Capítulo 38

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Tardezinha da segunda-feira

Violet tivera um dia difícil: acordara com a mensagem do namorado pedindo um tempo; ao chegar ao trabalho recebera a notícia de que fora demitida, pois a empresa em que trabalhava estava para fechar; e por fim ficara a pé por ter esquecido o dinheiro do metrô. Enquanto caminhava entre os vários prédios da cidade, ela ia pensando em tudo o que acontecera em seu dia, tendo a única certeza de que precisava de um bom banho e se jogar na cama o mais rapidamente possível, para então poder desabar e chorar o quanto quisesse.

Assim que avistou a torre da Igreja St. Jhon's, um pequeno alívio a atravessou ao perceber que a caminhada não fora tão longa quanto esperava e já estava chegando em casa. Imaginava que agora não poderia receber outra notícia ruim antes das duas quadras que faltavam para enfim se jogar na cama com um pote de sorvete.

Mas ela se arrependeu desse pensamento no momento seguinte.

Violet não conseguira chegar à esquina antes de o universo provar que ela estava errada. Um tiro soou perto de onde estava, fazendo com que ela paralisasse no lugar antes de qualquer outra reação. Depois de alguns minutos, quando percebeu que não era o alvo do tiro e que não haveria outro disparo e finalmente recobrou os sentidos, a mulher não hesitou ao começar a caminhar, agora um pouco mais rápido e olhando em todas as direções.

Já estou chegando, mais duas quadras, quase lá.

Assim que avançou uma quadra sem nenhum problema a vista, forçou seus sentidos a se acalmarem e as pernas a relaxarem, voltando a caminhar de forma mais tranquila, pensando que deveria ter ligado para a polícia assim que ouvira o som do disparo. Mas então, como uma última gargalhada do Universo, mostrando que o que está ruim sempre pode piorar, Violet enxerga algo escuro e viscoso manchando como um rastro o chão de concreto. Seguindo em frente, ela observa que uma enorme poça daquele mesmo líquido se acumula próximo à entrada de um beco -a última coisa que precisava atravessar para então chegar em casa. 

Mesmo tendo quase certeza do que aquele líquido viscoso e escuro era, Violet ainda rezava para que fosse apenas tinta que alguém havia derrubado, ou qualquer outra coisa. Ao se aproximar do beco, ela diminui a velocidade da caminhada, com medo do que estava por vir, como se um mostro estivesse prestes a pular nela assim que passasse pela entrada.

Então ela viu. E gritou. Gritou até ficar rouca antes de poder observar melhor o corpo. Antes de pedir ajuda ou ligar para a polícia.

Como se alguém tivesse colocado ela sentada, a mulher estava escorada na parede de pedra do beco, um buraco na camiseta de onde aparentemente vinha todo o sangue que manchava desde a camiseta até o chão –onde a enorme poça se acumulava. Pelo que vira do rastro de sangue que levava ao beco, a mulher muito provavelmente foi se arrastando até ali após levar o tiro. O tiro que ela ouviu e não fez nada a não ser ficar paralisada.

Os cabelos louros da mulher pendiam sobre seu rosto pálido, que parecia molhado, Violet não sabia se de suor ou lágrimas. Mesmo tendo sido morta de maneira terrível, ela não expressava medo ou raiva no rosto, talvez um pouco de dor, mas predominava paz, pois um leve sorriso ainda marcava seus lábios. A pintora que habitava em Violet sentiu uma enorme vontade de pintar aquela mulher e sua expressão.

Voltando a si, e notando o o quão mórbido era aquele pensamento, sua mente se invade de culpa, percebendo que poderia ter ajudado aquela mulher se não tivesse ficado com tanto medo ao ouvir o disparo. Violet poderia ter salvado uma vida, ao invés de receber mais uma "notícia" triste. 

Então ela ouve o som de sirenes e várias pessoas curiosas começam a sair de suas casas e se amontoarem ao seu redor e do corpo da mulher sem nome. Novamente a vontade de pintar sua expressão lhe toma a mente, mas desta vez ela não a afasta, como uma certeza de que ao menos ela poderia fazer com que a defunta não fosse totalmente esquecida, dando a ela essa última homenagem, já que não fora capaz de salvá-la. 

