CAPÍTULO 50. DE VOLTA AO PRESENTE

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Abril de 2021...

— E... Essa é a minha história. Quer dizer, essa é uma parte da minha história, do dia em que eu acordei.

Camila arqueou os ombros, sentada confortavelmente, e sorriu para mim, como se pedisse pelo meu veredito de toda a história que havia me contado. Houve um silêncio profundo e único som que conseguíamos ouvir era o do trânsito da rua que entrava pela janela entreaberta, 10 andares abaixo de nós.

— Seu caso é muito interessante, sabia, Camila?

— Eu ouvi dizer, algumas vezes. – Ela riu, um tanto tímida.

Passei os olhos, por cima dos óculos, pelas inúmeras anotações que havia feito. Eram tantos detalhes curiosos que eu, profissional, como espectadora daquela história, ficava impressionada e cada vez mais curiosa.

— Então você se apaixonou pela sua esposa, se esqueceu de tudo relacionado à ela, e se apaixonou por ela mais uma vez?

— Não me apaixonei por ela só duas vezes.

— Se apaixonou quantas vezes? – Perguntei, acredito que de cenho franzido.

— Hmm... Quantos dias têm em 3 anos e meio?

O brilho nos seus olhos era fascinante. Me contive em perguntar mais sobre as histórias que havia escutado, extremamente curiosa, tentando entender melhor. 

— Clinicamente, como o seu caso está? – Perguntei, observando-a atentamente.

— Estável. Sem piora, nem melhora. Tudo que aconteceu entre o acidente na estação de neve e o acidente de carro continua em uma névoa dentro da minha cabeça.

— Uma névoa?

— É, é mais ou menos como eu vejo, quando tento lembrar de alguma coisa. É como se estivesse num lugar desconhecido, no meio de uma névoa. Eu sei que existem as coisas ao meu redor, sei que elas estão lá, mas é como se uma névoa branca cobrisse tudo e eu não conseguisse enxergar nada claramente. Eu sei que as memórias existem, mas eu não consigo visualizar.

— É um jeito interessante de se observar. – Sorri e anotei a palavra em meio a várias outras que caçava entre as suas palavras. – E a sua família, como está hoje?

Ouvi um suspiro e voltei os olhos à ela. Tinha um sorriso que parecia recém-apaixonado.

— A Elis vai fazer 3 anos em Maio. Nasceu de parto normal, no dia em que o meu médico disse que nasceria: 27 de Maio.

— Geminiana? – Perguntei, interessada. Ela assentiu com a cabeça, ainda sem abandonar o sorriso nos lábios.

— Igual ao vô. E o bisavô. – Ela revirou os olhos, como se mencionasse uma gangue, mas riu. – Desde que ela aprendeu a falar, as visitas passaram a durar o dobro do tempo.

— E como ela é?

— A cópia exata da Gabriela. Tem o mesmo cabelo, os mesmos olhos, o sorriso, o jeito de falar, eu sinto que fui uma máquina de xerox por 9 meses.

O sorriso e o tom que ela usava ao falar de Elis me passava a felicidade que sentia em ter carregado a filha e que os laços de mãe e filha estavam firmes e, sem dúvidas, era uma criança com duas mães.

— E a relação com a sua esposa?

— Nossa. É... Indescritível.

— Tente. – Sorri, incentivando, e reparei que ela ajeitou a postura para falar de Gabriela, como se ela merecesse atenção para ser descrita.

— A Gabriela é uma mulher maravilhosa, é um ser humano incrível. Ela é uma esposa e mãe extremamente dedicada, as coisas que ela ensina pra Elis e pra mim diariamente... A gente tem uma troca de amor tão grande....

— E essas pessoas do passado dela, que você mencionou?

—  A Paola ainda mora na Espanha, mas vem ao Brasil a cada 6 meses, então elas ainda se veem. Mas a Gabriela é casada e tem uma filha, e a Paola está noiva de uma brasileira que conheceu lá na Espanha, então acredito que hoje em dia seja tudo estritamente profissional entre as duas.

— E o seus pais?

— Meu pai decidiu vender a casa que tinham na Itália e ficar no Brasil, não me pergunte como ele conseguiu convencer a minha mãe. Desde que a Elis nasceu, ele só queria saber da neta. E agora a atenção triplicou, minha irmã e meu cunhado tiveram gêmeos há 5 meses.

