— Onde está seu pai? – A voz fez Camila despertar com um pulo.
— Nossa, mãe! Que susto! Eu tava quase cochilando... O papai desceu pra tomar café quando vieram me examinar.
— Ótimo. – Cristina jogou sua bolsa aos pés da cama e sentou-se ao lado de Camila – Agora podemos ter uma conversa de mãe para filha.
— Sobre o quê?
— Sobre as escolhas que você fez na vida e está tendo a chance de recomeçar.
— Do que você tá falando, mãe?
Camila franziu o cenho, desconfiada. Conhecia toda a carta de conteúdos da mãe, todas as chantagens e manipulações, e já não tinha saco para nenhum.
— Meu bem... – Aproximou-se, colocando os dedos nos cabelos de Camila – Essa vida que você levava antes do acidente, se é que isso pode ser chamada de vida...
— Mãe, que "vida" eu levo?! – Desvencilhou-se, discretamente.
— Bem, me diga você, você nos excluiu da nossa vida, sumiu no mundo e sabe Deus o que andava fazendo...
— Mãe, você fala como se eu tivesse me tornado uma maluca! Olha pra mim! Sou eu! Eu ainda sou a mesma pessoa, não sou?
— Não, Camila, você não é! – Esbravejou.
— Pára de besteira, mãe! Que vida você pensa que eu levo? Sério, porque eu também preciso saber, mas você parece bem mais preocupada com a minha vida do que eu! – Camila aumentou o tom.
— Porque eu sou sua mãe! A sua vida e suas escolhas te trouxeram até aqui, nessa cama de hospital, sem memórias, sem amigos, sem aquela garota doida, só sobrou sua família.
— Mãe, pára com isso, você nem sabe como o acidente aconteceu...
— Camila, minha filha. – Cristina tomou suas mãos – Eu não quero brigar com você, sei que nós temos as nossas diferenças, mas... Essa pode ser uma nova chance pra você voltar atrás, recomeçar e fazer tudo certo dessa vez.
— Tipo...? – Camila desvencilhava dos dedos da mãe, que insistia em tentar arrumar seu cabelo do modo que nunca gostou.
— Olha... Enquanto eu estava lá embaixo, fiz algumas ligações, falei com sua irmã, que também está muito preocupada e também quer te ajudar...
— Ah, mas é claro que a Bianca vai estar por trás disso também...
— Também conversei com a Rita e o Jorge, e pedi pra que o Pedro viesse te visitar.
— Mãe, eu não tô mais com o Pedro.
— Filha, você sempre se arrependeu de ter terminado com ele! Dava pra ver nos seus olhos a falta que ele te fazia. Converse com ele, vocês podem se ajeitar, ele ainda é louco por você! – Piscou.
— Mãe, isso... Olha, isso não tá parecendo certo. Você não tá nem me dando chance de olhar pra fora da janela e conhecer a vida que eu tenho.
— E você quer conhecer a vida que tem?
— Eu não sei! Mas eu preciso ver pra saber!
— Você já viu essa sua... Amiguinha? – Cristina fez a típica cara que fazia quando queria rebaixar ou menosprezar alguém.
— Não, mãe, eu ainda não a vi. – Camila já respirava fundo e falava com os dedos sobre a testa. – Mas me fala, como ela é? Você parece gostar bastante dela. – Voltou o rosto à mãe, abrindo um sorriso irônico.
— Uma marginalzinha, toda tatuada, sem futuro algum. Fez você virar as costas para a própria família. Que futuro você pensava que teria com esse tipo de gente, Camila? Eu não te criei pra isso...
— Eu não posso te responder o que eu pensava, porque eu não lembro o que eu pensava. Mas pára, mãe, pára de falar da minha vida no pretérito, como se tivesse decidido por mim como vai ser daqui pra frente! Essa é uma decisão minha!
— Camila, você pode mudar a sua vida, nós estamos dispostos a te ajudar a recomeçar!
— Mãe, nem tudo pode ser mudado ou feito do jeito que você quer... – Camila ria, em tom de desespero.
