casa, dias assim a deixavam ainda mais irritadiça e as vezes até triste. Por outro lado, quando precisava se concentrar ou estudar, esse era o melhor clima.

Deixou que a mente vagasse observando os carros passarem em rápidos flashes de cor, até que o carro estacionasse na garagem e a tirasse desse torpor. Lentamente, tendo quase adormecido, a garota desgruda a testa da janela e abre a porta, para ser recebida pelo ar úmido e quente da tarde.

Adentrando rapidamente a casa, Mirabela se direciona para seu quarto, ansiosa por ficar um momento sozinha e quem sabe até dormir um pouco. Antes que alcançasse a soleira da porta, alguém segura seu braço, impedindo seu avanço.

-Precisamos conversar.

O tom de Jonathan era calmo, mas não deixava espaço para discordância. A garota até pensou em dar uma resposta fria ou debochada, mas sua cabeça estava muito pesada para isso agora e sabia que não valia a pena. Mirabela ergue a cabeça para olhar nos olhos do irmão, numa última tentativa falha de resistência.

Até alguns meses atrás os dois tinham sido sempre quase do mesmo tamanho, mas agora Jonathan ganhava dela com centímetros de sobra. Era de certa forma irritante precisar erguer a cabeça para poder olha-lo nos olhos. Os olhos amendoados de seu pai. Por um momento ela se deixou fantasiar, mas logo em seguida chacoalhou a cabeça, o rabo de cavalo esvoaçando atrás de si, e encarou novamente o irmão.

-Sobre o que exatamente? -Ela sabia muito bem o que ele estava dizendo, mas não se deixaria ganhar tão facilmente.

-Vamos lá Mirabela, não se faça de idiota. Não combina com você.

Mirabela revirou os olhos e desvencilhou-se do aperto do irmão, entrando em seu quarto. Porém abriu espaço para que ele também passasse. Talvez estivesse na hora de abrir a boca. Não podia negar que sentia falta da ligação que costumava ter com o irmão antes de Willian passar a morar com eles. Mesmo estando constantemente tentando irritar um ao outro, os dois sempre estiveram juntos para tudo. Mas, assim como tudo, isso também mudou: Jonathan se aproximou de Willian, e Mirabela da solidão.

A garota ainda não havia pensado exatamente o que falaria para os outros sobre tudo o que descobrira nos diários. Mas talvez pudesse começar apenas falando deles, e não de seu conteúdo. Isso ela deixaria para depois, para quando tivesse tempo de pensar.

-Está bem, Jonathan, você venceu. Contente?

-Você não tem ideia, irmãzinha.

Respirando fundo para não socar a cara do irmão,Mirabela começa sua breve narrativa do último dia. Não sabia exatamente o porquê,mas decidiu não comentar sobre Gustavo. Provavelmente porque Jonathan começaria a julgá-la por ter permitido que um desconhecido visse tudo o que o menino vira-ela mesma ainda se culpava por isso, mas na hora não conseguira pensar com clareza e permitira que o medo a dominasse. Só esperava que o pressentimento ruim que a invadia fosse apenas sua imaginação fértil.

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