As duas leves batidas na porta, indicavam alguém entrando no quarto. Camila estava de costas para a entrada e, antes mesmo de saber quem poderia ser, permaneceu imóvel, fingindo estar dormindo.
— Mila? – A voz de Júlia adentrou o quarto com um sussurro. – Você tá acordada? – Mesmo sem haver resposta, continuou se aproximando. – Preciso tirar seu sangue...
— Não estou a fim. – Camila fungava o nariz, encolhida.
— Camila, o que foi? Aconteceu alguma coisa? Eu não vou tirar seu sangue, é brincadeira. – Júlia aproximou-se ao perceber o choramingo.
— Não, eu só... Tá tudo complicado demais. – Desabou.
— Meu amor, fica calma, logo tudo vai se acertar.
— Não, Júlia, não vai! Você não entende, é a minha família!
— Uau, Déjà vu. – Riu.
— Do que você tá rindo?
— Porque essa cena já aconteceu! Mila, pra que se martirizar tanto? Você já passou por isso e superou.
— Já? – Perguntou, secando o nariz com um lenço.
— É claro! Você não precisa convencer sua mãe que está com uma garota, você já fez isso há três anos! Não deixa essa bruxa te enganar!
— Mas, Júlia, é complicado demais pra mim... Metade das pessoa que eu amo dizem que ela foi a melhor coisa que me aconteceu e metade diz que ela foi a pior.
— Só tem um jeito de descobrir. – Júlia apontou para a porta fechada. – Aquela garota tá lá fora esperando você chamar por ela. Ela tá aqui agora e ficou todos os dias com você. Enquanto você tava em coma, ela não saía desse quarto por nada, nem pra comer, nem pra tomar banho, eu achei que você acordaria com o cheiro. – Brincou.
— E onde ela estava quando eu acordei?
— O Guilherme me disse que convenceu ela a ir pra casa naquele dia, ela tava exausta...
— É tudo estranho demais, eu ainda sequer a vi! Como... Como ela é?
— Ela é gata. Combina com você.
— Onde a gente se conheceu?
— Ah, essa é fácil, na minha festa de aniversário. E ficaram pela primeira vez em uma festa de um amigo da faculdade.
— Ai, meu Deus! – Pôs a mão na testa, envergonhada. – E... como foi?
— Mila, eu não sei os detalhes! Mas sabe quem sabe tudinho? – Júlia apontou novamente para a porta, insistindo.
— Júlia... Me desculpa, eu... Eu não posso, eu não sei se quero isso.
— Argh, tá bom, chega! Pra mim, já chega! – Júlia foi até as gavetas e começou a revirar uma por uma.
— O que foi?
— Aqui. Droga... Por favor, esteja desligado e não sem bateria, por favor... Isso! – Ergueu os braços, comemorando.
— Júlia, o que foi??
— A opinião da sua mãe te deixa confusa, a do seu pai te deixa confusa, a dos seus irmãos te deixa confusa, a minha te deixa confusa... Talvez você só deva levar em consideração a opinião mais importante.
— Qual?
— A sua! – Jogou o celular em seu colo.
— O que é isso?
— Camila, você ficou em coma quantos anos? Isso é um celular!
— Eu sei que é um celular, mas... De quem? – Segurava o celular apenas com o polegar e o indicador, como se olhasse algo de outro mundo.
— Esse é o seu celular!
— Por que eu teria um celular tão... moderno? Eu mal uso celular!
— Camila, agora você é uma mulher adulta, a sua vida inteira tá aqui dentro! Trabalho, família, amigos, tá tudo aqui! Olha tudo com calma e tire suas conclusões. Aqui, desliza o dedo na tela.
— Eu sei como mexe, Júlia, eu só não gosto de mexer. Nossa, essa tela é grande demais.
— Vai por mim, com o tempo, você acostuma.
— Está pedindo uma senha. – Entregou o celular novamente à Júlia.
— Garota, e como é que eu vou saber a sua senha?!
— E como é que eu vou saber?!
— Tá bem... Quer saber quem, com certeza, sabe qual é a sua senha do celular? – Apontou para a porta.
— Tá bom. Olha, vai ficar pra uma próxima então, eu não sei a senha pra abrir esse troço, não. Caramba, isso é extremamente fino. – Analisava o aparelho, já com mais alguns outros dedos das mãos.
— Digital! – O grito de Júlia fez Camila dar um salto.
— O quê?!
— A sua digital, coloca o seu dedo aqui atrás...
— Pra quê?
— Se você configurou seu telefone pra abrir com a sua digital... – Júlia posicionou o dedo indicador de Camila na traseira do celular, quase como um perito no assunto.
— Ai, caramba! Desbloqueou! – Camila olhava estática para a tela.
— Ahá! Modernidade, meu bem! A modernidade... O que foi?
— Essa... É ela?
Camila apontava estática para a tela. A foto do papel de parede parecia de um comercial do dia dos namorados. Numa paisagem perfeita, com iluminação perfeita, a selfie tirada por Gabriela em um pôr-do-Sol, abraçava Camila com o braço direito, enquanto ganhava um beijo bem próximo à boca. Gabriela tinha um sorriso que mostrava os dentes, o cabelo pouco bagunçado pelo vento, e Camila a beijava sorrindo, colada em seu corpo.
— É, são vocês. – Júlia respondeu tranquila.
— Uau, ela é...
— Linda?
— Os dentes dela são incrivelmente perfeitos. E ela... É... Bem gay.
— Por que essa cara tímida?
Júlia sabia a resposta, mas quis perguntar. Camila tinha no rosto a mesma expressão da primeira vez que a viu; parecia estar presenciando um ser de outro mundo, mas aquilo nitidamente a intrigava.
— Eu... Tô beijando ela nessa foto. – Riu. – É estranho.
— Quanta ingenuidade.
— Que lugar é esse? É lindo...
— Ah, pode ser qualquer lugar, vocês viajam sempre que podem.
— É sério? – Franziu o cenho.
— É, ué, por que o espanto?
— Eu odiava viajar...
— Não, Camila, o Pedro odiava viajar e você aceitou essa condição desde os 15 anos. Ela é totalmente o oposto dele. Vai por mim, você é feliz com ela. Vai, olha sua galeria de foto, suas redes sociais, seu WhatsApp, conheça sua vida!
— Você se importa se eu fizer isso, tipo, a sós? – Apertou o celular contra o peito.
— Claro que não! Você quer que eu avise seus pais?
— Por favor...
Camila tinha nos olhos um misto de sentimentos que Júlia não conseguia decifrar; parecia angustiada, curiosa, com medo. Júlia fez o que sentiu que restava fazer naquele momento: Apertou seu pé com carinho e sorriu tranquila.
— Então, você tomou esse remédio que vai te deixar meio grogue por algumas horas e eu vou pedir pra eles voltarem mais tarde, ok? – Piscou, aguardando a aprovação.
— Obrigada, Jú...
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Você, de verdade (Romance lésbico)
RomanceLivro 2 concluído - Sob Nossas Peles: https://w.tt/2RUs4tJ O que acontece depois do "felizes para sempre"? Essa é a história de Camila e Gabriela, um casal que vivia feliz para sempre. Até o capítulo seguinte. Após um acidente de carro que quase lhe...