CAPÍTULO 11. TEMPESTADE SECA

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Camila olhava o comprimido fixamente, com as mãos tremendo. Os olhos marejados poderiam ser o choro iminente ou tempo demais sem piscar. Sentiu o estômago revirar de cabeça para baixo e quase não conseguiu alcançar o vaso antes de vomitar. Chorou por vários minutos, ainda sentada ao chão. Não sabia se estava sentindo raiva, tristeza, gratidão ou remorso. Foi acolhida pelo abraço do irmão, Guilherme, que não fez perguntas e a levou de volta para a cama. Ali ficaram em silêncio por alguns minutos, entrelaçados.

— Até que ponto não é egoísmo a gente pensar na gente em primeiro lugar? – Camila perguntou, ainda sem se mover.

— Depende.

— Do quê? – Ergueu os olhos com atenção. Tinha o irmão mais velho como uma versão mais nova do pai, sempre calmo, sensato e protetor.

— De muita coisa... Pensar no próprio bem nem sempre é egoísmo, é natural, é quase autodefesa... Acho que egoísmo é quando prejudica alguém, quando essa defesa é contra alguém que não te atacou ou não pensou em te prejudicar. O benefício próprio sem pensar no próximo é egoísmo.

— Você não tá me ajudando.

— Desculpa. – Riu – Eu preferi opinar sem saber do que você tá falando pra ser imparcial.

Camila ficou por algum tempo deitada sobre o colo do irmão. Durante toda a infância, na ausência dos pais, tinha o irmão mais velho como protetor; era a filha caçula, Guilherme o irmão do meio, mas evitavam a irmã mais velha, Bianca, que era severa como a mãe. Camila via o irmão como a imagem mais nova do pai e a irmã como a imagem mais nova da mãe, e se sentia perdia, entre meios-termos.

— Gui... Quem é Paola?

— Não sei... Por quê?

— Alguém com esse nome ligou pra Gabriela e... Não sei, alguma coisa me incomodou.

— Paola? Tipo, a chef? – Guilherme moveu-se apenas o suficiente para olhá-la.

— A chefe dela dela é uma chef e se chama Paola? – Riu, virando-se de frente para o irmão. – Tipo a chef famosa? – Perguntou em tom de deboche.

— Não "tipo" a chef famosa... É a chef famosa.

— O quê? – Ergueu-se, incrédula. – Elas trabalham juntas?

— Bom, não sei se a Gabriela trabalha com ela, mas com certeza trabalha pra ela.

— Ela é boa então? Quer dizer, ela deve ser boa, né...

— Ela é! Você não percebeu que ganhou uns quilinhos? – Brincou.

— Deixa de ser besta! – Camila deu um sorriso, que logo se desfez. – É estranho não sentir saudade de nada e saber que gente que eu nem sei quem é sente minha falta.

— Por que você não arrisca conhecê-los mais uma vez?

— Não é tão simples quanto parece.

— Não é tão complicado quanto parece.

— Você ainda me apoiaria se eu decidisse recomeçar?

— É claro que sim, Mila – Disse, beijando sua cabeça – Eu só posso te pedir, como irmão, que seja sempre honesta, não só consigo mesma, mas também com os outros. Honestidade é deixar tudo em pratos limpos.

— Gui... Eu era mesmo feliz?

— Muito. Você já viu suas fotos e vídeos com ela e com os seus alunos?

— Vi, mas... É sempre bom ter uma segunda opinião confiável. Acha que eu devia ligar pra ela?

— Acho. – Guilherme respondeu, levantando-se e buscando o paletó.

— E se ela não quiser me atender? Ou se estiver ocupada? – Camila a essa altura quase roía as unhas de preocupação; temia, até mesmo, ser ignorada por Gabriela.

— Tente ligar, se ela não atender, deixe um recado, mande mensagem, abuse da modernidade. Preciso ir. Se cuida, tá bem? Qualquer coisa, pode me chamar. – Guilherme beijou-a com carinho e sorriu ao dar-lhe um último afago.

Camila encarou o celular e ensaiou as palavras que diria para Gabriela antes de ter apertar o botão de discar. A cada tom de chamada que ouvia, sentia um nó na garganta; não sabia o que dizer, muito menos como dizer.