— E a relação com sua mãe?

Nesse momento, houve um silêncio e a sua postura mudou, ainda tentando manter-se firme.

— Minha mãe é uma peça bem complicada. – Ela tentou rir. – Ela não maltrata a Elis nem a Gabriela, o que eu já considero um progresso, mas ainda é difícil imaginar uma convivência 100% normal, e estamos cientes que provavelmente ela nunca vai tratar a Gabriela como nora, mas eu vejo que a Elis mexe com ela, tem uma doçura e uma inocência que toca. Às vezes a minha mãe está lá carrancuda e a Elis não entende que é por nossa causa, aí leva uma flor pra ela, pede colo, quer distrair, e ela acaba aceitando. Meio a contragosto, mas eu vejo que isso vai derretendo aquele gelo que ela tem por dentro.

Camila tinha uma esperança real nos olhos, e o modo como ela me contava as coisas quase me fazia estar junto nas cenas, e torcer pra que terminassem bem. Mas, afinal, aquela era a minha função ali. Ajudá-la da melhor maneira possível a deixar todas as coisas em ordem.

— E você nunca se lembrou de nada? Nem um flash, um deja-vú, um sonho...?

— Não. Nada até hoje. Cansei de contar sonhos estranhos pra Gabriela, mas nenhum fazia realmente sentido. Mas... Poderia ter sido pior, não é?

— Poderia?

— Eu pude aproveitar minha gravidez, meu casamento, todas essas memórias desses 3 anos... Eu adoraria lembrar do começo, de quando nós nos conhecemos, do nosso primeiro beijo, de todas as histórias que ela me conta... Mas quando eu paro pra pensar, eu a conheci, eu tive um primeiro beijo, uma primeira vez, eu escrevi uma história com ela. E o tempo do calendário parece ser o de menos... A nossa história é realmente incrível. Ela não desistiu de mim um dia sequer. Ela ficou ali, me dando sorrisos, sendo gentil, me ganhando aos poucos, talvez como ela fez na primeira vez. E o mais importante, no fim das contas, é que deu certo.

Depois de tudo que eu havia escutado e visto, fiquei curiosa em pensar no motivo que levava Camila até o meu consultório, afinal, aparentava levar uma vida tranquila.

— E o que te motivou a vir até aqui?

— Saúde mental. – Ela respondeu tranquilamente. – Eu sou uma mulher muito feliz, uma esposa feliz e uma mãe feliz, mas ainda sou uma pessoa que não lembra de 4 anos inteiros, e não quero correr o risco de deixar esse trauma afetar minha relação com a minha família.

— Certo. – Sorri e ela me retribuiu. – Então vamos trabalhar pra que tudo siga dessa forma. Tudo bem?

Ouvíamos alguns trovões há vários minutos e uma chuva de tarde finalmente despencou ao final da consulta. Após nos despedirmos, ainda no consultório, Camila retirou o celular da bolsa, fazendo uma ligação que acabei escutando.

— Oi, meu amor. Tá tudo bem? Vocês estão aí embaixo? Tá bem... Você levou ela pra tomar sorvete, não levou? Eu sabia que ela ia te convencer... Sei... - Ela riu. - Me espera no carro, não deixa ela pegar chuva, não. Eu já encontro vocês, tá? Beijo, te amo!

Camila vem ao meu consultório uma vez por semana, e quando sentimos que há uma alguma peça fora do lugar, trabalhamos para ajustar. Conversamos e a felicidade dela, inspira, como ela mesmo diz: Transborda. Adotamos uma frequência e ela me conta sobre a família, o trabalho, a relação com os pais, os irmãos...

Até hoje, Camila não tem nenhuma lembrança dos anos que perdeu pelo acidente. Incrivelmente, estes anos não lhe parecem fazer falta alguma. Com um sorriso, Elis no colo e Gabriela segurando sua mão, ela parece mais ansiosa pelo dia seguinte, não pelos que já que se foram.

E segue feliz assim, até hoje. E amanhã, vai estar da mesma forma.

*** FIM ***

Você, de verdade (Romance lésbico)Onde histórias criam vida. Descubra agora