Como se estivesse sob efeito de algum encanto, Violet começa a abrir caminho entre a multidão, caminhando sem olhar para os lados até entrar no prédio em que morava e não parou até que estivesse em seu quartinho de pinturas, com uma tela à sua frente e tinta e pincel em suas mãos.

A jovem só voltou a si quando a pintura começou a tomar forma, e a mulher do beco já poderia ser vislumbrada, quando o sol raiou e a luminosidade machucou seus olhos cansados. Então, ela finalmente conseguiu largar o pincel e tomar seu tão desejado banho, comer seu sorvete e enfim deitar em sua cama, como passara o dia esperando antes da trágica visão que adiara seus planos. 

                                                                              *************

Madrugada da segunda-feira

Faziam cerca de dez minutos que ela estava tentando telefonar para o homem que a colocara naquela enrascada há quase um ano, finalmente tendo notícias úteis e até importantes, mas ele não atendia. Ela caminhou até a cozinha, pegando um copo de água gelada para tentar se acalmar e sentou-se novamente na cadeira da pequena mesa de jantar, telefonando mais uma vez para o número que estava na tela de seu celular.

-Atende, atende.

A ansiedade a corroía, principalmente porque seu "marido" poderia chegar a qualquer instante e, seu ouvisse qualquer palavra daquela conversa, muita coisa iria por água abaixo e muita gente estaria em perigo, inclusive ela mesma.

Olhando ansiosa para o relógio de ponteiro em seu pulso e roendo a unha enquanto o telefone dava o terceiro toque, ela ia pensando que talvez seu tempo ali finalmente estivesse acabando e em breve estaria em casa novamente com toda a sua família, que há mais de 16 anos não se reunia. Então finalmente o telefone parou de tocar e alguém atendeu.

-Alô? –Disse a voz do outro lado da linha, o tom de cansaço nítido na fala.

-Alô, pai, é você?

-Filha! Sim sou eu, descobriu algo?

-Na verdade não muita coisa, mas tem um presentinho aguardando o senhor no aeroporto amanha de manhã, se ele seguiu tudo que eu avisei.

-O Will está vindo?

-Sim. Segundo ele, Helen mandou que voltasse imediatamente. Estou um pouco preocupada com o que vai acontecer com os pais dele, Diego não costuma ter muita misericórdia.

-Você está bem aí? Precisa de algo? Virá junto com o menino?

-Não, pai. Preciso resolver umas coisas e me certificar de outras, mas não pretendo me demorar muito aqui, acho que ele está começando a desconfiar, sabe, e tudo vai piorar quando ele chegar e descobrir que o pequeno Turner não está aqui. Certamente não demorará para que ele ligue isso a mim, mas espero estar bem longe quando isso acontecer... mas e então, era hoje não era?

-Ah, sim. Já estamos no apartamento, estão todos dormindo, exceto o Sr. Gato, que está tentando caçar o fio do telefone.

-Sinto tanta saudade dele, e de vocês, é claro. E como ela está? Como mamãe está? Faz tanto tempo desde que nos vimos pela última vez.

Ao se lembrar da mãe, que há mais de ano não via, uma lágrima travessa deixou seu rastro em sua bochecha. Só então ela percebeu que seu pai ficara calado do outro lado da linha, mas logo a voz dele estava de volta, um pouco mais rouca do que antes:

-Filha, preciso desligar, mas quando você voltar conversamos mais, eu prometo. Não se esqueça de que eu te amo, Sunny.

-Também te amo, pai.

Mas ele já tinha desligado o telefone e as palavras foram levadas pela lufada de vento que entrava pela janela. Sophia Blake levantou da cadeira, largando o telefone em cima da mesa e se dirigindo à janela do apartamento enquanto secava as lágrimas que caíam. Ela se permitiu observar o céu, pensando que seus dois irmãos –os quais ela nunca tivera a oportunidade de conhecer- e seus pais -além do Sr. Gato-, também olhavam para as mesmas estrelas que seus olhos.

Uma última lágrima caiu antes de Diego abrir a porta do apartamento e a obrigar a vestir a máscara que vinha usando por tanto tempo, enquanto cumpria sua parte ali. 

Ela não via a hora de jogar essa máscara no lixo e poder ser ela mesma novamente.

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