— Isso pode, Camila!
— Não, mãe, não pode! Você quer mudar alguma coisa? – Camila sentia o sangue esquentar nas suas veias e o tom de voz aumentar, como se fosse explodir a qualquer momento. – Eu não lembro de nada do que aconteceu na minha vida nos últimos anos, tenta mudar isso pra mim! E eu tô grávida! Tenta mudar isso também!
— O quê? – Cristina levou a mão ao peito, arqueando a sobrancelha.
— Grávida, mãe!
— ...Ótimo! – A voz soou como se fosse uma solução. – Então você conta pra ela, diz o que aconteceu, vocês terminam e cada uma segue sua vida. Depois cuidamos do resto. Os detalhes dessa gravidez não precisamos mencionar, e nos poupe saber quem é o pai.
Cristina terminou a frase virando o rosto e passou a andar lentamente em círculos pelo quarto, como se bolasse um plano.
— Ai, meu Deus! – Camila expressou a frase lentamente. – Mãe, a senhora acha que eu traí ela?! Como você pode dizer que "me criou melhor que isso" e ficar feliz em achar que eu traí a pessoa com quem eu estou?
— E como isso aconteceu? Ela finalmente virou homem a ponto de te engravidar? – Deu-lhe uma risada sarcástica.
— Mãe, a senhora já ouviu falar em inseminação artificial? – Respondeu-lhe com o mesmo tom.
— Ah, Camila, por favor... – Riu – De onde ela tiraria dinheiro pra isso? Meu amor, aquela garota te levou pro submundo, todo trocado sujo que ganhava, gastava em drogas, bebidas, jogo, mulheres... Você ganhou um presente, uma chance de ouro de sair daquela vida!
— Deixa eu ver se eu entendi, mãe... – Camila ajeitou-se na cama, coçando a cabeça, visivelmente irritada. – Eu te digo que tô grávida e você só fica feliz porque acha que essa gravidez é fruto de uma traição, e chama o meu acidente de "presente" e "chance de ouro", mesmo sabendo que eu fiquei em coma por vários dias, poderia ter morrido e perdi a memória de boa parte da minha vida adulta? – As duas ficaram em silêncio – Por algum motivo, que eu não faço ideia, mas desconfio, eu não tô mais com o Pedro, e eu conheci uma garota, vivo com ela, e tô esperando um filho dela. Chega a ser engraçado imaginar o quanto tudo isso te deixou possessa, não ter mais nenhum controle sobre a minha vida. Eu não faço ideia de como tudo isso aconteceu, de como eu cheguei até aqui, não sei se ela é essa pessoa que a senhora diz, não sei se eu quero esse filho, não sei se quero essa vida, mas é minha escolha e serão as minhas decisões que vão valer daqui pra frente, entendeu? E quer saber, mãe? Até você entrar aqui e tentar apagar a minha vida, eu tava mesmo desinteressada nela, mas você expor o seu ponto de vista me fez perceber que, provavelmente, eu estava errada. Então muito, muito obrigada por me fazer ver as coisas com um pouco mais de naturalidade.
Camila tinha um olhar selvagem, firme e decidido. Não sabia de onde havia tirado tanta coragem para desafiar a mãe, mas teve a intuição de que os anos que não lembrava haviam a ensinado como fazê-lo. Cristina sabia quando estava perdendo a batalha para a filha, então fingia entregar os pontos e ceder. Deu-lhe apenas um sorriso forçado e aproximou-se, dando um beijo em sua testa. Pegou sua bolsa na cama mas caçou outro cigarro antes de colocá-la no ombro e sair do quarto.
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Você, de verdade (Romance lésbico)
RomanceLivro 2 concluído - Sob Nossas Peles: https://w.tt/2RUs4tJ O que acontece depois do "felizes para sempre"? Essa é a história de Camila e Gabriela, um casal que vivia feliz para sempre. Até o capítulo seguinte. Após um acidente de carro que quase lhe...