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Tem uma pequenininha menção a estupro aqui e não sei muito bem se isso encaixa em conteúdo sensível, mas há um cadáver bem descrito no início. Nada nojento, prometo. Perdi uma pessoa próxima nessa pandemia e eu precisava botar pra fora de alguma forma. Além disso, esse capítulo ficou meio longo.

Enfim, perdão por qualquer erro de ortografia e boa leitura!

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Eu não era uma pessoa que chorava com facilidade.

E, embora quase pudesse ouvir meu psicólogo dizendo que chorar assistindo um filme e chorar com um evento traumático eram coisas completamente diferentes, eu não achei que fosse chorar com a morte de Nora já que também não chorei quando meu pai e minha mãe morreram.

Porque ouvir aquilo por ligação parecia tão irreal quanto ver um personagem morrer na televisão, mas ver o corpo sem vida de Nora no caixão era o evento traumático.

Sandro estava atrás do volante assim que o sol nasceu no domingo e eu ainda vestia a calça e a blusa de Eva e as botas que usara no jantar com Enila, olheiras escuras sob um par de olhos opacos e fundos que nem pareciam meus. Quando ele perguntou se eu iria querer parar no apartamento para trocar de roupa para uma mais adequada a funerais, liguei o rádio em qualquer estação e fiquei prestando atenção no locutor falando nas áreas da cidade que o temporal alagou.

Nós fomos um dos primeiros a chegar no velório. A funerária cheirava a guardado por provavelmente estar aberta há pouco tempo, flores brancas por todos os lados e até um café da manhã vasto e fumegante no canto do salão. Elena e Lola estavam sentadas perto do bebedouro e os seus murmúrios melancólicos ecoavam incompreensíveis pelas paredes amplas. No meio do cômodo vazio e entre várias cadeiras, havia um caixão marrom claro.

Eu hesitei um passo ao notar que estava aberto, levando a mão à boca quando a ficha foi caindo e um bolo se formava em minha garganta, e hesitei mais outro ao vê-la. Minha visão ficou embaçada no mesmo segundo, lágrimas em meus olhos, e minhas pernas ficaram bambas quando andei os poucos passos que faltavam até ela, lágrimas rolando pelo meu rosto.

Ver uma pessoa morta de perto era tão chocante quanto eu me lembrava. Depois de ter visto meu pai espalhado no chão da sala, eu me dei conta do quão frágil era o ser humano e que a vida era apenas um suspiro. Era como se o corpo fosse uma casa vazia de onde o dono havia saído e toda a memória de sua existência estivesse ali.

Nora estava estirada naquele caixão, mas era óbvio que ela não estava mais lá de verdade. Era sempre um choque no início, perceber que alguém se fora. Que eu nunca mais ouviria sua voz, nunca mais veria o seu sorriso ou sentiria o calor de seu abraço – mesmo que eu não tivesse o menor interesse em tais coisas nos últimos meses. Que ela não iria mais voltar.

Eu enfiei uma mão dentro do caixão para pegar a sua e a outra para acariciar seus cabelos, sem saber ao certo se era permitido tocá-la e não dando a mínima. Pequenos arranhões no rosto pálido de Nora confirmavam o acidente de carro que Elena delatara, mas todo o provável sangue já havia sido lavado. Os lábios, uma vez rosados e macios, estavam pálidos e ressecados. Minha garganta apertou ainda mais e lágrimas queimaram minhas bochechas ao notar o quão rígida e gelada ela já estava, seus dedos contraídos. Uma parte pequena do meu cérebro lembrou de todas as aulas aprofundadas sobre decomposição na faculdade – Nora estava morta há várias horas, mas menos de um dia.

A presença de Sandro ao meu lado foi o que me manteve no presente e meu coração gelado pelo horror da situação esquentou com o beijo macio que ele pressionou no meu ombro. Eu esfreguei meus braços e me encolhi nos seus, tendo que pressionar a mão sobre a boca para impedir a corrente de lamentos que minha mente desenfreara entre soluços desenfreados.

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