Oi... – A voz de Gabriela tinha um tom que Camila não soube distinguir se era tristeza ou desprezo.

— Oi. Desculpa, eu tô te atrapalhando? Pode falar agora?

Posso, sem problema. Aconteceu alguma coisa?

— Não, eu só... Queria conversar com você. – Camila esfregava a mão livre na testa incansavelmente, buscando palavras que formassem uma frase completa.

Sobre o quê?

— Sobre o que aconteceu aqui com o Pedro. Ele foi desagradável, só fez aquilo pra te provocar.

Você não deveria estar se desculpando por ele...

— Estou me desculpando por mim mesma, eu não deveria ter deixado ele entrar, afinal ele é meu ex. Mas eu fiquei confusa, parecia que... Eu não sei, parecia recente, parecia que ele era a minha companhia ali, naquela hora. Você entende?

— Eu entendo. Não tem com o que se preocupar. Me desculpa por ter saído sem me despedir.

— Não, você não precisa se desculpar, foi totalmente compreensível.

Por alguns segundos, ficaram em silêncio, apenas ouvindo a respiração uma da outra.

— Você tá muito ocupada agora?

 Na verdade, não, ainda tenho algumas horas até o restaurante abrir para o happy hour e jantar.

— Pode me fazer um favor?

 É claro.

— Me fala sobre nós, sobre como nos conhecemos...

Camila parecia sincera em querer ouvir sua própria história, e sabiam que ninguém poderia contá-la melhor que Gabriela. Quase puderam ouvir o sorriso que deram, cada uma do seu lado da linha.

Conversaram até perder a noção do tempo, entre risadas e momentos tímidos. Quando tiveram que se despedir, Camila quase sentiu saudade, ou talvez fosse a ideia do tédio. O que já sabia, sem dúvidas, era que gostava de como era tratada por Gabriela, e até admirava o quanto se continha, respeitando o limite entre um casal de noivas e duas garotas que acabavam de se conhecer; tudo era novo para ambas. Depois de tudo, decidiu descansar; ajeitou-se com as mãos por baixo do travesseiro e sentiu o plástico adentrar em seus dedos, quase como se pedisse para ser notado novamente e ainda estava no lugar onde havia sido escondido. Camila bufou, sentindo o peso da dúvida novamente; sabia que jamais teria o perdão de Gabriela e talvez nem o seu próprio se decidisse usá-lo tão friamente, sem pensar cautelosamente; afinal aquele era um bebê planejado, não fruto de um descuido. Sentia que havia roubado a identidade de outra pessoa. Levantou-se para esconder o pacote dentro da sua bolsa, e foi quando retornava à cama que sentiu uma dor incômoda, como uma cólica. Encostou-se ao lado da cama e ali ficou, parada, por alguns segundos. Respirava fundo e tentava manter-se calma; não entendia sobre gravidez, mas sabia que aquilo não poderia ser bom sinal.

Os passos até o banheiro foram os mais difíceis. Sentou-se e agarrou forte na barra de apoio que havia nas paredes. Respirou fundo diversas vezes até ter a coragem necessária de olhar a peça de roupa íntima, que tinha uma pequena mancha de sangue.

"Não, não, não! Não pode ser... Calma, Camila, fica calma." – Repetia mentalmente.

Naquele momento, se viu mais sozinha e desprotegida do que nunca. O celular e o telefone para chamar ajuda, ao lado da cama, eram visíveis de onde estava, mas pareceram estar do outro lado do Mundo. Respirava fundo e sentia calafrios que nunca havia sentido antes. Puxou o ar fundo e prendeu a respiração para impulsionar o corpo e erguer-se novamente, sabia que ficar parada só pioraria a situação. Caminhou até o leito e chamou uma enfermeira, que correu prontamente para ajudá-la.

— Chama a Dra. Júlia, da Neuro, por favor. – Camila apertava forte a mão da enfermeira que a ajudava. – Eu não posso perder esse bebê!

Você, de verdade (Romance lésbico)Onde histórias criam vida. Descubra agora